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Dos nojos contemporâneos

Cada vez que vejo gestantes que passaram muitas horas em trabalho de parto e foram incapazes de ultrapassar asp dilatações mais iniciais fico a questionar o quanto a sociedade contemporânea contribui para este bloqueio . A razão para esse “rechaço” à parturição – potente porque inconsciente – é um mistério, mas acredito que se trata de algo do inconsciente relacionado fortemente à cultura contemporânea. O que aconteceria com essas mulheres no século XVI? Bem….provavelmente as mulheres deste tempo estavam inseridas em um conjunto de valores e experiências do seu tempo, radicalmente diferentes das experiências pelas quais passam na pós-modernidade.

Por certo que não há sociedade sem sujeito e não existe sujeito sem sociedade.

Quando conversei com parteiras do Tibet – que atendem mulheres pobres do campo – cuja Casa de Parto tem 1% de transferências hospitalares e uma taxa de mortalidade neonatal baixíssima, me dei conta que elas estão submetidas à uma sociedade “pré-moderna” que, ao mesmo tempo em que lhes sonega as benesses da modernidade, da liberdade, da autonomia, do acesso ao conhecimento e instrução, lhes retira também uma conexão mais plena e completa com seus corpos e seus ciclos.

Claro que nem toda mulher dilata, mas o que eu pergunto é: por que as tibetanas “dilatam” e tem filhos com facilidade, enquanto as ocidentais tem tanta dificuldade? Não é uma diferença física, por certo. Ninguém vai conseguir me provar que as pelves, músculos e demais tecidos moles das tibetanas são diferentes daqueles de uma brasileira ou americana. Portanto, a diferença BRUTAL precisa ser algo ligado à cultura, aos valores e à própria expressão da sexualidade.

Não se trata de uma crítica à atenção obstétrica como a conhecemos mesmo sabendo que essas coisas acontecem. Todavia, para estas existe em causa explicável e objetiva. Minha busca está para as situações cotidianas em que o trabalho de parto não anda, estanca e fica interrompido sem que para isso haja qualquer razão evidente. São aquelas situações corriqueiras em que os médicos dizem “ela não houve dilatação”. Por outro lado se reforça a constatação de que a mulher contemporânea burguesa, inserida nessa cultura tecnológica e cosmopolita, acaba se comportando de forma diferente e com dificuldades e impedimentos no parto que antes eram raros ou desconhecidos.

Esta sociedade atual se tornou cheia de nojos e de bloqueios. As mesmas mulheres que cortam seus pelos pubianos, rechaçam os gritos do parto e não suportam odores e fluidos orgânicos são as que também vão rechaçar o parto e toda a sua sexualidade animal, profunda e primitiva.

Criamos uma sexualidade estéril em todos os sentidos, bacterianos e emocionais.

Costumamos procura as respostas a estas perguntas onde elas normalmente não estão. O que comanda o parto – e todos os aspectos da sexualidade – é o mundo das sombras, do breu, do inconsciente. Lá, onde guardamos nossas lembranças mais primitivas, é onde se escondem as forças que nos impulsionam.

O patriarcado (não confundir com “os homens”) não suporta um modelo que questiona as bases constitutivas do seu sistema de poder. Parir com autonomia tem o mesmo efeito perturbador – e potencialmente devastador – de fazer sexo com total liberdade. Por isso as instituições poderosas como igreja, medicina e política sempre que possível tentam impedir a expressão da potencialidade sexual humana.

Meu questionamento sincero é: como ajudar as mulheres a redescobrir – resgatar, despertar – suas capacidades inatas e ancestrais de parir com tranquilidade e suavidade SEM retroceder nas conquistas de autonomia e liberdade, as quais foram duramente conquistadas nos últimos dois séculos? Mais ainda: como fazer que isso seja acessível a todas as mulheres e não apenas àquelas pertencentes a uma determinada casta social?

Outra possibilidade é admitir que a sociedade tecnológica fechou as portas para a vivência plena da sexualidade – pelo menos a feminina, mais complexa e delicada. Pergunto: Haverá como compatibilizar partos tranquilos e suaves com uma vida burguesa moderna? Sim ou não?

Se a resposta for negativa, valeu a pena o IPhone, a isonomia salarial, as famílias pequenas e a TV de plasma?

Se, ao contrário for positiva, qual a solução para recuperarmos os partos perdidos?

Os anos vindouros talvez nos mostrem uma síntese dos paradigmas digladiantes, onde será possível garantir os ganhos de autonomia para as mulheres sem que elas precisem perder a vivência com o sagrado de seus corpos, seus ciclos, seus partos e seus mistérios.

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Arquivado em Ativismo, Parto

Realidades chinesas

Quando das minhas visitas à China, para trabalhar junto às parteiras chinesas, as questões que mais me impressionam são sobre dinâmica familiar. Elas me perguntam muito sobre fatos e situações corriqueiras entre as famílias. Não esqueçam que aqui as famílias são minúsculas. Raros cunhados, quase nenhum irmão (só os mais jovens tem) e gente muito isolada. Elas querem saber miudezas, detalhes, coisas que nunca paramos para questionar.

Por exemplo, elas me perguntaram se “saiu muito caro para o meu filho se casar“. Diante da minha estranheza com a pergunta elas me dizem que para um filho homem se casar os pais precisam pagar tudo: cerimônia, convites, comilança, casa própria, carro, e sustento (mesada mesmo), caso ele ainda não ganhe o suficiente. Eu disse que para o meu filho dei um abraço e um chute na bunda, mas o humor chinês não consegue fazer sinapse com esse tipo de piada. Tive, então, que explicar que não nos sentimos responsáveis neste nível, e que o casamento é uma forma de estabelecer a autonomia por parte dos jovens, e que pagar para eles casarem não parece ser um bom início de vida independente.

Outra pergunta que fazem é “Quem cuida das crianças?” e eu explico que a família ajuda quando pode e que temos creche (baby care) para quem trabalha fora. Elas me explicam que na China essa tarefa é sempre da mãe da moça, quase que uma obrigação social que ela tem que cumprir; não é uma ajuda, mas uma tarefa culturalmente determinada – e cobrada

A outra pergunta é: “Como a sua nora se relaciona com a Zeza?”, e eu respondo que sempre me pareceu a melhor relação possível. Elas dizem que na China as relações da sogra com a nora são sempre conturbadas e belicosas, e existem muitas piadas e histórias sobre este relacionamento. Dizem que genro com sogra é, via de regra, uma relação muito tranquila, mas entre as “mulheres que amam o mesmo homem” ela é conflituosa e complicada. “Que sorte tem sua nora”, disseram elas. Eu disse que a relação da Zeza com a sogra dela também sempre foi ótima, mas fundamentalmente por um fato essencial: minha mãe teve a sabedoria de jamais se intrometer na vida econômica ou afetiva dos filhos sem ser convidada. Creio que Zeza tem a mesma política.

Mac Tavish, meu tradutor, me contou que, quando os chineses viajam para o exterior com seus amigos e se comportam mal na rua (adolescentes), eles fingem que são japoneses e começam a falar “saionara” e “arigatô“. Contei para ele que fazemos o mesmo com os argentinos e ele caiu no chão de tanto rir. Nunca imaginou que essa trolagem fosse internacional.

Conversando com Gillian, minha tradutora chinesa e professora de inglês me atrevo a fazer algumas perguntas da vida na China. Afetos, profissão, família, dinheiro, etc. Ela me disse que recentemente rompeu um namoro de 8 anos. Perguntei se estava deprimida por isso e ela disse que as vezes se sentia triste e só. Ela é uma menina e tem a idade da minha filha.

– Você é jovem e bonita. Não fique triste; daqui a pouco aparece um príncipe encantado.
–  Ah, tem até um menino que eu gosto, muito mais é baixinho.
– Sério?
– Sim, mais baixo que eu (ela tem 1.64m)
– Mas isso é tão importante assim?
– Bem…. eu gosto de homens altos. E, acima de tudo, as meninas chinesas gostam de homens com pernas compridas.
– Ah…. as pernas…

Lembrei da pergunta do camponês ao presidente Lincoln, no conto de Woody Allen:
– Qual o tamanho ideal das pernas de um homem?, perguntou o camponês em desespero.
– Ideal para que cheguem até o chão, respondeu de forma marota o presidente.
A partir da conversa com Gillian tenho outra resposta:

– Ideal para alcançar o coração de uma bela menina (mas esta resposta só vale na China)

Em relação ao parto e nascimento, apesar de testemunhar tantos avanços na China, me impressiona o atraso no debate sobre as posições de parto. Em 1986, há 30 anos atrás, eu comecei a utilizar a posição de cócoras na atenção ao parto, ainda como residente no Hospital de Clínicas. Para mim foi o processo de entrada no universo da humanização, que na época não tinha esse nome e ainda aparecia como “sofisticação de tutela”. Muito tempo depois é que o protagonismo garantido às mulheres se tornou o eixo central ao redor do qual todos os outros valores gravitam. Entretanto, aqui ainda não se fala de parto vertical, e todos os partos são realizados como nos anos 50: perneiras, estribos, gente torcendo ao lado, etc. Minhas aulas todas se centraram na importância de mudar a posição do parto para que esta atitude venha abrir as portas para mudanças mais significativas.

Por outro lado, alguns encontros que eu testemunhei foram extremamente gratificantes. Um desses presentes que a vida me deu foi conhecer a chefe da única Casa de Parto da China, na região do Tibete. Ela se diz parteira mas sua formação é em medicina. O hospital de referência para a casa de parto em que atendem fica há 5 minutos de distância. O número de atendimentos é de 900 por ano, por volta de 2 a 3 por dia. Os maridos nunca assistem partos, mas ela explicou que se trata de uma questão cultural (maridos nunca enxergam a mulher ir ao banheiro). Além disso, nenhum marido jamais pediu para assistir, apesar de que esta solicitação já é muito comum em cidades maiores como Linyi, Qingdao ou Beijing. Lembro do meu pai me falando que assistir o parto de seus filhos nos anos 60 jamais passou por sua cabeça. A taxa de transferência para o hospital é (preparem-se) 1%. Eu perguntei três vezes para confirmar e não dar informação errada. Mortes neonatais acontecem 1x cada dois anos. A clínica é privada e todos pagam o mesmo valor, inobstante a classe social a que pertencem. O valor pelo atendimento completo é ao redor de 1000 yuan (R$ 500.00).

Essa parteira teria muito a ensinar sobre os malefícios que a sociedade moderna (onde a obstetrícia tecnológica é apenas uma das suas manifestações) produziu sobre as mulheres, seus ciclos vitais e sua sexualidade.

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