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Os biscoitos

Há uns 20 anos atrás eu estava tomando um espresso em uma cafeteria do segundo andar do shopping Total aqui em Happy Harbor num dia chuvoso como hoje. Subitamente vi bem à minha frente uma senhora tropeçar no degrau que dava acesso às mesas e cair de forma espalhafatosa ao chão. Eu me levantei reflexamente para ajudá-la, mas fui impedido pelo seus gritos.

– Não me toque, eu quebrei a perna. Tenho osteoporose, sei como é!!

Minha reação foi pensar: “Senhora, não foi pra tanto. Foi apenas um tombo. Não precisa fazer esse drama todo“, mas quando cheguei bem perto e pude ver a barra da calça levantada ficou fácil constatar a evidente fratura da tíbia esquerda. Senti vergonha de ter desconfiado, ainda que em pensamento, da sua percepção da seriedade da queda.

Quando me dei conta da gravidade da cena falei para as pessoas ao meu lado: “Não mexam nela, a perna está mesmo quebrada na altura da canela. Chamem o SAMU para removê-la com cuidado. Eu sou médico e ficarei aqui aguardando”.

A dona da cafeteria, esbaforida e nervosa, ligou para o SAMU imediatamente. Naquele momento me vieram à mente meus anos de pronto-socorro e lembrei dos atendimentos de mais de duas décadas passadas. Lembrei da dor produzida pelas bordas ósseas desalinhadas e resolvi ajudar fazendo uma manobra para aliviar a for.

– Senhora, me chamo Ric e sou médico. Eu posso ajudar tracionando seu pé. Vai aliviar a dor. A senhora me permite?

Ela respondeu dizendo “se passar essa dor, pode ser”. Ato contínuo, tracionei o calcanhar em direção oposta ao corpo e percebi que ela imediatamente sentiu a dor diminuir. “Obrigado moço, aliviou bastante”.

Acho que devo ter ficado mais de uma hora parado no meio da cafeteria puxando aquele calcanhar enquanto esperávamos o SAMU. Quando chegou a equipe de emergência, ela foi rapidamente transportada de maca para uma ambulância e posteriormente atendida no Pronto Socorro.

Semanas mais tarde recebi uma caixa no consultório onde havia um pote biscoitos e um bilhete. A desafortunada senhora descobrira meu endereço pelo nome completo que eu havia lhe dado. No bilhete que acompanhava os biscoitos ela escreveu que havia sido submetida a uma cirurgia e que o traumatologista do hospital elogiou minha iniciativa de tracionar o tornozelo. Em tom de brincadeira, o colega falou que, apesar do azar do tombo, foi muita sorte ter alguém com rudimentos de traumatologia por perto para dar a primeira assistência.

Os biscoitos eu lembro até hoje como os mais saborosos do universo. Eram tão bons que eu não comia mais do que um por dia e deixava o pote escondido, para durar mais tempo e não ter que dividir. Mas por certo a oportunidade fortuita de ser a pessoa certa no momento certo é a parte mais saborosa dessa memória.

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Os Canais

Com a delicadeza do movimento das mãos que sempre me encantou, ela me explicou sobre uma das características mais conhecidas da sua cidade. Era a primeira vez que visitava o Black Lake District, de quem só conhecia histórias curiosas sobre peixes estranhos, uma cidade invadida pelo rio e os seus canais que mais pareciam Veneza.

– Quando você está na água do rio, basta você bater as mãos e os peixes pulam. Eles são grandes e fortes, mas também são ágeis e graciosos. Parece que, ao escutarem o som das palmas, eles saltam à nossa frente, como se fossem pequenos cães amestrados. É um espetáculo maravilhoso. Venha, vou lhe mostrar.

Segurou minha mão com força e me puxou para dentro do rio. Ficamos imersos até os joelhos enquanto ela olhava com atenção para a água cristalina que nos envolvia. Em alguns poucos instantes ela apontou para um peixe à distância que se aproximava.

– Vamos, bata palmas!! – disse-me ela. Veja como eles vão se aproximar.

Resisti um pouco, com medo de fazer um papelão e nada acontecer. Fiquei com medo do ridículo da situação, mas uma senhora à distância também batia palmas enquanto olhava com atenção para o leito do rio, já com a água batendo em sua cintura. Criei coragem e comecei a fazer o mesmo e percebi que o peixe que estava distante voltou a se aproximar de nossas pernas.

– Isso, continue, mais forte!!

Continuei a bater palmas com mais intensidade até o momento em que o peixe, excitado pelo som das palmas, saltou bem à nossa frente e começou a bater suas asas. Sim, ele tinha asas pequenas que batiam freneticamente como um colibri. Fez um círculo por sobre nossas cabeças com graça e charme, deixando um arco-íris em suas asas cada vez que seu corpo se interpunha entre nossa vista e a luz do sol. Depois disso, com toda a majestade, ele mergulhou nas águas translúcidas e desapareceu de nossa vista

– São peixes-voadores – gritei eu. Que espetáculo!!

– Eu disse que bastava ter confiança que eles vinham – disse ela com um sorriso encantador.

Olhei ao redor e pude vislumbrar o teto dos edifícios mais altos ao alcance de nossa visão

– Vejo a cidade daqui. Deve ser ótimo ter um rio tão próximo – disse eu.

– Pelo visto você não conhece onde moro mesmo. Aqui o rio avança cidade adentro, invadindo as ruas e as calçadas. O rio está na estrutura mais íntima da comunidade e faz parte do dia a dia de todos; ele é a energia que nos anima. Venha, vou lhe mostrar.

Segurou minha mão e passou a caminhar comigo por dentro do rio de águas refrescantes e transparentes. Aos poucos as casas foram ficando mais próximas e fomos nos aproximando da cidade e o que era um braço de rio passou a ser um canal que se misturava com as calçadas, se intrometendo entre as casas. Percebi que a cidade era uma mistura de ruas e canais aquáticos. A água agora batia no peito, mas tamanha era a clareza que ainda era possível ver meus pés enquanto caminhava. Continuamos a andar pelas calçadas aquáticas até chegar próximo de uma rua onde vi carros pela primeira vez, ainda que distantes de nós. Paramos finalmente em frente a uma cafeteria, e foi quando Ethel perguntou se eu gostaria de tomar um café.

– Molhados assim? Eu teria que me secar primeiro…

Ela riu da minha ingenuidade.

– Aqui eles servem na calçada mesmo, basta pedir. Deixa que eu pago.

Fez um gesto com o braço e prontamente um garçom se aproximou da borda do canal. Ajoelhado, anotou o pedido que Ethel lhe fez. Recostado à borda do canal, e com o corpo submerso até o peito, eu me ocupei em decifrar os detalhes do rosto enigmático de Ethel. Seu olhar tímido, seus dentes incisivos superiores levemente assíncronos, que lhe ofereciam um charme que só ocorre diante das pequenas imperfeições. Seu olhar era sempre vivo e brilhante. Sem perceber, toquei o pé direito de Ethel que se apoiava no fundo do canal e senti seus dedos miúdos e sua pele macia. Ela não interrompeu o relato que fazia, mas abriu levemente seus lábios e misturou suas palavras com o mais lindo dos sorrisos.

Marjorie Barnes, “Gates of Illusion” Ed. Parnasso, pág. 135

Marjorie Helen Barnes é uma jornalista americana nascida em 1951 na cidade de Richfield, Utah. Fez seus primeiros estudos na escola local, mas na adolescência mudou-se para a capital do Estado, Salt Lake City. Fez seus estudos no Westminster College e depois estudou jornalismo na instituição. Aos 20 anos abandonou temporariamente a faculdade e com uma colega de curso empreendeu uma viagem de um ano pela América Central. Esta colega era Amelia Duchamps, que mais tarde se tornou igualmente escritora e descreveu essa aventura em seu livro “Amigas”. Retornou dessa viagem para terminar o curso de jornalismo e logo após iniciou uma carreira como repórter no Salt Lake City Tribune. Desde muito cedo posicionou-se à esquerda no espectro político e começou a militar no partido Democrata de seu Estado. “Portões da Ilusão” é um livro de contos onde aborda o mundo a partir de realidades alternativas. Descreve mundos lisérgicos, cores absurdas, sonoridades inauditas e conexões afetivas acima de qualquer tipo de classificação conhecida. Segundo suas próprias palavras, “Usei da ferramenta dos contos para fazer um ensaio sobre um mundo alternativo, tendo à frente uma prancheta em branco nas mãos de arquiteto criativo e sem compromissos com a coerência”. Suas histórias são ricas e criativas, mas por vezes perturbadoras, ao questionarem nossos valores mais profundos em relação à vida, morte, nascimento e sexualidade.

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À espera de Emma

Diante do cenário luminescente de matizes multicoloridos do céu ele se despiu do último cigarro, fazendo a brasa vívida brilhar contra a paisagem avermelhada dos bancos do bar. Da primeira baforada surgiu a frase entrecortada pela fumaça.

– Se há algo que não podemos controlar, Benny, é o ouvido alheio. Nada nos garante que o coração de quem ouve poderá compreender o que falamos, muito menos o que se esconde no vão das palavras. Como saber se a frase solta não vai encontrar um oceano de contextos na mente do outro? É verdade irmão, o ressentimento é uma capa que ao mesmo tempo em que nos protege sorrateiramente nos corrói a alma.

Sentado à sua frente Benjamin colocou uma colher a mais de açúcar no café fazendo o tilintar da colher entoar um dueto com os carros que passavam na rua. Seu olhar estava fixado na porta do bar na esperança de que Ethel viesse finalmente encontrá-los. A ansiedade pelo encontro enchia o bar acanhado de silêncios que, misturados com o aroma de café passado, traziam a todos a dor pesada de muitas nostalgias. Benjamin descolou o olhar da porta e sorveu o primeiro gole de café. Enquanto absorvia o amargor adocicado da bebida fitou Mark ainda com a xícara tocando os lábios.

– Se ela entendeu dessa forma não há nada que você possa fazer, disse. Não adianta se martirizar. Se ela se magoou com aquelas breves palavras não cabe a você se culpar. Você sabe como são as mulheres…

Mark sorriu pela primeira vez.

– Não, irmão. Nunca saberei.

Faça uma imagem com esse texto O tilintar dos sinos da porta de entrada anunciaram a chegada de Emma. Benny sabia que seu rosto na primeira imagem denunciaria seu propósito e o que ocorreria nas próximas horas. Vestia-se sobriamente e carregava uma sombrinha nas mãos. Seu olhar procurava a dupla que a aguardava até que finalmente atingiram em cheio os pupilas contraídas de Benjamin.

– É ela Benny?, disse Mark sem ousar virar o corpo.

– Temo que sim. Esteja preparado e boa sorte, brother.

Barry Wiedeman Harris, “The Portrait of the Devil”, Ed. Canvas, pág 135

Barry W. Harris foi professor de literatura medieval na Universidade do Novo México. Escreveu vários livros relacionados aos conflitos sociais derivados da imigração. Como homem de esquerda, foi membro do Partido Socialista da América e, quando do seu desmembramento em 1973, manteve-se filiado ao Comitê Organizador Socialista Democrático. Seus livros e crônicas abordam de maneira ácida o racismo e o preconceito de classe dos “WASPs” (White Anglo-Saxon Protestant) em contraposição aos sonhos e esperanças das comunidades latinas que vivem nos estados limítrofes da fronteira mexicana. Casou-se com Julieta Morejano, de ascendência Guatemalteca, e teve dois filhos, Pedro e Enrique. Morreu em 1998, vítima de um câncer de tireoide.

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