No Brasil do BBB o caso do morador de rua que foi espancado por ter sido flagrado mantendo relações sexuais com a esposa de um personal trainer virou assunto nacional. Inúmeros memes e piadas pipocaram nas redes sociais. Muitas pessoas encontram no inusitado da situação uma forma de entretenimento sarcástico, não se importando com o sofrimento das pessoas envolvidas. Eu acabei assistindo alguns poucos minutos da entrevista que o morador de rua deu para um podcast na internet, e em função do que vi gostaria de fazer algumas considerações.
É consenso entre os profissionais da área que a maioria dos pessoas em situação de rua (este é o termo mais correto) no Brasil não estão nessa condição pela pobreza, pela falta de moradia ou pela escassez absoluta de recursos, mas por um conjunto de fatores (que podem incluir estes determinantes sociais) onde a doença mental desempenha um fator preponderante.
“(…) para Botti et al (2009) o maior problema da área da saúde, que atinge os moradores de rua, refere-se ao sofrimento mental, como: dependência de álcool e drogas em geral e ainda neuroses e psicoses. No que concerne as pesquisas divulgadas, Montiel et al (2015) destaca-se os padrões de personalidade com maiores alterações em moradores de rua, são eles Paranoide, Antissocial, Histriônico e Esquizotípico, bem como, a prevalência de transtorno antissocial. Pesquisas americanas, ressaltadas por Montiel et al (2015) indicam que cerca de 90% dos moradores de rua receberam um diagnóstico psiquiátrico, onde predominaram transtornos clínicos e da personalidade em padrões Esquizoides, Borderline e Dependente, Psicose e uso de álcool, assim como, esquizofrenia, no Reino Unido (TIMMS E FRY, 1989; FAZEL et al., 2008; BASSUK, RUBIN E LAURIAT, 1984; apud BOTTI et al, 2009, MONTIEL et al., 2015). Já as pesquisas brasileiras realizadas no Rio de Janeiro e Niterói, citadas por Botti et al. (2010) mostra a presença de distúrbios mentais maiores (22,6%), esquizofrenia (10,7%), depressão maior (12,9%), déficit cognitivo grave (15%) e abuso/dependência de álcool (44,2%). Botti et al (2010) salienta que os distúrbios mentais maiores aparecem com maior prevalência em homens solteiros em situação de rua.” (veja o estudo completo aqui)
Não sou psiquiatra, nem da área da saúde mental, mas ao escutar por um período curto o discurso do morador de rua ficou claro para mim que ele parece sofrer de algum desequilíbrio psiquiátrico. Sua descrição pormenorizada e detalhada da relação sexual mantida – verdadeira ou fantasiosa – lembra muito os relatos de psicose onde ocorre uma deserotização do corpo, que aparece na narrativa como “corpo real”. A forma como descreve o encontro parece de alguém que conta uma história de ficção, como um delírio, mas reconheço que não tenho como avaliar o quanto de realidade existe em sua narrativa.
Diante da suspeita de que esse morador de rua possa estar delirando eu creio que dar voz a um sujeito possivelmente doente, para descrever uma cena que constrange esta mulher e a sua família, me parece eticamente inaceitável. Eu diria o mesmo se não houvesse a suspeita de que ele é psicótico, mas minha rejeição se reforça diante de tantas sugestões para a existência desse distúrbio.
Sobre a moça existem duas possibilidades básicas, já que uma terceira – que ela tenha agido sob coação – foi rapidamente descartada, e por ela mesma. A primeira é que se tratava de uma fantasia sexual, o interesse pelo sujeito da rua, que teria lhe dito ou feito algo que despertou seu desejo. Diante da descoberta do seu ato, ela teria usado a desculpa de um surto para tentar justificar o ocorrido. Essa é uma explicação possível, e sua internação na ala psiquiátrica do hospital teria ocorrido para reforçar a tese da perda abrupta de contato com a realidade.
A outra possibilidade é que tenha realmente ocorrido um surto, e que suas atitudes tenham sido guiadas por uma determinação do inconsciente, pelo descontrole do seu aparelho psíquico em controlar tais impulsos. Tudo que ocorreu entre ela e o morador de rua esteve sob o domínio dessa condição psíquica alterada. Ela estaria, portanto, incapaz momentaneamente de tomar decisões sobre si mesma e seu corpo. Esta segunda hipótese também é possível, e nesse caso teríamos uma ou as duas pessoas envolvidas no caso relacionadas com a doença mental. É possível que o morador de rua tenha condições crônicas – a esquizofrenia e o alcoolismo – e a moça um quadro subjacente agudizado – o surto – que fez com que se encontrassem naquela fatídica noite.
De qualquer maneira não acredito que esse caso deva ser usado da forma sensacionalista como estão fazendo alguns programas na Internet. Expor as vítimas dessa maneira cruel me parece inaceitável. Eviscerar a ambos em praça pública e, pior ainda, tratar esse rapaz como “herói”, ou “mendigo galanteador” é injusto e ofensivo com a moça, que pode estar padecendo também de uma doença psíquica grave. Espero que ela possa se recuperar do trauma e, caso seja mesmo diagnosticada com a doença psíquica que aparenta ter, que tenha o direito à privacidade e ao tratamento adequados. Acredito que o verdadeiro “mendigo” dessa história é esse jornalismo miserável, que explora da maneira mais sensacionalista os fatos, expondo de maneira abusiva a intimidade de pessoas, solapando a privacidade de pessoas que podem ter agido condicionadas pela doença mental.
Quanto ao morador de rua, que ele possa se cuidar e que seja tratado pelo que é: alguém doente que precisa de ajuda e não como exemplo, e que se afaste de qualquer exposição ou exploração de seu nome para a política, como tem sido aventado nos últimos dias.