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As lágrimas de Warren

Quadro de Robert Hinckley sobre os acontecimentos de 16 outubro 1846

Na manhã daquele dia, no distante 16 de outubro de 1886, Gilbert Abbott – um homem tuberculoso que vivia em Boston e que ostentava um vistoso tumor submaxilar – sentou-se em uma cadeira de couro vermelho pensando que aquele poderia ser seu derradeiro dia de vida. Em seu rosto pálido parecia não correr uma gota sequer de sangue quando encarou, à sua frente, a equipe cirúrgica que se aprontava para efetuar a operação de retirada da tumoração. No centro da equipe, ladeado por nomes como Gould, Townsend, Bigelow e Hayward estava John Collins Warren, um dos mais famosos cirurgiões dos Estados Unidos à época. Gilbert Abbott sabia que seu sofrimento poderia ser excruciante, talvez fatal, mas por certo não seria demorado: uma quantidade imensa de dor concentrada em alguns poucos minutos, se tanto. É importante entender que em meados dos século XIX as cirurgias eram necessariamente muito rápidas, pois a velocidade dos cortes era o que permitiria a possibilidade de sobrevida. Os cirurgiões eram verdadeiros “açougueiros”, hábeis na capacidade de cortar os tecidos e serrar ossos com precisão e rapidez. Não havia tempo a desperdiçar; amputações de membros inferiores, em geral por gangrena, eram realizadas em 30 segundos, “pele-a-pele” – habilidade preciosa que tornou famoso o cirurgião escocês Robert Liston. Eram homens embrutecidos pelo trabalho com a dor, o sofrimento e a morte. Tinham um aspecto sujo, grosseiro e bruto e suas ações eram marcadas pela frieza e por um temperamento impávido.

Naquele diz um ator diferente havia sido aceito para participar da cena cirúrgica. O dentista Thomas Green Morton estaria disposto a demonstrar os efeitos sedativos de uma substância que havia experimentado com sucesso na sua prática de odontologia, quando conseguira extrair dentes de pacientes sem que estes experimentassem dor. Para isso uma grande plateia se preparava para assistir a apresentação, ainda que a maioria acreditasse em um retumbante fracasso e um vexame para seus protagonistas.

– Em nossa próxima cirurgia utilizaremos uma substância preparada por um certo senhor Morton, a qual ele atribui a capacidade de tornar insensíveis à dor aqueles que a aspirarem.

As palavras de Warren eram pura arrogância e incredulidade. Na sua visão até então, esses sujeitos e suas “novidades” nada mais eram do que embusteiros, picaretas, farsantes e aproveitadores da credulidade pública. Na plateia de médicos e estudantes ouviram-se risos quando do anúncio. Como ousava alguém abolir a sensação dolorosa que nos foi oferecida pelo Criador como castigo por nossos pecados mortais? Quem poderia ter a pretensão e a ousadia de mudar o que de humano existe em cada dor, cada sofrimento? O clima estava preparado para o deboche, o escárnio e a humilhação pública do pobre dentista; os presentes estavam prontos para uma ruidosa gargalhada.

Thomas Morton aproximou-se e perguntou ao paciente Abbott se ele estava com medo, ao que ele respondeu negativamente. Aproximou dele o globo de vidro repleto de éter sulfúrico (ou éter etílico), substância que era conhecida pelos trabalhadores dos circos há muitos anos como “gás hilariante”, muito usado em suas apresentações. Acercando-se de Abbott, trouxe a cânula para perto de sua boca, pedindo que aspirasse vigorosa e profundamente. “Vai tossir um pouco – avisou – mas logo passa”. Em poucos instantes os lábios do paciente se afrouxaram; logo após os braços penderam ao longo do corpo e perderam o tônus. A mandíbula afrouxou e Abbott passou a dormir como um cordeirinho. Morton voltou-se para John Warren e exclamou, pela primeira vez confiante:

– O paciente está à sua espera, Dr Warren

Deixo aqui a descrição do livro “O Século dos Cirurgiões“, de Jürgen Thorwald, sobre os fatos testemunhados por aqueles que se acotovelavam na arquibancada da sala de cirurgia do Hospital Geral de Massachusetts na histórica data de 16 de outubro de 1846:

“Warren curvou-se em silêncio para Abbott. Impassível como sempre, arregaçou os punhos, tomou o bisturi. E logo, com um movimento fulminante, desferiu o primeiro golpe. Fizera-se na sala silêncio absoluto; ouvir-se-ia perfeitamente a menor manifestação de sofrimento, um gemido, um suspiro. Porém, o paciente não se movia, não se defendia. Perturbado, pela primeira vez, Warren curvou-se mais sobre o operado, praticou a segunda incisão, a terceira, muito profunda. Dos lábios de Abbott não saiu um som. Warren extraiu o tumor. Nada! Nem um ai! Warren cortou as últimas aderências, colocou a ligadura, passou a velha esponja, para limpar o sangue…

E nada… só silêncio… sempre silêncio…

Warren endireitou-se, empunhando ainda o bisturi; estava mais pálido que de costume e o trejeito sarcástico desaparecera dos seus lábios; faíscas saíam dos seus olhos, cheios da luz do prodígio misterioso, inconcebível e, até instante atrás, inacreditável …

– Isto – pronunciou afinal o grande cirurgião – não é nenhum embuste…

De improviso, nas suas faces engelhadas, ressequidas, cintilou um brilho úmido. Warren, o soberbo, o lacônico, o coração empedernido, Warren o homem avesso a toda manifestação de sentimento, chorava.”

Mais de 178 anos já se passaram desta cena memorável, inaugurando a era da cirurgia moderna e o uso da anestesia como elemento indispensável em todo o procedimento cirúrgico, livrando a humanidade de uma história de milênios de dores e sofrimentos. A partir desta data, a possibilidade de corrigir o corpo humano através da invasão pelo bisturi passou a ser uma realidade. Também a partir desse momento, inaugurou-se o nascimento cirúrgico moderno, em que a sobrevida de ambos, mãe e bebê, se tornou a norma. Todavia, se é lícito questionar os abusos desta cirurgia nos tempos atuais, também é justo saudar essa incrível façanha do gênio humano. Aos médicos e a todos que se dedicam a minorar as dores daqueles que sofrem, nossa homenagem.

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Contrariedades

Meu pai há muitos anos foi fazer uma uroscopia no hospital Ernesto Dornelles. Ao acordar da anestesia geral, e ainda tonto, eu me aproximei dele e perguntei como estava.

– Estou bem, não estou sentido nada, só uma zonzeira. O médico passou aqui e me deixou uma única orientação.

– E qual foi?, disse eu do alto da minha inocência, imaginando que era algo sobre a sonda ou algum medicamento.

– Ele falou que estou liberado para fazer tudo, mas devido à minha condição eu não devo ser contrariado em nada.

Disse isso e deu sua famosa risadinha britânica. Não importa a quantidade de boleta na mente; quem nasceu para esse tipo de piadinha nunca perde a oportunidade.

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Sorte e Azar

Há mais de quatro décadas eu estava de plantão como interno (estudante) no Pronto Socorro Cruz Azul em Porto Alegre quando, ao voltar de um atendimento domiciliar na madrugada da virada do ano, nos deparamos com uma cena insólita quando nossa ambulância fez a curva e entrou na Rua Duque de Caxias. Sobre o viaduto Loureiro da Silva jazia, ainda balançando, um Fusca de cabeça para baixo.

Quando o avistamos, as rodas ainda giravam lentamente, enquanto o capô do carro se apoiava no chão, parecendo uma tartaruga derrubada por uma onda mais forte

Paramos nossa viatura a uma certa distância olhando aquela imagem bizarra que contrastava com a rua totalmente deserta nos minutos que antecediam o nascimento do primeiro sol da década de 80. Não havia outro som senão o girar das rodas que desaceleravam aos poucos

Subitamente, duas mãos aparecem na janela do carro tateando o solo e tentando sair. Descemos da ambulância para ajudar, mas antes de chegarmos o sujeito já havia saído totalmente. Colocou-se de pé de forma cambaleante e ficou claro que estava embriagado. Tipo, muito. Vestia uma roupa toda branca combinando com o Fusca da mesma cor.

Há mais alguém no carro? perguntei.

Só eu, disse ele enrolando a língua

E você está bem? indagou meu colega.

Claro, exclamou sorrindo. Estou muito bem, só um pouco tonto.

Tonto, sei. Bebeu todas e saiu dirigindo. Podia ter morrido. Só então pude ver que sua calça branca estava rasgada na altura da coxa. Pedi licença e me aproximei para ver se não havia se cortado.

Sente alguma dor? Aqui na perna?

Nada, está tudo bem. Pode seguir seu caminho, vou pegar um táxi e depois volto pra buscar o carro.

Ele não fazia ideia do que estava falando. Imagine deixar um carro virado de “ponta cabeça” na rua e voltar para buscar mais tarde.

Posso ver sua perna?

Ele aquiesceu e eu olhei pela abertura deixada pelo rasgo na calça. Nos meus poucos anos de escola médica nunca tinha visto aquilo. Havia um corte de uns 15 cm de comprimento e muito profundo, mas com pouquíssimo sangue. Uma boca aberta com bordas precisas que pareciam ter sido feitas por bisturi.

Você não está sentindo nada mesmo na perna?

Eu me olhou com assombro e respondeu:

Já disse que não. Acaso encontrou alguma coisa aí?

A cena me trouxe imediatamente à memória outra, esta descrita em um livro muito especial: “O Século dos Cirurgiões“, de Jurgen Thornwald. No livro ele descreve a noite em que Horace Wells participava de uma festa em Hartford, no ano de 1844, onde a atração principal da noite era aspirar óxido nitroso até se espatifar no chão de tanto rir. As festas com “gás hilariante” eram comuns naquela época. Nesta em especial, Horace estava ao lado de Sam Cooley quando este caiu do tablado e bateu com a canela na quina de uma cadeira. Quando ele, que era dentista prático, examinou a perna de Sam, encontrou um rasgão que pela descrição parecia ser do mesmo tamanho deste eu testemunhava no motorista do Fusca. Tanto o ferimento do rapaz saindo da festa de Réveillon quanto aquele de meados do século XIX – que estimulou o surgimento da anestesia inalatória – não produziram dor alguma em suas vítimas, tamanha a impregnação de substâncias estupefacientes.

O mesmo tipo de corte e a mesma anestesia. Mais do que uma ação direta sobre as terminações nervosas atingidas, era a alteração mental química quem produzira a insensibilidade dolorosa. Mas, se o cérebro é capaz dessa proeza, que mais seria capaz de fazer para suprimir a dor? Alguns anos depois eu veria tais “milagres” ocorrendo no parto. Pedi que o jovem ébrio entrasse na ambulância para que o levássemos até o Pronto Socorro Municipal, mas não sem uma notável resistência da parte dele. “Não sinto nada; estou bem!!!

E assim começou a década de 80, com um ensinamento muito claro: “Caso capote seu carro, certifique-se antes que haja uma ambulância bem atrás de você“.

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