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Fúria

Ele voltou o olhar para ela logo após seu desabafo. Dos olhos dela fugiam faíscas luminescentes de indignação. Não havia nenhum ensejo de paz enquanto o corpo de Adélia se projetava à frente e seus lábios cuspiam dor e ressentimento. Não pensou sequer em dar o abraço que ela tanto precisava; naquele momento de dor seus braços seriam os polos magnéticos opostos ao dela. Limitou-se a falar.

– Como poderia eu retirar-lhe o ódio, único alimento possível para sua alma sofrida? A mim não cabe criticá-lo, Adélia, apenas permitir que sua energia se gaste lentamente, como o fogo que se vai quanto mais incandesce. Impedir sua raiva é ignorar o quanto ela ainda lhe protege. Sua cólera cega lhe resguarda do seu maior medo: a culpa. Enquanto você carregar seu ódio com tanto cuidado e tratar dele com tanta ternura, sua culpa se manterá adormecida.

Lançou para Adélia seu derradeiro sorriso, e deixou para ela uma pergunta, da qual se seguiu um silêncio.

– Que direito tenho eu de despertar o monstro da sua culpa? Como permitir que o silêncio dos seus ódios faça acordar o mal que tanto esconde? Como roubar a muleta que lhe sustenta, Adélia?

Adélia ofereceu apenas o vazio como resposta.

Babette, “Adélia e outros contos”, ed Paris, pag, 135

Babette foi um escritor francês, nascido em Lyon em 1910, tendo morrido em Montpellier em 1991, em decorrência de um câncer. Na verdade, esse era o pseudônimo de Jean Michel Garrot, um jornalista e ex militar do exército francês, que escreveu por muitos anos para jornais e revistas femininas com o pseudônimo “Babette”. Foi um dos mais conhecidos escritores franceses da primeira metade do século XX. Entretanto, apesar da fama e da razoável fortuna, podia passear despreocupadamente por qualquer cidade francesa, já que sua identidade só foi revelada pouco antes de morrer. Começou escrevendo para o diário vespertino Journal de Lyon, respondendo perguntas de mulheres sobre casamento, filhos, educação e até moda. Sua formação em jornalismo, na Sorbonne, havia lhe garantido uma escrita elegante e sofisticada. Durante muitos anos manteve a sua coluna no jornal e algumas revistas femininas, até que Babette/Jean Michel resolveu se aventurar pela literatura. Para isso começou a escrever o que se convencionou chamar “pornografia feminina”, que são histórias românticas, cheias de reviravoltas, com ciúme, desconfiança, traição e a redenção amorosa que, via de regra, ocorria no epílogo de suas novelas. Passou a publicar no formato de “pocket books” nas bancas de jornal, com o nome genérico de “Babette” seguido do nome da história específica, como se fossem os capítulos de uma imensa série de narrativas. O sucesso foi rápido, e imediatamente se tornou a literatura preferida de meninas adolescentes que corriam às bancas quando havia o lançamento de uma nova edição. Babette se tornou extremamente popular e 230 exemplares foram publicados desde que o folhetim se iniciou, sendo traduzido em inglês, espanhol, alemão e italiano. As histórias eram repletas de elementos clássicos da fantasia feminina: jovens militares, homens da aristocracia, sogras invejosas, patrões maldosos, jovens pobres de bom coração e ricos perversos e traiçoeiros. Durante anos a identidade de Jean Michel foi mantida como um segredo pela sua editora, que tratava este mistério como uma peça de marketing. Em 1978 uma mulher chamada Isabelle Marie Deschamps afirmou que havia escrito as novelas de Babette, tendo alguns minutos de fama na TV francesa. Todavia a farsa durou pouco tempo, pois provou-se que ela era uma farsante, o que foi confirmado pela editora Paris, dona dos direitos autorais. A verdadeira identidade de Babette foi revelada no programa “Un nuit a Paris”, para o famoso apresentador e jornalista Maurice Lefévre. Num domingo à noite em 1988, Babette apareceu por detrás de uma cortina num estúdio de televisão e a França inteira se surpreendeu com a figura de um homem de 70 anos de idade, baixa estatura, cabelos brancos e usando óculos, que durante décadas cativou com sua escrita a atenção das meninas da França e de vários países de língua francesa. Na entrevista, Jean Michel disse que, apesar de gostar das vantagens do anonimato, era hora de revelar o segredo tão bem guardado. Naquele mesmo ano ele recebera o diagnóstico de um câncer pulmonar que, por fim, o levaria à morte poucos anos depois, e por isso achou que era o momento adequado de se revelar. Quando questionado sobre de onde retirava material para tantas histórias escritas respondeu que os anos que trabalhou como colunista de assuntos femininos no Journal de Lyon colecionou milhares de cartas de leitoras sobre seus assuntos pessoais, suas dúvidas, suas angústias e seus medos, mas também de seus sonhos, alegrias, conquistas e fantasias. “Meus livros são a mistura das histórias de milhares de mulheres, cujas vidas estão nas personagens dos meus livros, como peças de um quebra cabeças imenso e complexo”, disse ele. Jean Michel foi casado com Augustine Garrot e teve 4 filhas: Marie Claire, Dominique, Josephine e Arlene. Morreu em 1991, e está enterrado no cemitério de Montpellier.

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