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Fim

Alguns dizem que a atitude de Antônio Cícero de sair do Brasil para por fim à sua vida de vontade própria se deu porque os políticos do Brasil são atrasados e não aceitam que alguém radicalize sua autonomia e a escolha do próprio destino. Não concordo. Alguém acha mesmo que um governo, por sua própria vontade, poderia liberar a eutanásia através de um canetaço? Poderia, pela mesma lógica, ocorrer a liberação do aborto pela vontade do presidente? Desculpe, mas isso é puro paternalismo. Aguardar que as autoridades públicas e os políticos tomem a iniciativa para este tipo de transformação cultural é uma enorme ingenuidade. As leis vem à reboque das demandas populares, e não o contrário. Essas modificações relacionadas ao direito à vida só podem tomar corpo através da mobilização popular.

Pergunto: pode um governo decidir contrariamente à vontade de seu povo? Pode ele um tomar decisões que contrariam os valores expressos da população? O direito de um sujeito tirar a própria vida pode ser debatido, ,as quero rtatar apenas das formas de fazer com que essa decisão seja levada aos termos da lei. Quero debater as vias pelas quais esta realidade pode ser modificada, levando-se em consideração a estrutura política e o sistema de poderes vigente. Aqui no Brasil, se você quiser dar ao sujeito o direito de matar alguém (mesmo que a si mesmo) é necessário um debate intenso com a sociedade, obrigando o choque benéfico e construtivo do contraditório. O fato do nosso governo (e a imensa maioria do mundo) se posicionar contra o suicídio assistido e a orthotanásia é porque ainda não houve interesse da população em debater esse tema. E não há mesmo!! Por certo que a eutanásia (ou a orthotanásia, um termo melhor) é um tema sério e importante mas, como eu disse, o apelo popular certamente ainda é minúsculo. Quantas pessoas estão interessados no tema da abreviação voluntária da vida? Poucos, muito poucos. Quantos se mobilizariam por esta causa? Quase ninguém. Já os governos são sempre reativos, assim como as leis: reagem às demandas populares. Não cabe ao governo tomar decisões impopulares sobre temas profundos baseado em abstrações ou ideologias.

Eu sou favorável ao suicídio assistido, mas reconheço minha condição de voz minoritária num pais de cultura pela vida. Na condição de médico participei de inumeros debates e todos eles se chocavam com a questão da proteção profissional, e esta mudança se dará somente através das leis, e estas estão na mãos dos legisladores eleitos pelo povo. Com a atual composição do legislativo brasileiro – conservador e até fasdcista – o que se poderia esperar? Portanto, de nada adianta chamar brasileiro de tacanho, atrasado ou paternalista se a única forma de transformação que funciona é a demanda popular fazendo pressão nas casas legislativas. Minha posição atual é acreditar que essas mudanças só podem surgir pelo embate protagonizado pela política. Os políticos são se adaptam às demandas e bandeiras populares. A orthotanasia não é popular, e desconfio que o aborto seguro tem não é. Se hoje fossem instituídos (por canetaço) haveria mobilização popular contrária à sua aplicação. Portanto, a solução não será por eles mas através deles, após a necessária pressão popular, e esta pressão vem da sociedade civil organizada. Ainda não há no Brasil massa crítica para essas transformações radicais em um tema tão delicado como o direito à vida.

Com o aborto ocorre a mesma lógica: quantas mulheres estão dispostas (como as argentinas) a sair às ruas para lutar pelo direito ao aborto? Num país onde Edir e Malafaia são ídolos populares fica difícil escapar das perspectivas conservadoras. Ainda há insuficiente mobilização pelo direito ao aborto. E tem outro problema, aliás, gigantesco: enquanto não houver proteção legal para as equipes tanto para o aborto quanto para a orthotanásia, nenhum médico vai se arriscar a uma ação, por mais humanista que seja, que em última análise poderá levá-lo à prisão. Para levar adiante estas iniciativas seria necessária uma nova mentalidade, que só pode ocorrer no seio da própria sociedade civil. Acho difícil para o temperamento afetivo, familiar, gregário e alegre do nosso povo que se levem adiante ações ligadas à morte, seja dos fetos, dos velhos ou dos doentes. Não é da nossa cultura, e por isso essas mudanças ocorrem primeiro em países germânicos, como Holanda, Suíça, Finlândia, etc. Seria preciso um debate nacional longo, demorado e profundo antes de se eleger um poder legislativo capaz de criar leis tão avançadas e promover tais mudanças.

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Execução

Li hoje o texto de um psicólogo que defendeu a pena de morte para o menino de 9 anos que atacou e matou animais em um canil. Não quero tratar diretamente do crime aqui porque isso sempre mobiliza o que há de pior em nós; esse tema mobiliza muitos sentimentos primitivos, e o resultado é sempre um incentivo ao ódio. Todavia, há um preceito jurídico que diz que a sentença nunca pode se basear na voz da vítima, pois que ela estará sempre carregada de emoções obliterantes que cegam o juízo racional. Nesse caso da morte dos animais, somos todos as vítimas, e nesse momento a indignação e a empatia com os bichinhos nos impede uma análise racional e nos enche de sentimentos de indignação e ódio. Compreensível.

Entretanto, ao ler os comentários, fiquei igualmente indignado com a apologia punitivista que muitos fizeram apoiando a morte dessa criança. Sim; tanto o articulista quanto quem comentou o crime na postagem do Facebook acreditavam que o melhor seria a simples eliminação do menino. Repito, um menino de 9 anos de idade!! Acho curioso como a morte de cães num canil mobilizou mais pessoas que o massacre em Gaza, e a solução expressa por muitos foi a simples execução da criança, diante da “impossibilidade de cura dos psicopatas”. E isto foi dito até pelas mulheres, prováveis mães, que se aliaram à sentença de morte da criança. Uma delas chegou a propor prisão “perpétua” até 24 anos seguida da execução quando chegar a esta idade!!

Quando vejo esse tipo de manifestação fica um pouco mais fácil entender o bolsonarismo, que é uma espécie (ou variante) do fascismo que circula na extrema direita mas tem representantes até na esquerda. É característico dessa forma de pensamento o punitivismo irracional, tosco e vingativo, na crença de que essa ação definitiva – em especial a pena de morte – poderia trazer algum benefício social. Pior ainda é dizer que o menino “merece a morte porque não existe cura”, como se essa fosse a única razão para manter um criminoso vivo.

Lembrem apenas que defender a vida desse menino (assim como de qualquer pessoa, culpada ou inocente) não significa complacência com seus crimes, apenas a defesa da vida como bem inquestionável, acima de qualquer outra consideração social. Ao mesmo tempo, defender abertamente, como o articulista, o assassinato de um menino de 9 anos (por ordem do Estado) significa apoiar o extermínio de pessoas com distúrbios mentais – como a psicopatia – até mesmo em menores de idade. E também tenham em mente que a eliminação de pessoas com distúrbios psíquicos incuráveis foi levada adiante por um sujeito chamado Adolf, há pouco tempo, e seus seguidores ainda hoje são árduos defensores dessa proposta.

Aktion T4 (Ação T4) foi o nome usado nos julgamentos pós-Segunda Guerra Mundial para o programa de eugenismo e eutanásia da Alemanha nazista, durante o qual médicos assassinaram centenas de pessoas consideradas por eles “incuravelmente doentes, através de exame médico crítico”.

É possível compreender a indignação de todos com estes casos e ao mesmo condenar as ações punitivistas. As primeiras são fruto direto da empatia e da emoção; as segundas não podem ser contaminadas por emocionalismos ou por sentimentos de vingança. O símbolo da justiça é de uma mulher usando uma venda nos olhos, e para isso existe uma razão. É exatamente porque ela precisa ser fria, infensa às emoções e aos instintos mais irracionais; é compreensível tê-los, mas inadmissível usá-los. É compreensível que um serial killer mobilize emoções de ódio e raiva em todos nós, mas um juiz, diante de um caso como este, deve aplicar a lei, mesmo que suas emoções também estejam afetadas (o que seria compreensível, mas não justificável). É compreensível que as pessoas aceitem ações punitivistas no calor da dor e pela indignação, mas não é justificável que leis sejam feitas ou ações sejam executadas motivadas por estes sentimentos. Em suma, para crianças entenderem: é compreensível que você fique furioso com seu filho desobediente e irritante, mas injustificável que você aplique a ele uma pena incompatível com sua idade.

Quando um sujeito escreve um post público, em uma rede social, defendendo a execução de uma criança de 9 anos de idade por ter machucado bichos, isso já é – por si só – um ato de horror, já é algo terrível, já se configura uma aliança com a barbárie. Quando os políticos israelenses aceitam a possibilidade de jogar uma bomba atômica para exterminar todos os palestinos e afirmam isso na TV pública do país, isso já é um ato de terror, mesmo que não tenham (ainda) apertado o botão. O que torna tudo muito mais preocupante é que o autor do post é um psicólogo, que poderá um dia ter à sua frente uma criança que precisa de ajuda. A comoção causada por este crime não pode permitir que pessoas – em especial da área da saúde – ofereçam o assassinato como solução. E quem “passa pano” para este tipo de absurdo está no mesmo balaio fascista que tomou conta da sociedade atual.

A extrema direita vencerá as próximas 20 eleições se permitirmos a circulação desse tipo de discurso, aceitando-o como válido. Enquanto o assassinato de uma criança for tratado como opção legítima no campo simbólico de uma cultura teremos falhado em nosso projeto civilizatório. Quando aceitamos executar um menino de 9 anos em função da nossa incontida indignação, sem considerar sua pouca idade e sua mente em formação, fracassamos como sociedade.

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