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Uma ilha de democracia

Nas últimas semanas comecei a ver de novos nas redes sociais um movimento que me chamou a atenção. Voltaram a aparecer as críticas à República Islâmica do Irã e a comparação com a fulgurante democracia israelense. Diante da guerra aberta, com o céu das grandes cidades de Israel iluminadas pelos mísseis balísticos iranianos e com o zumbido mortífero dos drones que sobrevoam a suntuosidade de Tel Aviv e Haifa, o ocidente voltou a ser inundado com propaganda imperialista, que coloca o Irã como um país “do mal” enquanto o enclave branco ocidental chamado Israel passa a ser descrito como um oásis de civilização no meio de um deserto de valores morais.

Primeiramente, é importante levar em conta que Israel não é uma democracia – longe disso. O projeto sionista deixou claro, desde os primórdios de sua implantação, que não seria possível manter Israel sem uma maioria consistente de judeus, e que esse a quantidade de árabes na sociedade israelense jamais poderia ultrapassar 30%. Entretanto, Armon Soffer, proeminente demógrafo israelense, os judeus já são minoria quando se analisa a Palestina: Israel e os Territórios ocupados. Desta forma, incorporar as populações palestinas em um único país destruiria a hegemonia étnica artificial estabelecida após o Nakba em 1948. Ou seja: Israel é uma etnocracia institucional; está em sua constituição de que aquela é a “pátria dos judeus”. Fica evidente para quem estuda as questões da Palestina as razões pelas quais Israel não trata como cidadãos – com plenos direitos, inclusive o voto – os 7 milhões de palestinos dos territórios ocupados. Essa democracia destruiria a “maioria judaica”, artificialmente produzida pela expulsão de 750.000 palestinos em 1948 e pela limpeza étnica efetuada nos últimos 77 anos.

Já essa história de Israel como “defensor da democracia”, uma “barreira de valores ocidentais a impedir a invasão da barbárie muçulmana”, é uma mentira; uma farsa imperialista. O que existe como valor primordial se resume nos interesses econômicos e geopolíticos da região. Entretanto, vi surgir de novo a mesma retórica identitária, que agora parte de segmentos da própria direita mais oportunista: “Estariam membros da comunidade LGBT mais bem hospedados e mais seguros na Palestina ou no Irã?” Esta é um dos argumentos mais usados para atacar o Irã ou qualquer país de maioria islâmica, da Palestina à Indonésia. Primeiramente, isso mostra uma ignorância inaceitável sobre as disparidades existentes dentro do mundo muçulmano. Essa afirmação tem o mesmo nível de absurdo de questionar a “vestimenta típica da Europa”, ou a “comida do Brasil”, ou mesmo os “costumes morais dos cristãos”, como se o ocidente fosse um bloco hegemônico no qual a comida, a religião e os costumes fossem encontrados de forma idêntica em todas as latitudes. Ora, para uma população de mais de 1 bilhão de crentes, o Islã terá tantas diferenças quanto podem ser encontradas entre um umbandista e um mórmon no âmbito das suas práticas cristãs, sua comida, seus valores, seus costumes e até sua vestimenta.

O Irã fez uma revolução popular para defender seus valores e suas riquezas. Alguém acredita mesmo que americanizar um país, trazendo prostituição, drogas, casinos, metanfetamina, corrupção desenfreada, submissão, etc. significa melhorar a democracia e os direitos individuais dos seus cidadãos? Até a revolução islâmica, o Irã era capacho dos Estados Unidos, e seu líder – o Xá Reza Pahlevi – foi colocado no poder por um golpe de estado patrocinado pelos americanos. Este servia como mero despachante dos interesses ocidentais para o petróleo persa, um agente bem pago da CIA. Assim, antes de debater as questões de grupos específicos, como mulheres e gays, é fundamental entender a importância de defender os valores de um país e perceber o quanto o sul global serve de quintal para os americanos, que vendem sua música ruim, sua comida de baixa qualidade e seus valores capitalistas para nós de forma livre e acrítica. “Sim, mas vejam a liberdade de gays e trans em Israel. Há notícia de alguma parada gay na Palestina ou no Irã?”

Pois eu pergunto: desde quando a existência de paradas gays significa respeito aos homossexuais? Inclusive, muitos gays criticam esse tipo de exposição, basta olhar o que dizem muitas das lideranças dos movimentos LGBT sobre o estereótipo de gay usado nessas paradas. Parada gay em Israel é propaganda imperialista, o famoso “pinkwashing“, e serve para fingir uma pretensa liberalidade ocidental. Só tolos embarcam nessa canoa. Por trás disso está o controle do petróleo, o domínio geopolítico, as ogivas nucleares de Israel e a penetração cultural. E como são tratadas as mulheres em Israel? Bem, depende da cor. Em Israel respira-se arbítrio e racismo. Cerca de 130.000 etíopes, a maioria de judeus, moram em Israel. Conforme o Haaretz, médicos que injetaram anticonceptivos injetáveis em negras etíopes que migraram para Israel alegaram que “pessoas que dão à luz com frequência sofrem”. Mesmo que fosse possível que os médicos tivessem boas intenções (o que é altamente improvável) ao injetarem contraceptivos à força, não há justificativa alguma para privar as mulheres da soberania sobre suas próprias escolhas reprodutivas. Ou seja: o respeito às mulheres vai depender da sua cor, da sua origem e vai sempre estar atrelado aos interesses do etnoestado sionista. O mesmo tipo de tratamento ocorre desde 1948 com a discriminação dos judeus “mizrahim”, vindos do mundo árabe.

É evidente que o Irã não é um exemplo de democracia vibrante. É mais do que claro que uma revolução nacionalista como a que aconteceu em 1979 no Irã deixaria muitas feridas no tecido social e muitas questões sobre os valores e direitos individuais sem resposta, em especial no que diz respeito às mulheres, gays, etc. Entretanto, esse é o preço da liberdade e da autonomia. O Irã não passava de um entreposto comercial dos interesses do ocidente até meados do século passado, da mesma forma como a China sempre o foi durante todo o século XIX até a revolução de Mao em 1949. Depois de um processo revolucionário, com a nacionalização das empresas petrolíferas e um mergulho nos valores da Pérsia, haveria muitas arestas a serem aparadas. Entretanto, essas dificuldades – em especial no que tange as minorias e os costumes – são usados até hoje como instrumento de contra-revolução, querendo nos fazer crer que a vida antes da revolução era muito melhor para as mulheres, os gays, etc. Pergunte aos gays, às mulheres e às crianças palestinas como é viver sob o jugo sionista e esta será a melhor resposta.

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Ruptura

Se houve uma vitória moderada da extrema direita no parlamento europeu (de 118 para 131 cadeiras) nas eleições recentes também é verdade que os comunistas obtiveram um forte crescimento, em especial nos países nórdicos, e com uma retórica claramente antissistema, anticapitalista e contrária à guerra. Desta forma, fica claro que a vitória nas eleições foi daqueles que repudiam, com maior ou menor veemência, os atuais sistemas de governança europeus. Protestam contra os sintomas de degenerescência de um modelo econômico de maturidade tardia, mas que é incapaz de oferecer o que prometeu: o crescimento econômico aliado à qualidade de vida aos trabalhadores. Segundo o pensador esloveno Slavoj Zizek, a crise ecológica, a revolução biogenética, os desacertos do próprio sistema (propriedade intelectual, a disputa por petróleo, matérias-primas, comida e água) e o dramático crescimento das exclusões sociais através do refinamento da concentração de renda, serão cada vez mais intensificados no século XXI. Se é verdade que o capitalismo teve um sucesso espantoso na produção de bens de consumo e no estímulo à descobertas também é certo que sua tendência concentradora de riqueza e a divisão social inexorável denunciam sua senescência.

Ou seja, o fracasso da esquerda liberal, em especial os partidos da social democracia europeia, deveria nos fazer reconhecer o quanto a rota de “adaptação” ao liberalismo usada pela esquerda tradicional da América Latina também vai inevitavelmente nos levar a um beco sem saída. Não será mais possível continuar a afagar o mercado e os capitalistas ao mesmo tempo em que tentamos oferecer um horizonte mais justo ao trabalhador. Por esta razão, é inútil tentarmos moderar a sanha capitalista, humanizar seus ganhos ou domesticar sua voracidade; é preciso recriar o discurso de ruptura da esquerda, sem concessões ao capital, de enfrentamento à direita, frontalmente contrário ao imperialismo e contra o discurso bélico da OTAN. Se isso não for feito, permitiremos que a extrema direita, eternamente subserviente aos Estados Unidos, cresça usando a fantasia da indignação, a narrativa antissistema, com a falsa retórica da ruptura para manter o poder das corporações e do imperialismo intocado.

Ainda segundo Zizek, as fases de adaptação à morte do capitalismo se assemelham àquilo que ocorre na intimidade do indivíduo quando defrontado com um diagnóstico inexorável de morte. Segundo ele, da mesma forma como os indivíduos, as sociedades utilizarão o sistema de adaptação ao luto criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross para resolver as mortes de suas utopias. A primeira fase é a da negação, que vai se observar na ideia de tentar mostrar o capitalismo como o “fim da história”, e a democracia liberal o derradeiro e acabado modelo social. Esta negação, profunda e dolorosa, apenas retarda o reconhecimento do desfecho inevitável. A ela se segue a raiva, e provavelmente esta é a fase que podemos identificar nas massas bolsonaristas ou na juventude de extrema-direita fascista nas marchas neonazistas na Europa. A raiva com o sistema político foi capitalizada pela direita para usar a energia de indignação para dar uma sobrevida ao capitalismo na UTI. Depois disso, vencida a raiva pela triste confrontação com a realidade, vem um processo de barganha, quando haverá a tentativa de adaptar o capitalismo moribundo a uma forma mas justa de divisão de riquezas, mas mantendo intacta a divisão de classes que caracteriza o modelo mesmo tempo que o condena ao desaparecimento. Diante das falhas nas fases anteriores, e em face do aprofundamento dos sintomas do paciente terminal, sobrevém uma depressão. A partir dessa tristeza – pela da morte do sistema que nos seduziu nos últimos séculos – deverá surgir a aceitação, que nos levará ao processo revolucionário e a necessária superação do capitalismo.

Não podemos esquecer que foi exatamente esse o caldo de cultura para o crescimento do fascismo europeu há 100 anos, cuja retórica tinha a mesma origem: a insatisfação com a estrutura da circulação do capital global. O que os europeus rejeitam é o atual estado de coisas, mas ainda não perceberam que a direita é a exata manutenção – travestida de mudança – no atual modelo capitalista concentrador de renda e destruidor do meio ambiente. A Europa mostrou nas últimas eleições o que não quer, mas ainda não percebeu que esta consciência não basta; é precisa mostrar o que realmente deseja. A esquerda do sul global precisa entender que não é o momento de realizar concessões à direita, mas que é o tempo de radicalizações, de aprofundamento das contradições do capitalismo, mostrando – em especial à juventude – que temos alternativas à esquerda para a crise mundial do capitalismo. Esperamos que a ruptura necessária que se esboça não conduza ao poder os mesmos fascistas perversos que levaram 60 milhões à morte no século passado.

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