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Aos (colegas) velhos

Garotos e garotas, eu entendo o humor e creio mesmo que ele é sempre sagrado. Entendo a necessidade de fazer troça com tudo que ocorre ao redor: a pouca idade demanda. Peço apenas que contenham o “furor postandis” que as leva a expor compulsivamente nas redes sociais todas as gracinhas e piadas que porventura passem por suas cabeças. Entendam: elas não tem graça para quem escuta fora do contexto e, pior ainda, podem gerar muita dor de cabeça e constrangimento. Antes de publicar qualquer coisa usem a mesma lógica de segurança das estradas, “Na dúvida, não publique”.

E sobre os velhos na escola, eu mesmo tive um colega de faculdade, o saudoso Ernestino, que se formou em Medicina com 63 anos de idade. Nós, seus colegas de escola, tínhamos menos idade do que os seus próprios filhos. Pode parecer bem estranho, e certamente será mais difícil se “enturmar” com os coroas, quando mais de uma geração se interpõem entre nós. Entretanto, ter um colega (bem) mais velho tem inúmeras vantagens, entre elas a possibilidade de receber conselhos de vida de alguém que já casou, teve filhos, ganhou e perdeu na vida, sofreu e se divertiu. E também é valioso para adquirir um pouco de cultura geral.

Certa vez, no bandejão do Hospital de Clínicas, eu conversava durante o almoço com Ernestino, que era meu colega no estágio. No meio da conversa surgiu o assunto de um trabalho que nosso grupo faria em conjunto. Combinei de entregar minha parte, já feita, na sua casa, e por isso perguntei o endereço.

– Moro aqui do outro lado da Avenida Protásio Alves, na Rua Giordano Bruno, conhece?

Respondi que não conhecia… a rua, ao que ele respondeu:

– Cara, como não conhecer Giordano Bruno? Giordano Bruno nasceu no século XVI, na Itália. Foi um dos pioneiros do heliocentrismo e suas ideias estavam em sintonia com os postulados de Copérnico. Como frade dominicano foi perseguido por questionar dogmas da Igreja e até mesmo propor a existência de vida em outros planetas. Por suas crenças foi julgado e condenado. Uma semana antes de sua execução foi oferecido a ele renegar suas crenças e ser perdoado. Rejeitou a oferta e foi por isso queimado vivo na fogueira pela inquisição.

– Ahhh, claro. Giordano Bruno, sem dúvida. Mas onde fica mesmo?

Agradeço aos colegas mais velhos e experientes que nos ajudam na árdua tarefa de crescer e de diminuir o imenso fardo de ignorância que teimamos em carregar. 

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Racismos

Uma página do site do hospital que proíbe doulas mostrava uma criança negra, linda por sinal, e uma pergunta abaixo da imagem: “Minha filha tem os cabelos excessivamente crespos. Com que idade posso fazer alisamento”? Muitas pessoas se indignaram com a pergunta (fictícia ou não) dessa mãe, por entenderem que se tratava de racismo, além de estimular vaidade em crianças muito pequenas. Depois da chuva de protestos contra a proibição absurda e grosseira da presença de doulas, a página que continha essa pergunta sobre cabelos de bebês também saiu do ar.

Tenho uma história que pode lançar uma luz sobre isso. Claro, entendam como uma história que ocorreu há 30 anos, em um hospital da minha cidade, no sul do Brasil.

Estava na fila do hospital para o almoço. Era residente do primeiro ano do Hospital e meu irmão residente de segundo ano. Conversávamos sobre tratamentos clínicos, interações entre pediatras e obstetras (meu irmão estava terminando a residência em pediatria aquele ano) quando um casal com um bebê se aproximou. Era um casal de negros. O homem um sujeito de estatura média, cabelos raspados ao estilo “afro”. A mulher era uma negra, com o tom da pele bem mais “café com leite”, uma cor, aliás, bem brasileira, que dificilmente se vê nos Estados Unidos, pois que os puritanos americanos a achavam degradante.

Nosso “cadinho de raças” tem, para muitos estudiosos, esta raiz cultural. Somos um país mulato, misturado e, como diria o nosso ex-presidente Fernando Henrique, “só é racista quem não conhece sua árvore genealógica”. Eu, por exemplo: nome inglês, cara de branquelo, pai pernambucano, avós ingleses, bisavós espanhóis e portugueses do Alentejo. Do Alentejo uma pele mais escura, da “mouraria”. Dos mouros para a África, e de lá venho eu. Mas, voltando à história, o pai do bebê chamou meu irmão, que estava na fila, e pediu para falar-lhe. Marcus afastou-se da fila e por alguns minutos falou com o casal, que mostrava para ele uma ficha verde, para onde apontavam com insistência. Alguns minutos depois meu irmão volta para a fila com um ar assustado.

– Que houve, perguntei.
– Não vais acreditar o que eles estavam solicitando. Eu fui o pediatra que atendeu o nascimento daquele bebê há dois dias. O papel que eles me mostravam era a ficha pediátrica. Nela estavam escritos os dados principais do nascimento do menino: peso, comprimento, apgar, e … cor. Evidentemente eu coloquei a cor como sendo “negra”. Pois o pai estava solicitando para que eu mudasse a cor do bebê na ficha. Sim, ele queria que seu filho fosse oficialmente… “branco”.
– Mas… como assim?, disse eu. Eu vi o casal, o pai era preto, a mãe mulata. E também vi a criança. Você por acaso não esqueceu de fazer o…
– Sim, ele disse… claro que eu fiz o “teste do saquinho”. É preto, cara, claro que é…
– Mas por quê? Qual a razão para isso? perguntei
– Só um mundo ainda racista pode explicar isso, disse meu irmão desanimado…

Uma sociedade que criminaliza a cor da pele, que desvaloriza o ser humano pela etnia e afasta seres humanos por graus variáveis de melanina acaba produzindo cenas como essa. O pai dessa criança estava apenas tentando tirar do seu filho a penalização social de ser negro em uma sociedade dominada e controlada pelos brancos. Eliminar a negritude de seu filho parecia o melhor a fazer, pois tal ação poderia livrá-lo de um fardo pesado que carregaria por toda a sua vida. Ser negro, nos anos 80, era muito pior do sê-lo hoje em dia. Agora temos o sistema de cotas, que de uma forma rápida tenta equalizar o fosso que que a cultura escravagista cavou nesse país, separando negros e brancos pelas diferenças de oportunidade. Somente agora estamos vivendo em uma sociedade mais respeitosa, e ainda assim alguns abusos são encontrados.

Entretanto, muito ainda há a fazer para se construir uma sociedade justa e digna para todos. Eliminar o racismo é uma dessas tarefas que precisamos tratar com urgência.

A mãe que quer livrar a filha dos cabelos crespos não está fazendo algo semelhante ao que este pai desejava para seu filho, há 30 anos?

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