
Sabe qual o pior tipo de arrogância? É aquela que vem travestida de humildade, no que um amigo meu chamava de “orgulho rastejante”. É quando a pessoa diz que não precisa que o chamem de doutor porque, “apesar de eu ter doutorado, prefiro ser chamado pelo meu nome”. Um pedantismo dissimulado, escondido sob as vestes humildes da simplicidade. Ou quando as ações reforçam a distância conquistada no universo acadêmico enquanto suas palavras pregam o contrário: humildade e uma vida frugal. Só que a gente não consegue esconder isso por muito tempo; quem usa a ferramenta da soberba para se exaltar nos gestos não consegue mascarar nas palavras por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde o sujeito acaba se traindo.
Entretanto, existe um aspecto que é importante ressaltar: ser chamado de doutor sendo médico é muito natural; as pessoas nos chamam assim automaticamente. O meu professor de Educação Física na Academia, ao saber da minha formação, sempre me chama assim, e eu não sou chato o suficiente para avisá-lo de sua incorreção, já que (como diz uma ex-amiga minha) apenas quem faz doutorado merece esse epíteto (o que é uma grande tolice). E quando me chamam assim eu nada digo, até porque porque sei que as pessoas se sentem mais confortáveis com essa distância. Marsden Wagner dizia que odiava ser chamado de doutor, e por isso mesmo nunca colocava isso em seu nome. Entretanto, reconhecia que quando alguém o tratava assim, muitas portas se abriam. Se por um lado produz uma barreira artificial, por outro garante privilégios que são garantidos àqueles que conquistam esta distinção.
Aliás, doutor não vem de “doutorado”, mas de “douto”, forma de designar os sujeitos em uma comunidade que são dotados, aqueles que têm um dote – do conhecimento. Doutores eram os formados nas três formações clássicas: medicina, advocacia e engenharia (lembram do Dr. Brizola, que era engenheiro?). Por esta razão as pessoas chamam estes profissionais de doutores muito antes de existirem cursos de doutorado, assim como chamavam de “mestre” (quem possui maestria em seu ofício) os professores, muito antes de existirem cursos de mestrado nas universidades.
Em 1953, a Capes iniciou o “Programa Universitário”, direcionado às universidades e institutos de ensino superior. Este programa se propunha a trazer professores visitantes estrangeiros, atividades de intercâmbio, concessão de bolsas de estudos e eventos científicos em diversas áreas. Entre as atividades, havia cursos de especialização ou aperfeiçoamento para docentes universitários, principalmente em início de carreira. De acordo com a Capes, naquele mesmo ano foram concedidas 79 bolsas de “aperfeiçoamento”. No ano seguinte, foram oferecidas 155 bolsas. A partir dos anos 60 muitas modificações ocorreram na pós-graduação brasileira, a começar pelo parecer do Professor Newton Sucupira, de 1965, que determinava que os cursos de pós seriam divididos em stricto sensu e lato sensu. Não havia, antes disso, diferenciação e menção explícita ao mestrado e doutorado, cujas concepções surgiram somente a partir daquele ano. Ou seja, as denominações e graus acadêmicos de “mestre” e “doutor” não têm ainda 60 anos. Durante os séculos que antecederam estes movimentos na Academia, mestre e doutor eram denominações populares usadas para oferecer uma qualificação às pessoas que detinham um determinado conhecimento na sociedade. (Veja aqui outras informações sobre a história dos cursos de pós graduação)
Assim, exigir que o costume popular e arraigado na cultura se modifique em nome dessa formação moderna, relativamente recente, é um erro, um comportamento tão equivocado quanto valorizar em demasia as formações acadêmicas em detrimento da experiência e da vivência. Por isso chamar um profissional de “doutor” pelo costume, sem que este tenha cursado um doutorado, não é errado, pois obedece a uma ordenação ancestral e de valor para as pessoas comuns.