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Envelhecer

Já passava das 11 horas da manhã e ainda precisava comprar algumas mercadorias para preparar o almoço. Quando entrei no supermercado a procura dos itens, logo na entrada me deparei com uma moça em um pequeno quiosque ajeitando gelo numa espécie de balde. Perguntei o que ela estava oferecendo e ela disse que eram drinks de vários tipos: um de maçã verde, outro de limão e um avermelhado à base de guaraná chamado “Balada”. Respondi a ela que podia me servir o último, “já que tenho cara de quem frequenta baladas todo fim de semana“. Ela sorriu de forma jovial, serviu a bebida e eu continuei a minha saga pelo mercado.

Foram necessários apenas alguns passos para descobrir o que havia acontecido. Um pouco espantado e surpreso, mas, ao mesmo tempo, experimentando uma espécie de súbita lucidez, percebi que a piadinha que eu havia acabado de dizer à moça do quiosque não foi dita por mim. Apesar de ter saído dos meus lábios, não fui eu quem a falou.

Foi meu pai. Por instantes me dei conta que essa era uma das suas tiradas prediletas, um dos seus chistes mais comuns; uma espécie de humor britânico misturado com as piadas autodepreciativas típicas da cultura judaica. Apesar de ser uma pessoa séria e sisuda, ele era um sujeito otimista e bem-humorado, mas de um humor de poucas gargalhadas; mais ironia e menos deboche. Ele passou a última parte da sua vida descrevendo de forma divertida dos percalços da velhice, os desafios da “melhor idade”, a desconsideração da cultura com os idosos, o etarismo e, porque não, o desinteresse das mulheres pelos velhos, a quem consideravam seres  assexuados.

“Já era madrugada quando a porta do elevador se abriu e a moça entrou. Ela apenas sorriu para mim; claro, sentiu-se segura ao lado de um velhinho”, dizia ele sorrindo. Todavia, eu entendia o que havia por trás do seu gracejo. Ele fazia piada com a dor de envelhecer e com a frustração de “manter o desejo quando não mais o despertava”, como ele mesmo dizia. Talvez preferisse que ela tivesse medo; afinal tratava-se de um homem que poderia, talvez, “avançar”. Mas não… ele era considerado, aos olhos dela, totalmente inofensivo. “É diferente ser inofensivo por não querer – o que seria uma escolha – do que por não poder – que é apenas uma limitação”, dizia ele.

Depois dessa reflexão nos corredores do supermercado, muitas das minhas atitudes passaram a fazer sentido. Por mais que lutemos contra a matriz que nos constitui, somos inexoravelmente ligados a ela. Meu pai era antissocial, avesso às festas, introspectivo e sério. Durante minha juventude tentei ser diferente disso, me envolver com mais pessoas, ter amigos, mas ao amadurecer fui percebendo o quanto meu temperamento se aproxima do seu. Por mais que isso possa me incomodar, minha velhice será mesmo muito semelhante à dele, cada vez mais encolhido, menos visível, mais caseiro, mais silencioso… e mais insignificante.

Talvez, como ele, eu morra rodeado de não mais do que três ou quatro pessoas. Ele também dizia, e eu agora confirmo, que “envelhecer é preparar-se para as mortes”. Sim, assim mesmo no plural: são as perdas inevitáveis, as quais somos obrigados a experimentar no percurso da vida: a perda da juventude, da beleza, da atração e das memórias. Depois se vão os avós, pais, amigos, irmãos, parceiros de vida. E no fim, o nosso próprio invólucro de carne sucumbe à degenerescência, mas antes dele perdemos a relevância e a importância para aqueles que um dia nos admiraram. Nossas teses ficam antigas, solapadas pelo novo e pelo moderno. Nossa visão de mundo sucumbe aos acontecimentos e nossos vaticínios se perdem nas encruzilhadas do tempo. É preciso estar preparado para o tanto que se vai, continuamente.

Quando eu tinha por volta de 7 anos os amigos fizeram uma festa na vizinhança, com fogueira, comes e bebês, jogos, brincadeira e cantoria. No meio da festa, o vizinho, um amante da ópera, cantou uma ária; logo depois, outro vizinho tocou acordeon e cantamos todos juntos cantigas italianas. Enquanto isso as crianças faziam corrida de saco, cabo de guerra e se empanturravam de docinhos. Foi tão divertido que 60 anos de distância não apagaram da minha memória. No meio da festa meu pai chegou. Sentou-se em um banquinho e ficou sorrindo acompanhando a farra. Ao fim da festa, quando estávamos retirando os materiais e arrumando a bagunça, eu perguntei, ainda extasiado pela folia, se ele não havia achado aquela festa a melhor coisa da vida. Ele sorriu e sua sinceridade me impressiona até hoje:

“Não. Eu não gosto de festas. Acho bonito ver as pessoas se divertindo, mas isso não me afeta”.

Olhei para o meu pai com horror, uma estranheza como se ele tivesse segurando um sorvete de pistacho na mão e dizendo não gostar. Como assim não gosta do melhor da vida? Como não gostar da alegria sem freios, das piadas, da cantoria e das brincadeiras? Como poderia alguém não se afetar pelas músicas, o colorido, as empadinhas, a algazarra, o alarido dos fogos de artifício e as risadas de quem se passou na bebida?

Hoje eu sei. Percebo em mim a mesma marca, o mesmo feitio de personalidade, avesso aos arroubos de alegria desmesurada. O mesmo gosto pelo isolamento, o silêncio e a reflexão mais elaborada. As conversas com pouca gente, a profundidade dos argumentos, as piadas sutis. Poderia ser uma maldição, mas eu considero uma homenagem. Se tirei do meu pai algumas poucas virtudes, por que deixaria de receber também algumas de suas características menos atraentes? A genética, agora o sei, vem num pacote fechado…

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Bodas

Minha filha veio nos avisar que hoje completamos 41 anos de casados. Ficamos surpresos com as mais de 4 décadas de convívio, mas não tanto quanto minha mãe ficaria, se ainda estivesse viva. Trago vivido na memória seu comentário para o meu pai quando comecei a namorar: “Isso aí não vai durar; ele não leva jeito pra essas coisas.”

Parabéns Zeza, pela excelente escolha. Você é a prova viva que mulheres inteligentes sabem escolher os melhores exemplares, extraindo deles toda a feiura para produzir, com o que sobra, filhos bonitos.

PS: Tese surgida na comuna: as mulheres usam seus genes para suavizar a a cara feia dos seus maridos, e assim agem ativamente para produzir filhos bonitos. Óbvio que eu discordei dessa ideia, mas depois de passar 24h pensando em um exemplo para contrapor, desisti. A genética tem sua sabedoria.

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Sobre as mamas de Angelina

Angelina Banguela

A piada é boa e faz sentido. Problemas dentários podem, SIM, levar à morte, basta pensar em infecções dentárias levando à febre reumática ou endocardite. Raras, fortuitamente, mas possíveis de ocorrer para quem tiver dentes. Transtornos dentários estão também relacionados a transtornos na gestação, podendo levar ao parto prematuro, e este último é um dos principais problemas de saúde pública na Europa (baixo peso ao nascer). Mas a pergunta pode ser levada mais adiante: quem aí estaria interessado em retirar os testículos para evitar o câncer nesta região do corpo? Sim, este mata, sem dúvida. E agora? Porque mutilar as mulheres é tão facilmente aceito, mas mutilar os homens causa desconforto?

Só para lembrar: as cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos são cesarianas e histerectomias. Ambas sobre o mesmo órgão (o útero, a Matriz, a “mãe do corpo”) e sobre o mesmo gênero, as mulheres. Ambas com caráter ablativo; ambas aplicadas sobre o cerne da feminilidade.

A ideia a ser vendida por trás desta amputação é a de que a pesquisa genética pode fazer PREVISÕES certeiras e “matemáticas” de doenças e morte. Isso é uma fantasia. Não somos controlados por nossos genes, mas por uma série de fatores (principalmente o estilo de vida que temos) dentre os quais se encontra a bagagem genética e as “possibilidades de adoecimento” que carregamos. Ninguém adoece do que quer, e sim do que “pode”. Mas esta construção tem nos genes apenas um elemento, e não o mapa completo de nossa história futura. Foi a partir desta constatação – de que esta ultra estrutura não é capaz de prever o futuro, mas apenas uma gama limitada de tendências – que criou-se o termo “epigenética”, que tenta combinar os aspectos da constituição física com os outros tantos aspectos de ordem emocional, circunstancial, ambiental, afetiva, psicológica e até mesmo as questões aleatórias. Posso carregar um gene defeituoso – como a propensão para o câncer pulmonar – pela vida inteira sem que ele NUNCA se manifeste apenas porque decidi não fumar, não me contaminar com substâncias tóxicas (como as anilas), não viver em local poluído e ter uma alimentação detoxificante. Pronto: toda a minha má herança foi soterrada, sem precisar de amputações. Mas estilos de vida não geram patentes milionárias, e nem vendem drogas milagrosas. É natural que este tipo de “tratamento comportamental” não receba muita atenção da mídia.

O caso de Angelina Jolie é emblemático muito mais pelo entusiasmo da comunidade científica do que pelo ato em si. Ao invés de agirem com cautela, os profissionais imediatamente se apaixonaram pela ideia, a exemplo do que ocorreu com as “células tronco”, que já enriqueceram muita gente, mas que ainda não forneceram provas concretas de sua eficácia no tratamento de qualquer afecção conhecida. Falta um freio, um anteparo às aventuras interventivas da ciência, mas isso não significa proibir ou censurar a pesquisa, mas incentivar um bom senso, evitando o exagero nas invasões sobre o corpo, as quais frequentemente se baseiam em meras suposições ou maquiagens estatísticas.

Falta também uma visão mais respeitosa sobre o corpo da mulher. Mas isso ainda é resquício de oitenta séculos de cultura patriarcal.

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