Acabei tomando contato com a medicina americana em diversas ocasiões, seja ao consultar com um terapeuta “holístico” em Cleveland há uns dez anos, seja pelos inúmeros contatos que tive durante as consultas a que fui convidado a assistir de amigos meus que moram por lá.
Eu já descrevi anteriormente as minhas impressões sobre a assistência médica americana, que pode facilmente ser considerada a mais tecnocrática das práticas de saúde do mundo, entretanto, pensei em mais uma vez descrever minhas ideias. Para a medicina americana – ou estadunidense – o ápice da atenção é oferecido através do acesso e uso da tecnologia – o mito da transcendência tecnológica. Quando mais sofisticados os testes e tratamentos, mais valorizados são os médicos pela cultura como um todo – e isso inclui médicos e pacientes. A adesão ao paradigma exógeno de doença e adorcista de terapêutica é explícito e propagado como superior: tecnologia é sinal inequívoco de qualidade.
Para além desse paradigma existe um afastamento quase religioso dos profissionais em relação aos pacientes. A vida do médico fora do ambiente das consultas é algo interditado àqueles. O cenário onde se encenam os encontros são os únicos locais onde os médicos serão acessíveis. Lembro vividamente do assombro do marido americano de uma paciente que atendi em Porto Alegre quando ofereci a ambos um cartão onde constavam os telefones da minha casa e o meu celular. “Eu nunca vi isso em toda a minha vida“, disse ele assombrado.
Os consultórios padrão de médicos americanos ficam em “centros profissionais”, um modelo multiprofissional que tentam implantar no Brasil também. São salas gigantes onde muitos funcionários trabalham, desde as recepcionistas até as “auxiliares de médicos”, que são profissionais formadas para dar assistência ao trabalho de consultório. São elas que medem seus sinais vitais – vestidas com as indefectíveis roupinhas de bloco cirúrgico – fazem perguntas típicas da anamnese, escrevem suas queixas, avaliam sua receita anterior e anotam tudo em sua ficha. Saem da sala com um sorriso e avisam que o doutor em breve chegará.
Minutos depois chega o(a) medico(a) acompanhado(a) por esta assistente, a qual segura o tablet com as anotações na mão. Fica claro pela sua postura e atitude que a conversa não vai demorar mais do que 5 a 10 minutos. Também é óbvio que as consultas obedecem um modelo “fordista” de linha de montagem. Enquanto a auxiliar aplicava o questionário o médico estava em outra sala, com outra auxiliar, e enquanto nos atendia outra auxiliar já preparava a próxima paciente. Via de regra, o médico dá uma olhada superficial nas anotações da assistente (queixas, drogas, exames, etc) e faz algumas perguntas absolutamente simples sobre o caso. Faz a consulta de pé, na frente da paciente, com a fantasia típica de médico (avental, estetoscópio no pescoço, canetas, brilhantina no cabelo, perfume, etc). Quase nunca olha nos olhos; 70% do tempo olha para a ficha.
Quando minha amiga explicou que eu era “um médico do Brasil visitando o país” apenas sorriu como que a dizer “poderia ser o Papa, não faz diferença alguma”. Não foi arrogante, sequer antipática, apenas agiu como se eu não estivesse ali. E pela conversa, minha presença não faria mesmo nenhuma diferença. Inobstante a especialidade do profissional a consulta é absolutamente técnica, objetiva e específica, nenhuma questão pessoal, afetiva ou emocional é tangenciada, por mais que estes temas sejam evidentes na queixa principal.
Qualquer pergunta que seja de outra especialidade – por exemplo, perguntar para um gastroenterologista sobre o aparecimento de feridas nos pés – é rechaçada imediatamente com a indicação para procurar um colega. Não se misturam as especialidades. A consulta termina com a paciente sendo orientada a passar no guichê para pegar a receita, a nova solicitação (gigantesca) de exames e os remédios, que são vendidos ali mesmo.
Para um profissional com formação em homeopatia, como eu, ou que fez um longo percurso pela psicanálise – onde uma consulta pode durar 60, 90 minutos divagando por inúmeros pontos significantes da vida do paciente – o modelo técnico das consultas americanas é chocante. Olhar para um paciente como sendo formado por órgãos estanques e desconectados, com um corpo fatiado em especialidades, medicado de forma ostensiva, desconsiderado enquanto sujeito, objetivado e coisificado em seus constituintes químicos e hormonais, é uma experiência impressionante e chamativa.
Não posso dizer que esse é o pior modelo de atenção à saúde que eu já vi, até porque não me sinto em condições de ser o juiz desse certame. Todavia, a incapacidade de enxergar a energia vital imanente do corpo que sofre, o laço etéreo e espiritual que une os significados aos sintomas e o sofrimento psíquico como ferramenta diagnóstica que denuncia as características últimas do sujeito é para mim um desperdício brutal da arte médica.
Se é verdade que “aquilo que o paciente traz como sintoma é seu verdadeiro tesouro”, a surdez contemporânea aos lamentos profundos das almas é o mais claro sintoma da doença da Medicina. Que não sejamos também nós surdos à dor que ela tão evidentemente nos mostra.
Veja mais sobre “Medicina Americana” neste outro post publicado em 2017.