No musical de 1956 “O Rei e Eu” (baseado numa peça homônima da Broadway), com Yul Brynner e Deborah Kerr, uma professora inglesa é chamada ao reino do Sião (atual Tailândia) para ser a professora escolhida dos 82 filhos do Rei, oferecendo a eles uma educação europeia e refinada. Por certo que o filme inteiro explora a tensão sexual entre a figura máscula de Yul Brynner (o cara que provou ao mundo que é dos carecas que elas gostam mais) e a delicada e sofisticada professora britânica Deborah Kerr (… que o Gregory Peck). Por certo que o filme estava anunciando a revolução que aconteceria nas décadas vindouras, com a progressiva emancipação das mulheres e o choque inevitável destas com os arraigados valores patriarcais. Por outro lado também inclui, como um “cameo” ideológico, um debate político deveras interessante.
Em uma das partes mais dramáticas do filme a professora faz uma manifestação pública em defesa de um casal que, ao se apaixonar, resolveu fugir do palácio. Ambos foram pegos pela guarda do castelo assim que se preparavam para fugir; ele morreu na fuga e ela foi detida. Acontece que a moça era uma das esposas do Rei e esta fuga determinaria que ela deveria ser chicoteada por alta traição. A cena é explorada pelo viés imperialista, onde a “barbárie” dos asiáticos do Sião era contraposta pelos valores humanistas da professora inglesa que, em um emocionado discurso diante de membros da corte e de serviçais ela demandava que a menina fosse libertada.
O Rei teve um acesso de fúria diante das exigências da professora, em especial quando esta o chamou de “bárbaro”. Ela acreditava que seus argumentos seriam fortes e convincentes o suficiente para mudar a decisão inicial do Rei. Entretanto, ele respondeu rispidamente a ela:
– Sou ou não sou o Rei? Serei traído em meu próprio palácio aceitando ordens de uma professora? Sou Rei, como nasci para ser, e o Sião será governado como eu quiser!!
Na versão de “Anna and the King”, de 1999, com Jodie Foster, o debate entre Anna e o Rei do Sião é ainda mais esclarecedor sobre as amarras a que um mandatário está preso.
– O que pensa… o que faz e como… e quando o faz, não são a mesma coisa. Se acredita que desejo executar esta garota… Mas agora, porque diz a corte que pode dizer ao rei o que fazer, eu não posso intervir como planejava.
– lntervir? Depois de torturados?
– Sim! Mas você, uma mulher e estrangeira, fez parecer que o rei está sob seu comando. Você me fez parecer fraco. É impossível pedir para que eu intervenha sem me comprometer!
– Mas você é o rei…
– E para permanecer assim, não posso enfraquecer a habilidade de manter lealdade…
Neste momento, mais do que a razoabilidade do pedido da professora estava em questão a delicada rede de poderes que sustentam uma nação. Na perspectiva do Rei, mais importante do que a justiça era manter a autoridade sobre seu povo. Se ela fosse perdida, talvez haveria muito mais mortes. A atitude da professora, por mais justa que fosse, colocaria em risco a autoridade suprema do líder do país. Assim, sua demonstração pública deixava o soberano sem saída: se revogasse a pena seria visto por seus súditos como um monarca frágil e manipulável.
O mesmo sentimento eu tive quando vi a defesa daquele famoso humorista para que o presidente escolha uma mulher negra como próxima ministra para o supremo. Por mais razoável que seja esta demanda por parte das mulheres e dos negros, um presidente não pode se submeter a esse tipo de pressão, em especial através do deboche e do escárnio. Fosse eu o mandatário do país subiria numa mesa e gritaria:
– Sou ou não sou o presidente? Serei traído em meu próprio palácio aceitando ordens de um humorista? Sou presidente, recebi 60 milhões de votos, e a indicação ao Supremo será como eu quiser, e não pela pressão de um comediante identitário na caça por “likes”!!

