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Verdades escondidas

Certa feita eu caminhava pelos corredores do hospital quando fui interrompido por uma funcionária do setor de contas, a quem eu já conhecia faz tempo. Ela me disse:

– Dr. seria pedir muito o senhor olhar esse exame para mim?

Como estava “de boas” apenas esperando para tomar meu cafezinho pós almoço, aceitei. Segurei com as mãos as duas folhas que ela me passou.

Eram exames de urina clássicos. Um exame comum de urina (que muitos chamam de “EQU” e outros “urina 1”) e uma urocultura. O primeiro faz uma análise química e celular da amostra e o segundo uma análise do crescimento de bactérias, onde normalmente se acrescenta um teste de sensibilidade aos antibióticos. Olhei rapidamente os exames e vi que demonstravam de forma inequívoca uma infecção urinária. Leucócitos em profusão, bactérias, etc. A cultura de urina mostrava scherichia coli (a top de linha das infecções urinárias) e a sensibilidade de alguns antibióticos comuns.

– Doutor, eu já sei. Estou com infecção. Desses aqui assinalados, qual o senhor acha melhor?

Havia círculos ao redor dos antibióticos sensíveis. Olhei para todos eles e disse:

– Esse aqui é o mais barato, é tão efetivo quanto os outros, mas seu médico deve conversar com você sobre a melhor escolha.

Ela me dirigiu um sorriso um pouco envergonhado e disse:

– Doutor, eu já tive cistite mais de dez vezes. Sei o que acontece. Sei também o que o médico vai fazer quando segurar os exames. Ele vai olhar para o resultado do antibiograma e receitar o mesmo remédio que está escrito na caneta dele. Vai pedir que eu tome uma semana e repita os exames em 15 dias. Eu decorei passo a passo o que ocorre na consulta. Não há como ser diferente.

Tentei argumentar que sempre é bom conversar sobre alternativas de tratamento e as possíveis causas. Insisti que ela fosse ao seu médico.

– Não vou doutor, muito trabalho. Não tenho convênio, só seria possível ir no posto de saúde. Esses exames fiz aqui no hospital porque conheço as gurias do laboratório. Nunca alguém me disse qualquer coisa diferente do que eu lhe relatei.

Não há como negar que a biomedicina tecnocrática pouco tem a oferecer além do que ela sempre recebeu. Reconhecer as alterações químicas da urina, a bactéria envolvida no processo e propor sua posterior eliminação com recursos farmacológicos. “Tchau, até a próxima”.

Nenhuma pergunta sobre as razões últimas que a levam a insistir em um sintoma da sua genitalidade. Sequer a curiosidade para saber o que existe por trás do véu dos sintomas, ou como essa ocorrência repetitiva se encaixa na narrativa afetiva de sua vida. Nenhuma tentativa de contextualizar suas dores e seu sofrimento renitente. Nenhum questionamento sobre sua história, onde alguém, de forma insistente e reiterada, bate à sua porta para lhe dizer uma verdade escondida e inconveniente. “O que a boca cala, o corpo fala”, mas quem aceita escutar as palavras do corpo se as drogas são muito mais efetivas para lhes silenciar? Talvez seja verdade que a Tecnologia diagnóstica e indústria farmacêutica são o ChatGPT da Medicina.

Mesmo sem confessar, não havia como negar que, diante do cenário dos seus atendimentos até então, ela havia feito a melhor escolha. Insisti mais uma vez para ela procurar seu médico “nem que seja para conversar”, e ela agradeceu.

Retomei meu rumo em direção à cafeteria e ouvi, pela última vez, sua voz me chamando enquanto me afastava.

– Ei doutor, sem querer abusar, mas… por acaso está com seu receituário aí?

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Medicina e Medo

”The Doctor”, 1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate – Londres. (*)

Qual a razão da crescente insatisfação de tantos pacientes com os abusos cometidos por uma medicina cada vez mais alienante, técnica, fria e desumana, onde a intervenção e o uso de drogas assumem a característica mais marcante dessa atuação? Hoje em dia a cena ancestral do médico compassivo, atencioso, dedicado e atento que, ao lado do leito, anota em silêncio as queixas e sinais dos enfermos, dá lugar aos exames, as cirurgias e as drogas, alienando progressivamente o paciente de sua própria cura.

Quando os médicos atuam de forma abusiva – em especial no parto, onde a intervenção se tornou a regra e a fisiologia ocorrência rara – assim o fazem para garantir a sua proteção, e não por serem pérfidos, interesseiros ou ignorantes. Se um médico resolve esperar diante de um impasse clínico e algo inadequado ocorre a culpa será invariavelmente considerada sua e, a partir de então, sua vida se tornará um inferno com os ataques que surgirão da própria corporação. Por outro lado, se ele intervém e o paciente – como resultado da intervenção – tem algum problema grave (ou mesmo vem a óbito) a responsabilidade se dilui, e a perspectiva que sobressai é de que o resultado funesto foi devido ao risco natural e inexorável de qualquer procedimento, o qual ocorreu apesar do tratamento médico adequado. Isso porque a tecnologia é um mito, e por isso não pode ser jamais questionada.

A isto costuma-se chamar de “imperativo tecnocrático”, que determina que a existência de tecnologia para tratar um determinado caso obriga a sua utilização, mesmo que os resultados desta intervenção não sejam comprovadamente melhores, e aqui a cesarianas ocupam um lugar de destaque como grande exemplo deste tipo de tendência. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Ou seja, o uso de tecnologia vai sempre blindar o médico, dar-lhe segurança e oferecer a ele proteção profissional. Na obstetrícia, as cesarianas são “salvo condutos” para garantir segurança aos profissionais. Raríssimos médicos são processados por cesarianas abusivas mas qualquer um que ouse atender partos, mesmo quando dentro de parâmetros reconhecidos no mundo inteiro, incorre em sério risco profissional. A escolha pelo tratamento mais seguro para si é compreensível em qualquer profissão – médicos não são kamikazes – apesar de não ser justificável sob qualquer parâmetro ético; médicos atuam sob o signo do medo e sabem o quanto um mau resultado pode destruir uma carreira tão arduamente construída.

Desta forma, não são os médicos que precisam mudar; é a própria sociedade, seus valores, seu sistema jurídico, sua mídia, seu sistema de saúde e os próprios pacientes, que invariavelmente não vão titubear em deslocar a dor e a frustração de uma perda para a pessoa do médico, em especial quando a postura deste é contra-hegemônica e agride o modelo tecnocrático e intervencionista da medicina capitalista. Imaginar que a mudança na atenção é uma responsabilidade dos médicos é injusto e inútil; eles apenas fazem a Medicina que a sociedade lhes solicita e autoriza. Para mudar a atenção à saúde é necessário suplantar o capitalismo e transformar a Medicina, para que ela deixe de ser mercantilista e baseada no lucro das grandes corporações, e passe a ser um sistema de cuidados centrado na pessoa, e não nos ganhos obtidos com a doença.

Só então poderemos constatar que, quando a sociedade se transforma, os médicos (juízes, advogados, políticos, policiais, bombeiros, militares, etc) se transmutam como consequência. Porém, essa mudança é dialética, pois que o exemplo de alguns profissionais também vai moldar a forma como a sociedade enxerga os evento da atenção à saúde, gerando assim mais consciência, que por sua vez será agente de transformação. Não existe, portanto, justificativa para que os médicos não se mobilizem para que a sua ação médica seja impulsionadora da mudança.

A prática médica é a síntese dos valores da sociedade onde atua, não sua causa precípua. Sociedades violentas produzem uma medicina truculenta e intervencionista; nas sociedades baseadas na paz e na democracia a Medicina vai fomentar uma saúde centrada na pessoa e na responsabilidade compartilhada entre cuidador e paciente. Entretanto, sempre devemos cobrar dos médicos que compreendam a verdadeira amplitude de sua ação social, e não se permitam sucumbir às pressões desumanizantes a que são submetidos.

(*) O quadro nos remete a um momento dramático na vida do pintor Samuel Fields. Nele está retratada a morte de seu filho na noite de Natal do ano de 1877, mas também está expressa a homenagem ao médico, atento, circunspecto e prestativo, que assistiu seu filho até o derradeiro momento quando, por fim, a vida do menino evadiu-se do corpo. Na imagem podemos ver seu estúdio, os móveis, o ambiente lúgubre que aguardava o desfecho mórbido, o desespero da mãe e o olhar apático do pai – o próprio Samuel. Apesar de ser uma imagem que nos remete ao dramático e trágico da existência ela igualmente nos mostra que a função do médico não é “curar os doentes”, mas estar ao seu lado, aliviando as dores e sofrimentos, curando quando for possível, mas sendo sempre a mão fraterna a oferecer o cuidado – o elemento ancestral que nos transformou em humanos.

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Histórias de Horror

As “Histórias Horríveis de Parto” (gênero literário muito comum na cultura ocidental) via de regra se baseiam em narrativas de terror onde as pacientes são objetos da ação de uma natureza traiçoeira. São histórias de pânico e terror, que são oferecidas às gestantes na medida em que avançam a gestação e, depois, o trabalho de parto.

Na conclusão final destas histórias surgem duas verdades cristalinas: de um lado a defectividade assassina dos corpos fracos e mal feitos das mulheres e do outro lado a capacidades excelsa dos médicos para agir e salvar vidas, que certamente seriam ceifadas caso o nascimento ficasse somente nas mãos delas.

Escutei essas histórias durante 40 anos e até já fui testemunha de casos em que médicos astutos e corajosos efetivamente salvaram vidas, mas posso lhes garantir que na maioria esmagadora das vezes os profissionais se limitavam a consertar os estragos que não existiriam sem a a interferência indevida dos profissionais e das instituições no processo fisiológico do parto.

Acreditar cegamente nas histórias contadas pelos atores que detém o controle sobre o parto é sucumbir ao poder que eles têm de valorar esta narrativa. Este é um caminho certo para a submissão. Ter uma postura crítica diante desse tipo de histórias é importante para olhar o fenômeno do nascimento sem as capas espessas que a cultura construiu ao seu redor.

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Vergonha

Sobre a foto de uma médica que publicou os “nascimentos de novembro”, em que todos eram cesarianas.

Na minha perspectiva, atacar o intervencionismo de cesaristas, mostrando o efeito deletério de alienar as mães do processo de nascimento, não causa o resultado que esperamos. Temos a ilusão de confrontar o sujeito com uma realidade que lhe cause vergonha, mas raramente se consegue produzir este sentimento.

(A vergonha só ocorre entre os obstetras chamados “liberais”, ou seja, os que reconhecem o abuso mas se julgam impotentes para contê-lo. Segundo Marsden Wagner, estes são os mais perigosos. Conheci vários…)

Essa ideia de afrontar os defensores da tecnocracia tem, via de regra, o mesmo efeito de dizer para um apoiador de Moro que o ex juiz subverteu a lei, corrompeu sua imparcialidade, agiu ilegalmente apenas para tirar Lula do páreo e com isso elegeu Bolsonaro. Ao contrário de ficar constrangido, esse sujeito vai olhar para você surpreso e dirá: “Claro, mas é por isso mesmo que o apoiamos!!!”

Para muitos cesaristas, a cesariana é o aprimoramento natural do mecanismo de parto, artifício criado pela tecnologia humana para tirar as mulheres da barbárie e colocá-las na civilização. Esta cirurgia é aclamada por eles como um avanço inquestionável da ciência, da mesma forma que um cavalo avança sobre o andar a pé, o automóvel sobre a tração animal, e os aviões rompem os limites do solo. A cesariana é o destino natural do parto e questioná-la significa virar as costas para o próprio progresso humano.

Essa visão teleológica da tecnologia como processo libertário é ensinado e estimulado na escola médica – em especial na obstetrícia – como um dos pontos centrais do rito de transformação que ocorre com todo estudante de medicina. Se entendemos que a medicina se estabeleceu e fortaleceu exatamente pelo uso dessas técnicas e equipamentos, que sentido haveria de abandoná-los – ou mesmo criticá-los – após tantos séculos investindo no estabelecimento desse paradigma?

O uso da tecnologia em obstetrícia é o ponto nevrálgico que sustenta sua prática. Qualquer crítica ao seu uso será rechaçada como anátema ou aberração. Se a crítica vier de dentro, será heresia e traição.

Acho que os cesaristas não se ofendem; apenas lamentam nossa falta de amor pelas mulheres cujas cesarianas as salvaram do sofrimento imposto por uma natureza madrasta

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Médicos cubanos

Acho chocante quando algumas pessoas tentam atacar a medicina cubana usando velhos chavões imperialistas, apenas pela incapacidade de enxergarem a medicina por uma perspectiva mais abrangente. Colocam os “médicos” cubanos entre aspas como se fossem profissionais de segunda classe. Nada poderia ser mais equivocado.

Certamente que para estes críticos o paradigma de Medicina evoluída se aproximaria da “estética médica americana”, que confunde tecnologia, sofisticação, drogas e intervenção com qualidade na atenção, o que é um erro comum, tendo em vista a avalanche de programas americanos de TV sobre médicos e hospitais que sempre investiram nessa imagem. Marcus Welby MD, Dr. Kildare, ER, Plantão Médico, The Good Doctor, Grays Anatomy, Dr. House e até Breaking Bad exploram uma visão mercantil e tecnocrática da medicina inserida no capitalismo. É compreensível que a visão do que seja um médico entre nós seja tão distorcida ou, no mínimo, enviesada, desreconhecendo outras formas e perspectivas de diagnóstico e tratamento.

Eu costumo dizer que a aplicação estrita e meticulosa da MBE – Medicina Baseada em Evidências – tornaria a prática médica no ocidente tão diferente do que a conhecemos que ela seria vista com desconfiança por um observador desavisado. Um médico que pratica pura ciência médica não seria reconhecido facilmente, tão distante ele estaria da imagem que a propaganda criou sobre como fala, o que diz, o que veste, sua classe social e sua postura.

Pois essa medicina tecnológica, inserida no paradigma da tecnocracia, do patriarcado e do capitalismo tem seu maior exemplo na medicina americana, essa mesma que é vendida como padrão para o planeta inteiro. E não por acaso, essa é a de pior resultado entre todas as nações do primeiro mundo. Como exemplo cito o fato de que os Estados Unidos estão em 50o lugar em mortalidade materna e 52o lugar em mortalidade neonatal, MUITO atrás de Cuba, para vergonha dos meus amigos gringos. E a mortalidade materna americana, ao contrário do resto do mundo, cresce ao invés de cair.

Se há uma medicina que merecia estar entre aspas é a nossa, cópia mal acabada de um modelo ruim, caro e ineficiente. A medicina cubana, ao se mostrar integrativa, pessoal, afetiva, preventiva e holística causa irritação em quem se acostumou a ver uma prática médica exógena, invasiva e endorcista. Ao contrário da cubana, a nossa obtém mais lucros quanto mais doente o paciente fica.

Por estarmos ainda carregados de uma visão etnocêntrica nos tornamos incapazes de ver formas alternativas de assistência e abordagem. Por isso esse triste preconceito.

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Surdez

Acabei tomando contato com a medicina americana em diversas ocasiões, seja ao consultar com um terapeuta “holístico” em Cleveland há uns dez anos, seja pelos inúmeros contatos que tive durante as consultas a que fui convidado a assistir de amigos meus que moram por lá.

Eu já descrevi anteriormente as minhas impressões sobre a assistência médica americana, que pode facilmente ser considerada a mais tecnocrática das práticas de saúde do mundo, entretanto, pensei em mais uma vez descrever minhas ideias. Para a medicina americana – ou estadunidense – o ápice da atenção é oferecido através do acesso e uso da tecnologia – o mito da transcendência tecnológica. Quando mais sofisticados os testes e tratamentos, mais valorizados são os médicos pela cultura como um todo – e isso inclui médicos e pacientes. A adesão ao paradigma exógeno de doença e adorcista de terapêutica é explícito e propagado como superior: tecnologia é sinal inequívoco de qualidade.

Para além desse paradigma existe um afastamento quase religioso dos profissionais em relação aos pacientes. A vida do médico fora do ambiente das consultas é algo interditado àqueles. O cenário onde se encenam os encontros são os únicos locais onde os médicos serão acessíveis. Lembro vividamente do assombro do marido americano de uma paciente que atendi em Porto Alegre quando ofereci a ambos um cartão onde constavam os telefones da minha casa e o meu celular. “Eu nunca vi isso em toda a minha vida“, disse ele assombrado.

Os consultórios padrão de médicos americanos ficam em “centros profissionais”, um modelo multiprofissional que tentam implantar no Brasil também. São salas gigantes onde muitos funcionários trabalham, desde as recepcionistas até as “auxiliares de médicos”, que são profissionais formadas para dar assistência ao trabalho de consultório. São elas que medem seus sinais vitais – vestidas com as indefectíveis roupinhas de bloco cirúrgico – fazem perguntas típicas da anamnese, escrevem suas queixas, avaliam sua receita anterior e anotam tudo em sua ficha. Saem da sala com um sorriso e avisam que o doutor em breve chegará.

Minutos depois chega o(a) medico(a) acompanhado(a) por esta assistente, a qual segura o tablet com as anotações na mão. Fica claro pela sua postura e atitude que a conversa não vai demorar mais do que 5 a 10 minutos. Também é óbvio que as consultas obedecem um modelo “fordista” de linha de montagem. Enquanto a auxiliar aplicava o questionário o médico estava em outra sala, com outra auxiliar, e enquanto nos atendia outra auxiliar já preparava a próxima paciente. Via de regra, o médico dá uma olhada superficial nas anotações da assistente (queixas, drogas, exames, etc) e faz algumas perguntas absolutamente simples sobre o caso. Faz a consulta de pé, na frente da paciente, com a fantasia típica de médico (avental, estetoscópio no pescoço, canetas, brilhantina no cabelo, perfume, etc). Quase nunca olha nos olhos; 70% do tempo olha para a ficha.

Quando minha amiga explicou que eu era “um médico do Brasil visitando o país” apenas sorriu como que a dizer “poderia ser o Papa, não faz diferença alguma”. Não foi arrogante, sequer antipática, apenas agiu como se eu não estivesse ali. E pela conversa, minha presença não faria mesmo nenhuma diferença. Inobstante a especialidade do profissional a consulta é absolutamente técnica, objetiva e específica, nenhuma questão pessoal, afetiva ou emocional é tangenciada, por mais que estes temas sejam evidentes na queixa principal.

Qualquer pergunta que seja de outra especialidade – por exemplo, perguntar para um gastroenterologista sobre o aparecimento de feridas nos pés – é rechaçada imediatamente com a indicação para procurar um colega. Não se misturam as especialidades. A consulta termina com a paciente sendo orientada a passar no guichê para pegar a receita, a nova solicitação (gigantesca) de exames e os remédios, que são vendidos ali mesmo.

Para um profissional com formação em homeopatia, como eu, ou que fez um longo percurso pela psicanálise – onde uma consulta pode durar 60, 90 minutos divagando por inúmeros pontos significantes da vida do paciente – o modelo técnico das consultas americanas é chocante. Olhar para um paciente como sendo formado por órgãos estanques e desconectados, com um corpo fatiado em especialidades, medicado de forma ostensiva, desconsiderado enquanto sujeito, objetivado e coisificado em seus constituintes químicos e hormonais, é uma experiência impressionante e chamativa.

Não posso dizer que esse é o pior modelo de atenção à saúde que eu já vi, até porque não me sinto em condições de ser o juiz desse certame. Todavia, a incapacidade de enxergar a energia vital imanente do corpo que sofre, o laço etéreo e espiritual que une os significados aos sintomas e o sofrimento psíquico como ferramenta diagnóstica que denuncia as características últimas do sujeito é para mim um desperdício brutal da arte médica.

Se é verdade que “aquilo que o paciente traz como sintoma é seu verdadeiro tesouro”, a surdez contemporânea aos lamentos profundos das almas é o mais claro sintoma da doença da Medicina. Que não sejamos também nós surdos à dor que ela tão evidentemente nos mostra.

Veja mais sobre “Medicina Americana” neste outro post publicado em 2017.

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Vigilância fetal

Sobre vigilância fetal:

Minha pergunta é simples, até singela: haverá uma justificativa comprovada dos benefícios da vigilância ostensiva sobre o bem estar fetal se forem retirados todos os condicionantes tecnocráticos da assistência ao parto?

A ausculta fetal faz parte do cenário da assistência ao parto, assim como os exames de toque sequenciais e sistemáticos. Estes últimos só agora – e muito timidamente – começam a ser questionados. Já a ausculta se mantém intocada e impávida. Ambos os exames produzem poderosas mensagens subliminares: o profissional é quem diz do andamento do parto, e estabelece o bem estar do bebê. Só ele tem o livro de códigos para saber o que houve, quanto falta e se tudo está bem. As mulheres e seus maridos são passivos observadores da tradução que o profissional faz a partir destes sinais. Um poder gigantesco, acreditem…

Porém, sempre houve em mim uma dúvida corrosiva sobre a real necessidade destas invasões, ou quais os limites desta intervenção. Se fosse possível eliminarmos o stress, o isolamento (físico e psíquico), o medo, o pânico induzido, a separação, as drogas indutoras, os anestésicos, a linguagem agressiva e a própria hospitalização – ápice da objetualização da gestante – continuaria sendo válido o tratamento do bebê como “bomba relógio”, prestes a explodir? Qual o real percentual de bebês que produzem transtornos perceptíveis em partos livres do artificialismo da medicina atual? Talvez ninguém tenha essa resposta…

Quem sabe esta ação panóptica sobre o bebê se justifica apenas pelo ordenamento tecnológico que o antecede?

Será esta ausculta o resultado natural que criamos para remendar o estrago anterior criado pela profunda desnaturalização do parto pelas culturas contemporâneas?

Parto desnaturalizado = punch 1
Vigilância fetal = punch 2

Ou…

A polícia brutal que temos e a vigilância sobre pretos e pobres não é o resultado da sociedade de classes? Eliminadas as castas e a brutalidade de sua injustiça quanto ainda precisaríamos de polícia?

Creio que tratamos como necessidade o que é, em verdade, a criação artificial derivada de uma deturpação.

Não é?

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Cultura do medo

The nurse relaxing Jerald before the milk challenge during the Labor Games.

Em “Media Representations of Pregnancy and Childbirth: An Analysis of Reality Television Programs in the United States”, os pesquisadores Morris e McInerney (2010) descreveram a resultados de sua análise de conteúdo de 85 reality shows que retrataram 123 nascimentos, exibidos nos EUA no “Discovery Health” e no “The Learning Channel” em novembro de 2007, concluindo que “os corpos das mulheres eram tipicamente exibidos como incapazes de dar a luz um bebê sem a intervenção médica “. (Ways of Knowing about Birth – Robbie Davis-Floyd, no prelo)

Não é de se admirar que, na cultura contemporânea, o parto seja visto como a “crônica de um desastre anunciado”. A sociedade, através de seus meios de controle social (a televisão em especial), cria e amplifica a ideia central da defectividade feminina e sua extremada dependência da ciência e da tecnologia para superar seus desafios fisiológicos. Nesta abordagem, os heróis são sempre os médicos e a tecnologia, responsáveis últimos pelo resgate das pobres e frágeis mulheres de sua natureza imperfeita e traiçoeira. Nos filmes, documentários e séries, a gestação é quase sempre retratada como um momento dramático, perigoso e causador de tragédias. Como dizia meu obscuro professor na residência, “uma grávida é um equilibrista nas alturas sobre a corda bamba, e vocês são a rede“. Por que tanto espanto quando as mulheres descrevem o parto como algo que lhes causa terror e medo? A quem cabe a culpa por uma “cultura de medo” sobre o nascimento?

A fragilidade do organismo das mulheres e sua incapacidade de parir com segurança sem a intervenção patriarcal da obstetrícia são mitos que sobrevivem ao tempo, mas cuja disseminação não se expressa num vácuo conceitual. Pelo contrário; são parte essencial do controle dos corpos, o biopoder e a dominação patriarcal sobre a sexualidade feminina.

A mudança na forma como entendemos o parto nas sociedades ocidentais não se fará pela simples disseminação de informação de qualidade, como ingenuamente acreditam os racionalistas. Esta transição é um processo cultural, e só se dará obedecendo os movimentos de fluxo e contrafluxo de qualquer outro fenômeno social. Na atual conjuntura, a abordagem intervencionista da obstetrícia ocidental ocorre por meio de um acordo mútuo entre as mulheres e seus médicos, que se baseia nos valores fundamentais e na abordagem geral da vida inserida na cultura tecnocrática.

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Free Birth

“Free Birth” se refere às mulheres no mundo ocidental que voluntariamente abandonam o sistema de saúde e decidem parir livremente, por sua conta e risco. Minha ideia é de que tal abandono dos recursos médicos (com o qual não concordo) é consequência da negligência do modelo biomédico contemporâneo para com as necessidades básicas (fisicas, psicológicas, sociais, emocionais e transcendentais) das mulheres, algo que os médicos sequer conseguem perceber em função de estarem à deriva no oceano paradigmático da tecnocracia.

Ou, nas palavras da antropóloga Wenda Trevathan, este afastamento está baseado “na falha do sistema médico de muitas nações industrializadas em reconhecer e suprir as reais necessidades das mulheres que atravessam o rito de passagem chamado parto”.

“Parto Livre” é o sintoma; a distância do sistema médico do que desejam as mulheres para si e para seus filhos é a doença.

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Medicina americana

Sempre que venho à América acabo acompanhando amigos em suas visitas aos seus médicos. Certamente já encontrei com mais de dez desses profissionais, entre jovens e velhos e de inúmeras especialidades. Alguns aspectos em comum me chamam a atenção entre todos os atendimentos:

  1. Os consultórios são mortos. Não há vida. São padronizados, frios, inespecíficos. Parecem entrepostos na estrada onde se vende junk food. Quando se chega à recepção poderíamos imaginar ser uma agência de seguros, uma secretaria de escola ou uma repartição pública. Muita propaganda nas revistas médicas, nas paredes, nos panfletos. A recepção é gigante, maior do que qualquer consultório onde já trabalhei.
  2. Muitos funcionários. Atrás do guichê de vidro sempre umas 4 funcionárias com computadores, fichas, papéis do seguro. Todas com modelitos de hospital.
  3. Pré-consulta com uma funcionária (auxiliar médica) que faz perguntas “sim-não” sobre fumo, drogas, gestação, abortos, alergias, etc. e que vê sua pressão, peso, etc. Depois de alguns minutos chega o(a) médico(a).
  4. A consulta dura poucos minutos e tem um formato absolutamente técnico. O profissional não faz nenhum tipo de anotação; tudo é feito pela sua secretária ao lado, com uma ficha ou um notebook no colo. Nenhum nível de empatia com o paciente; nenhum assunto delicado é abordado. Não há espaço para qualquer tema que não seja específico da sua especialidade. Falta total de privacidade, por isso minha presença foi sempre tolerada. Afinal, que mal haveria em testemunhar uma consulta que sequer arranha a crosta dos sintomas que encobrem verdades inconvenientes?
  5. Capitalismo e tecnocracia por todos os lados. Nenhuma consulta se fala especialmente de dietas, saúde emocional ou estilos de vida, apenas drogas, testes e procedimentos. Na saída do consultório passa-se por um balcão de venda de produtos da especialidade.
  6. O sofrimento humano, com todas as sutilezas, especificidades, paradoxos, contradições e subjetividades cabe em uma palavra: stress. “Esse sintoma está muito relacionado ao stress”, dizem, mas ao mesmo tempo afastam qualquer proximidade com o tema. Não interessa se stress é a morte que se anuncia, a perda de dinheiro, ressentimentos, mágoas, tristezas, ódio. Para estes profissionais nada disso ajuda a entender o quadro. Pelo contrário, apenas atrapalha.
  7. As consultas duram 15 minutos, se tanto. Objetividade e eficiência industrial. Pode-se ver a dupla médico-assistente sair de uma sala para a próxima, onde outro paciente já o aguarda, e assim sucessivamente. Os custos que observamos em cada canto, na suntuosidade asséptica das salas e no grande número de profissionais precisam ser pagos de alguma forma. O ritmo de entrada e saída de pacientes é frenético.
  8. Receitas recheadas de drogas. Drogas estas que produzirão seus desajustes específicos que vão requerer mais drogas, mais testes. Um ciclo vicioso que só termina com a morte, quando então poderemos dizer “Fizemos de tudo“.

Se eu acredito que o sintoma é a voz de uma alma que pede para ser escutada, cuja expressão é a maior riqueza de um paciente, por certo que tais consultas são mordaças tecnológicas para impedir que os clientes possam falar de suas vidas e de suas dores. A verdade do paciente é sistematicamente obliterada. Pouca coisa poderia descrita como mais contrária aos pressupostos básicos da arte de curar do que impedir que a dor encontre uma via de escape nas palavras.

Olhando para os olhos marejados da minha amiga diante das palavras insípidas do médico à sua frente eu me compadeci e por momentos imaginei que ela poderia interromper o solilóquio enfadonho e tedioso do especialista e murmurar…

Rosebud, doutor

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