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Deceptio

Sim, já fui tomado pela decepção com algumas pessoas. Tipo: acreditar na bondade e nas boas intenções de alguém e descobrir que por trás dos sorrisos e dos abraços existe oportunismo e interesse. Todavia, não tenho a menor dúvida de que existem muitas pessoas que se decepcionaram comigo. Faz parte da vida.

Muitas vezes fui injusto ao me decepcionar, ou ingênuo ao esperar algo irreal de alguém. Outras vezes fui injustiçado por esperarem de mim o que eu não poderia dar – e sequer poderia ter oferecido. Quem nunca?

Hoje, depois de velho, já não há como me decepcionar de novo. Estas são as benesses da senectude: a gente aprende a esperar dos outros algo muito mais próximo da realidade.

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O Cristal Trincado

Uma amiga minha me disse, há mais de 30 anos, que o amor é um cristal de delicada estrutura; uma vez trincado não há forma de consertá-lo. Ela me contou que teve seu primeiro filho na sua cidade natal, 200 km da capital onde morava, quando sozinha foi visitar sua família no interior. Tão logo a criança nasceu, conseguiu contatar seu marido por telefone (não havia celulares na época) e lhe contou a novidade, pedindo que ele viesse imediatamente conhecer o bebê. Ele respondeu que estava “atolado de serviço” mas que no fim de semana, “sem falta”, iria até o interior conhecer seu filho. Veio a conhecê-lo com 5 dias de vida.

Segundo ela, naquele exato instante, ao desligar o telefone e fechar os olhos pôde escutar a rachadura percorrendo a pele transparente do cristal, e os anos que se seguiram foram gastos na vã tentativa de remendar o que não tinha mais conserto. Entre os professores da obstetrícia havia um que se destacava dos demais por sua juventude e seu interesse na medicina baseada em evidências. Fazia contraste com a velharia da faculdade, que agia e pensava na base do “assim que eu faço há mais de 30 anos”, sem se preocupar com evidências bem embasadas. Este jovem catedrático era o que Marsden Wagner chamava de “liberal”, e avisava ser um dos profissionais mais perigosos. Parece ser aberto às novidades, mas apenas para aquelas que não ameacem sua autoridade e seu poder.

Durante uma aula eu fui, por certo, o único estudante que se deixou impressionar com um fragmento de frase que ele proferiu, dita de passagem entre uma e outra explicação. O resto da turma apenas concordou como se fosse algo tão somente óbvio. Disse ele: “Quando nós determinamos a via de parto para a paciente, ela deve ser preparada para….“. Para mim ficou claro, como nunca até então, que a forma como um bebê vai nascer é algo determinado por uma autoridade alheia ao binômio mãebebê. Algo de fora, um saber externo que transforma gestantes em objetos inertes e silenciosos, à mercê das ordens e comandos dos médicos. Por isso era possível determinar a forma como seu bebê seria trazido à luz. Foi nesse instante que percebi que as mulheres eram alijadas das decisões sobre o parto. Também ficou claro, a partir desse momento, que qualquer mudança na atenção ao parto seria bem vinda, desde que jamais atingisse o centro nevrálgico do paradigma médico: a posição objetual da gestante como condição essencial para a prática de sua arte.

Quando ouvi múltiplas vezes o eco de suas palavras reverberando pelos anos seguintes percebi que um projeto de reforma profunda na atenção ao nascimento só poderia emergir se subvertesse essa lógica. Por isso a frase “Humanização do nascimento é garantir o protagonismo à mulher”, pois enquanto não houver a mudança dessa narrativa – e o médico continuar “determinando” vias de parto a despeito do desejo das mulheres – manteremos a mesma tutela secular do patriarcado sobre o corpo e o desejo de gestantes. Essa aula foi o meu “trincar do cristal”, e depois dela eu nunca mais pude olhar a atenção ao parto se não fosse por uma perspectiva libertária.

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Telefonema

celular roubado

Minha filha foi novamente assaltada e teve o celular roubado. Estava na passeata contra o golpe porco e sórdido que nosso país sofreu quando foi abordada por um jovem com uma faca que lhe solicitou o celular. Como ela é uma pessoa inteligente, não reagiu e o entregou.

Por uma mistura de curiosidade mórbida e a ilusão de fazer uma negociação qualquer liguei para o número dela logo após saber do roubo, e quem me atendeu foi o próprio ladrão. Disse a ele que sabia que ele havia roubado o telefone da minha filha. Ele deu uma risada com um linguajar super “bagaceiro” e me disse: “Ah meu, a mina deu mole, azar né…” e desligou.

Para minha surpresa hoje pela manhã ele me devolveu a ligação. Titubeei antes de atender, mas resolvi pagar para ver. Ele iniciou a conversa com um papo muito bobo, em um lugar onde parecia estar rodeado por uma galera fuleira. Iniciou a conversa dizendo:

– O seu merda, por que me ligou ontem? Eu vou aí na tua casa e vou te encher de bala. Vai te f* seu idiota. Tu vai ver o que vou fazer contigo”.

Senti o clima de deboche ao redor dele mas resolvi não aceitar o jogo. Respondi com toda a calma.

– Só liguei ontem porque você roubou o telefone da minha filha. E você não vai me pegar coisa nenhuma. Você é um ladrão de celular que ataca meninas; não ia se arriscar comigo. E eu não tenho medo de você.

Eu vi que ele ficou brabo, e os amigos ao redor começaram a gritar. “Filho da p*, otário, vai tomar no c*…

Expliquei a eles que me xingar não faria diferença alguma; isso não me atinge e sequer me irrita. Falei ainda que me agredir era inútil, mas fui duro com ele:

– Escuta cara, você roubou um celular velho. Na sua mão isso não vale nada. Vou bloquear em minutos e você vai ganhar talvez 100 reais por ele no mercado negro. Entretanto, se você continuar assim em 10 anos só existem 3 possibilidades: vai estar preso, morto ou ainda estará roubando celular para ganhar míseros 100 reais, correndo o risco de apanhar, ser linchado ou preso. Tem certeza que esse é o futuro que você pensou para si mesmo?

Ele interrompeu sua fala debochada e arrogante. Percebeu que os xingamentos não me irritaram e que não poderia se divertir me ameaçando. Tentou me dizer que eram mais de 100 reais que conseguia, e que fazia isso porque tinha que sustentar seu vício, o que é uma desculpa usada por todo tipo de adito: das drogas aos remédios, bebidas ou cigarro. Terminou seu curto discurso com um outro clichê previsível: “Essa sociedade não me dá outra possibilidade. Não tenho alternativa“.

Sabia que ele usaria essa desculpa fácil, mas também entendia que não poderia responder um clichê batido com outro pior.

– Você tem razão ao dizer que essa sociedade é injusta e não lhe dá oportunidades. Também parece claro para mim que a sociedade olha de maneira diferente para você e para a minha filha. Mas você pode sair desse jogo perverso. Existem, sim, alternativas para criar uma vida digna. Roubar pessoas dá essa sensação passageira de ser malandro, esperto e ter “vencido” os “manés” pela força. Mas basta você ser humilhado numa delegacia para ver que isso é uma ilusão, que o mané é você mesmo e que o seu destino é ser tratado como traste em uma cadeia abarrotada. É isso que você quer para você? É essa a sua resposta para uma sociedade injusta? Acha que o roubo desse telefone prejudica a minha filha mais do que você? Olha meu, você está enganando. Quem foi roubado foi você.

Ele insistiu nas desculpas manjadas, numa derradeira tentativa padronizada e estereotipada de justificar seu crime.

– Roubei o celular para pagar meu aluguel, disse ele.

– Nada justifica ameaçar uma menina para roubar um celular velho. Entenda… não tenho raiva de você. Em termos econômicos, isso não fará diferença alguma para a minha vida, e nem para a minha filha. O que a gente perde mesmo é a confiança nos outros, aumentando nossa sensação de insegurança. Minha tristeza é ver um jovem ser enganado pela ilusão de que roubar um celular pode lhe trazer alguma coisa boa na vida. Isso sim é triste.

– Bem, desculpe qualquer coisa. Eu realmente roubei, mas…

Ele não sabia o que dizer. Aliás, que poderia ele falar diante do que fez?

– Meu amigo, não se lamente. Pense apenas no que eu lhe disse. Como vê sua vida no futuro? Seja feliz, siga sua vida. Abraços e boa sorte.

Ele se despediu de forma sincera.

– Ok. Um abraço para sua família e desculpe o transtorno.

Dito isso, desligou.

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