Certa feita eu caminhava pelos corredores do hospital quando fui interrompido por uma funcionária do setor de contas, a quem eu já conhecia faz tempo. Ela me disse:
– Dr. seria pedir muito o senhor olhar esse exame para mim?
Como estava “de boas” apenas esperando para tomar meu cafezinho pós almoço, aceitei. Segurei com as mãos as duas folhas que ela me passou.
Eram exames de urina clássicos. Um exame comum de urina (que muitos chamam de “EQU” e outros “urina 1”) e uma urocultura. O primeiro faz uma análise química e celular da amostra e o segundo uma análise do crescimento de bactérias, onde normalmente se acrescenta um teste de sensibilidade aos antibióticos. Olhei rapidamente os exames e vi que demonstravam de forma inequívoca uma infecção urinária. Leucócitos em profusão, bactérias, etc. A cultura de urina mostrava scherichia coli (a top de linha das infecções urinárias) e a sensibilidade de alguns antibióticos comuns.
– Doutor, eu já sei. Estou com infecção. Desses aqui assinalados, qual o senhor acha melhor?
Havia círculos ao redor dos antibióticos sensíveis. Olhei para todos eles e disse:
– Esse aqui é o mais barato, é tão efetivo quanto os outros, mas seu médico deve conversar com você sobre a melhor escolha.
Ela me dirigiu um sorriso um pouco envergonhado e disse:
– Doutor, eu já tive cistite mais de dez vezes. Sei o que acontece. Sei também o que o médico vai fazer quando segurar os exames. Ele vai olhar para o resultado do antibiograma e receitar o mesmo remédio que está escrito na caneta dele. Vai pedir que eu tome uma semana e repita os exames em 15 dias. Eu decorei passo a passo o que ocorre na consulta. Não há como ser diferente.
Tentei argumentar que sempre é bom conversar sobre alternativas de tratamento e as possíveis causas. Insisti que ela fosse ao seu médico.
– Não vou doutor, muito trabalho. Não tenho convênio, só seria possível ir no posto de saúde. Esses exames fiz aqui no hospital porque conheço as gurias do laboratório. Nunca alguém me disse qualquer coisa diferente do que eu lhe relatei.
Não há como negar que a biomedicina tecnocrática pouco tem a oferecer além do que ela sempre recebeu. Reconhecer as alterações químicas da urina, a bactéria envolvida no processo e propor sua posterior eliminação com recursos farmacológicos. “Tchau, até a próxima”.
Nenhuma pergunta sobre as razões últimas que a levam a insistir em um sintoma da sua genitalidade. Sequer a curiosidade para saber o que existe por trás do véu dos sintomas, ou como essa ocorrência repetitiva se encaixa na narrativa afetiva de sua vida. Nenhuma tentativa de contextualizar suas dores e seu sofrimento renitente. Nenhum questionamento sobre sua história, onde alguém, de forma insistente e reiterada, bate à sua porta para lhe dizer uma verdade escondida e inconveniente. “O que a boca cala, o corpo fala”, mas quem aceita escutar as palavras do corpo se as drogas são muito mais efetivas para lhes silenciar? Talvez seja verdade que a Tecnologia diagnóstica e indústria farmacêutica são o ChatGPT da Medicina.
Mesmo sem confessar, não havia como negar que, diante do cenário dos seus atendimentos até então, ela havia feito a melhor escolha. Insisti mais uma vez para ela procurar seu médico “nem que seja para conversar”, e ela agradeceu.
Retomei meu rumo em direção à cafeteria e ouvi, pela última vez, sua voz me chamando enquanto me afastava.
– Ei doutor, sem querer abusar, mas… por acaso está com seu receituário aí?