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Ressentimentos antigos

Há uns 25 anos organizei um seminário em Porto Alegre para homenagear uma instituição na qual eu era diretor e que estava completando 55 anos. A homenagem se estendia também ao seu fundador, falecido há algumas décadas. Fizemos vários painéis e convidamos alguns palestrantes da área de atuação do ambulatório para falar das múltiplas características do nosso atendimento.

Resolvemos convidar também um colega do fundador que ainda estava vivo, um velho farmacêutico que trabalhou com ele nos anos 50-60. Eu, particularmente, achei que seria uma ótima oportunidade de escutar alguém falando de uma personalidade que havia morrido antes mesmo de termos nascido, mas que havia criado com imenso sacrifício a instituição que nos abrigava.

Dizem as más línguas que o terreno onde a instituição ficava havia sido comprado com dinheiro ganho por este personagem em uma mesa de cartas, mas aí a lenda se confunde com a história.

Deixamos a palestra do velhinho para o encerramento do seminário. Não consegui esquecer suas palavras, mesmo com tantas décadas já passadas. Convidamos ele para compor a mesa e apresentamos sua história de vida. Depois solicitamos que nos falasse da sua relação com o nosso homenageado, o fundador da instituição, e do convívio que tiveram. Ele olhou a plateia, estalou os lábios e disse.

– Muitos anos já se passaram desde que convivemos nesta casa. Entretanto não poderei jamais esquecer seu temperamento irascível, seu caráter rabugento, sua falta de escrúpulos e sua má índole. Eu não tenho nenhuma boa palavra para dizer sobre ele. Em verdade preferia tê-lo esquecido por completo, pois nenhuma lembrança boa parece surgir em minha memória.

A coordenadora da mesa tentou tergiversar, mudar de assunto, mas o constrangimento foi inevitável. Agradeci sua presença e ainda lhe entreguei uma placa comemorativa.

O fato de serem contemporâneos e terem atuado na mesma área não deveria nos fazer supor que eram amigos. No caso, eram desafetos de muitos anos mas não nos ocorreu que isso fosse possível.

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Desamor Canino

Cão

O ano de 2014 – eu me dei conta agora – foi um dos mais difíceis da minha vida. Resta esperar que 2015 seja mais suave.

Mais de 2015 eu já aprendi uma lição: Jamais espere que alguém possa lhe perdoar por algo que você não fez. Fico pensando em algumas pessoas que explicitamente me detestam e tento me lembrar algo de rude, torpe ou grosseiro que tenha feito… e, por mais que honestamente tente recordar, não lembro de nada. Nenhuma atitude verdadeiramente má me vem à mente, até porque a própria distância impediria ou dificultaria isso. Pior, algumas dessas pessoas (sim, várias) foram sempre alvo de elogios sinceros e de admiração que – me obrigo a confessar – continuam válidos inclusive agora, quando os laços de amizade foram definitivamente desfeitos.

Todo mundo, eu acho, já passou por isso. Uma coleguinha na escola, um professor, um integrante da turma de amigos, um colega de escritório ou a sogra, um desconhecido no trânsito, um chefe, um motorista de táxi ou uma menina bonita… que não vai com a sua cara. Nada importa o que você fez ou venha a fazer: você está condenado a ser desconsiderado e, se bobear, odiado eternamente.

A questão central, e a mais difícil de entender, é a unilateralidade. Um problema semelhante, mas diferente nas consequências, é quando os desafetos se relacionam com as “santidades“. Isto é: quando ambos os sujeitos confessam suas mútuas malquerências com a famosa expressão: “nossos santos não batem“. Bem, ainda aqui ao menos existe a reciprocidade; a raiva e os sentimentos negativos são compartidos entre ambos. Para estes casos, quando possível, o melhor é um simples distanciamento.

Todavia, existe um modelo muito mais doloroso, o qual chamo de “desafeto canino”. Acreditem, este é bem pior. Existem pessoas que odeiam os cães, os maltratam, desprezam, chutam, deixam passar fome, mas o pobre cão não passa a lhe odiar por causa disso. Ele está lá, sempre olhando, admirando e o considerando alto, forte e vigoroso, sem ter qualquer noção do que leva você a tratá-lo tão mal. Ele o admira e ama, apesar de você desprezá-lo.

Esta é a tristeza do modelo canino: não se trata de algo que o cachorro fez ou deixou de fazer. Ele pode ter os esfíncteres mais educados do mundo, o latido mais gentil, o ferormônio menos ofensivo, e mesmo assim ser maltratado. A verdade é que a sua própria condição canina é o que obstaculiza, e por vezes impede, o afeto.

Desgraçadamente ele não pode, sob pena de desaparecer, deixar de ser cão. É da sua essência, imutável, eterna. Ele está condenado a ser desamado por você.

Para nós humanos, que sofremos no desamor canino, o que sobra é a brutal sensação de impotência ao perceber que a desafeição nunca foi fundada em algo que realmente fizemos, algum ato de desprezo, desconsideração ou maledicência. Não… o desamor vem porque representamos algo, ocupamos um lugar subjetivo, pessoal, inconsciente e independente de fatos objetivos que pautam qualquer relação. Não foi algo que fizemos, mas algo que “somos”. E sobre quem somos, para o imaginário daquelas pessoas, não há nada que se possa fazer.

Podemos apenas lamentar e nos entristecer, mantendo a esperança que um dia  possamos ser vistos com olhos mais condescendentes.

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