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Madame Durocher

No teaser do filme sobre a Madame Durocher, pioneira na medicina do século retrasado – por ousar ser mulher e atuar em uma profissão historicamente dominada pelos homens – fui obrigado a ver mais uma vez os números fantasiosos atribuídos aos atendimentos realizados pelos profissionais do parto. Esta é uma prática comum, tanto entre parteiras quanto entre médicos. Sobre estas afirmações, peço apenas que façam a seguinte ponderação. À Madame Durocher foram atribuidos 8 mil nascimentos, um número redondo e grandiloquente que já deveria nos despertar atenção. A média de duração de um parto é de 8 horas para uma multigesta (que já teve filhos) e 12 horas para uma primigesta (que espera seu primeiro bebê). Isso se levarmos em consideração os partos atendidos no século XX, quando estas medições foram realizadas. Para alem disso, estamos falando de fatos ocorridos no século XIX onde a imensa maioria das crianças nascia em casa numa época onde não havia transporte rápido. Para atender essa quantidade de partos ela teria que passar por volta de 15 horas diárias entre a atenção ao parto e o deslocamento de ida e volta até a casa da paciente. Não havia hospitais de grande porte e muito menos plantões, que são invenções do seculo XX.

As pessoas que criam esses números (tipo 8 mil!!) não se dão conta do que seja atender essa quantidade imensa de partos. Para se ter uma ideia, isso significaria atender um parto por dia durante 27 anos seguidos, sem férias, descansando apenas um dia por semana. Num tempo onde os partos eram em sua imensa maioria domiciliares, determinando deslocamentos que por vezes demoravam horas, não haveria tempo para realizar essa atividade nessa frequência, e nenhuma parteira teria força ou saúde para realizar esta tarefa. Esses números são sempre falsos, inflados, criações fantásticas para garantir valor para o profissional; são criações numéricas mágicas, sem qualquer embasamento, porque quase nenhum médico tem anotações com o registro de cada paciente atendida. Além disso, se esta parteira atendeu um parto por dia durante décadas essa foi a única atividade que foi capaz de fazer durante esses anos todos; não poderia ter filhos, conquistar um marido, cozinhar, lavar roupas, namorar ou mesmo ler um livro para estudar e se atualizar. Simplesmente impossível.

“Ahh, mas talvez ela tenha atendido mais de um por dia” por menos tempo, mas isso é algo insano. Atender dois partos domiciliares no mesmo dia é uma tarefa gigantesca mesmo que você tenha carro e atenda na mesma cidade. Mais do que isso é loucura, mesmo se houvesse uma epidemia de partos “relâmpago”. Além disso, não se trata apenas do tempo entre as contrações e o nascimento; é importante levar em conta que após o parto é necessário pelo menos duas a três horas de observação do bebê e dos secundamentos maternos para garantir a segurança de ambos. O trabalho com o nascimento humano congrega em um só evento vida, morte e sexualidade. A carga imensa que esse trabalho gera produz um desgaste para além das questões físicas. Obstetras e parteiras trabalham se equilibrando sobre a fina lâmina que divide a vida e a morte, em um labor de profunda tensão, angústia, alegrias e tristezas profundas, onde o desgaste emocional é tão terrível quanto inevitável. Atender um parto por dia, mesmo que cada um deles durasse apenas 2 horas, já seria insano, insuportável na prática privada. Fazer isso durante décadas sem tirar férias é apenas impossível.

“Ahh, mas quem sabe em boa parte deles ela estava apenas acompanhando suas instrutoras”, mas nesse caso ela não seria a principal atendente do processo então não há como contabilizar como tendo “atendido” o parto. O número de partos funciona como a cicatriz do soldado que chega da guerra: é um sinal de valor e bravura. Infelizmente, entre os profissionais do parto, se criou o costume de inventar números para que isso seja a tradução explícita de sua experiência profissional e, portanto, do seu valor.

PS: faço essa observação apenas para alertar sobre os números fantásticos e fantasiosos que parteiras e obstetras apresentam como atendimentos realizados. De resto penso que esse tema e esse filme são especiais, pois mostram o trabalho árduo das parteiras e das pioneiras da medicina. Um filme que vale a pena ser visto. Parabéns aos realizadores.

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Holofotes

Algumas personalidades da mídia que estão envolvidas com a crise climática atual vêm a público dizer que, no trabalho de ajuda às vítimas da enchente no Rio Grande do Sul, o Estado “só atrapalha” e o que está funcionando é o trabalho valoroso dos voluntários, em especial o pessoal de jet-ski. Fazem isso para valorizar seu próprio esforço, mas por certo que usam esse discurso para igualmente atacar o governo Lula. Bem o sabemos o quanto de base é invisível à vista desarmada, e por isso é preciso trazê-lo à luz. O cidadão comum percebe com facilidade a mão que entrega o sapato, a camisa, o cobertor, a água limpa e a comida, e para ele vão todos os agradecimentos e as homenagens, Entretanto, não consegue enxergar, sem um pouco de atenção e boa vontade, a longa linha de atores que garantiu a realização desse ato de solidariedade: o doador, o motorista, o veículo de transporte, o local onde colocamos os flagelados, a organização, a turma da limpeza, a logística, o apoio dos governos, etc. Na sociedade do espetáculo vale menos um cheque de 50 bilhões do que um garotão de jet-ski.

Ao lado de toda esta mobilização para ajudar as famílias atingidas pela tragédia, a competição dos influencers sobre quem está “ajudando mais” é um dos efeitos colaterais mais asquerosos da tragédia. O auxílio de personalidades não é ruim, mas quando é feita apenas para gerar publicidade – ou para atacar o governo – se torna um caso de polícia. Essa função é primeiramente do Estado, e o governo Lula está agindo de maneira exemplar para tratar as questões mais emergenciais, e já está absolutamente claro que muito da propaganda sobre a iniciativa pessoal de jogadores de futebol, artistas diversos, personalidades, ex-BBBs, surfistas e tem como objetivo principal criar a fantasia de que o governo nada faz. A torrente incessante de fake news, tratando a iniciativa federal como incompetente ou maléfica, prova que para a extrema direita fascista o sofrimento do povo pode ser usado como ferramenta política para atacar o atual governo.

É preciso enxergar para além do meramente manifesto para ser justo em cada avaliação. Para toda estrela de cinema exaltada e aplaudida existem centenas de pessoas nos bastidores e escritórios que financiam e dão suporte ao seu trabalho; para cada cirurgião salvador existe uma enorme equipe de trabalhadores da saúde na retaguarda, sem os quais o trabalho de cura seria impossível. O mesmo ocorre em toda ação de assistência. Cuidado com aqueles que, estando na ponta da linha de acão e sob as luzes dos holofotes, reclamam para si a exclusividade dos elogios e aplausos.

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