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A arte de dissimular

A gente finge que sabe alguma coisa de medicina e a maior parte do trabalho médico é fazer os pacientes acreditarem que sabemos o que está acontecendo e que estamos no controle. Somos dissimulados, atores sofisticados. No parto também agimos assim e, em verdade pouco sabemos do que ocorre dentro daquela barriga. Igualmente não sabemos porque uma chuva deixa um sujeito apenas molhado, ou com resfriado e o outro com pneumonia. Não sabemos porque um bebê tranca na saída enquanto o outro é “cuspido”. Não sabemos porque algo nos faz mal e aos outros só traz prazer ou alegria.

A grande barreira da medicina ainda é o sujeito e seu universo interior, suas idiossincrasias e seus mistérios. Continuamos, por enquanto, a tratar gente como gado, como se fôssemos iguais, sem reconhecer a unicidade de cada um. O drama é nossa condição humana, nossa subjetividade e as consequências de nossa identidade.

E a arte de curar ainda se torna mais complicada quando ocorre dentro do capitalismo, onde o “Seu Toshiba” e o “Seu Siemens” precisam vender aparelhos de ultrassom, e o Complexo Farmacêutico mundial vende remédios como pílulas encantadas como se fossem a solução para nossos problemas. Onde as corporações lucram com tais tecnologias, que são usadas como “varinhas mágicas” para resolver os problemas dos pacientes.

Difícil é aceitar que elas, na verdade, apenas simulam um saber sobre a intimidade de nossa dor.

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Tecnologias Sedutoras

Lembro de escrever sobre os estudos apontando a alteração de lateralidade produzida pelas ultrassonografias há mais de 10 anos. Havia uma real preocupação com o exagero deste exame desde sua própria criação por um obstetra escocês. Alguns iam mais longe e perguntavam: “Será a ultrassonografia na gestação a Talidomida do século XXI?”. Outros estudos foram feitos trazendo outras perguntas sobre segurança, mas a força do mercado extraordinário que se abria e o paradigma da “gestação como espetáculo” venceram esta batalha até agora.

Há alguns dias fiz um comentário sobre ecografias de rotina durante a gravidez num grupo de gestantes de Sorocaba, do qual eu fazia parte sem saber. Disse que não havia nenhuma evidência de que as ecografias rotineiras em gestações de baixo risco produziam benefícios para mães ou bebês. “Ecografias de rotina não tem nenhum impacto no resultado das gestações“. Algumas mães mais exaltadas me xingaram com frases “onde você fez curso de medicina?”, ou com afirmações do tipo “as ecografias são fundamentais para acompanhar o peso e o desenvolvimento do bebê” e “não há como fazer pré-natal sem o uso de ultrassom“. As menos exaltadas apenas confessavam que “gostavam de ver o bebê na barriga”. Percebi que o “show da vida” havia vencido a ciência e o bom senso. As imagens venceram as ideias e as sensações maternas, que guiaram nossa percepção do mundo fetal, sucumbiram diante dos chuviscos impressos em papel encerado.

Talvez ainda tenhamos que esperar que este paradigma chegue ao seu ápice e que mais evidências surjam mostrando riscos da invasão sobre o claustro materno antes de vermos a restrição progressiva de seus abusos. Quando tantos lucram às custas de imagens de bebês é muito difícil questionar sua validade e avaliar riscos e malefícios.

O que me propus a fazer até o último dia foi oferecer orientação para todos para que suas decisões sobre este exame fossem tomadas com o máximo de informação e responsabilidade. Mesmo correndo o risco (que dúvida?) de ser o chato de sempre.

Essa situação acaba gerando um ciclo vicioso, como nas cesarianas e partos. Médicos ficam seduzidos pela facilidade e proteção jurídica das cesarianas e perdem as habilidades e a paciência para atender partos, da mesma forma como se encantam pelas imagens e informações das ecografias – muitas delas inúteis e confusas – e perdem a capacidade de tocar na barriga de uma gestante.

Na minha época de escola médica o debate era sobre o RX e a ausculta pulmonar. Hoje em dia os médicos perderam muito da habilidade em escutar sibilos e roncos. A história se repete em várias outras áreas, produzindo um empobrecimento da arte médica. Infelizmente muitas parteiras se deixam hipnotizar pela tecnologia e se associam aos médicos na trilha sedutora da tecnocracia.

Outro estudo, mais recente, confirmando os achados anteriores do início do século. Lembrando: o fato de ser canhoto (left handed) não é o mais relevante, mas é preocupante imaginar que mais poderá ter sido modificado no cérebro dessa criança, e que está distante da nossa análise superficial. Alzheimer? Câncer? Esquizofrenia? Diabete? Muitas (como no caso do Dietilbestrol) só descobrimos 15 a 20 anos depois…

Para entender melhor, pense assim: você conhece um garoto na balada. Depois de uns amassos ele diz que votará em um fascista. A escolha do candidato é o menos importante; muito mais grave é descobrir que outros valores um genocida, racista e homofóbico compartilha com seu crush, sacou?

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Invasões Midiáticas

Marcel Proust viveu em uma Paris de profundas transformações. Ele testemunhou chegada da eletricidade, da água encanada e dos elevadores. Também viu a troca de bondes puxados a cavalo por carros a vapor e depois eletricidade. Estava na Cidade Luz durante a construção da Torre Eiffel na Exposição Universal de 1889 e na construção da primeira linha de metrô. Não há como duvidar do entusiasmo com a modernidade que inundava o coração dos habitantes de Paris.

Um relato, todavia, sempre me chamou a atenção em um texto de Proust sobre a introdução de uma tecnologia inovadora nos primórdios do século XX. Ele se referia à instalação das primeiras linhas telefônicas na cidade. Curiosamente, ao contrário de tantas outras inovações recentemente introduzidas – como a iluminação pública e os carros – o telefone foi recebido com reservas. Cabe a pergunta: como pode um artefato quase imprescindível no mundo contemporâneo ter sido introduzido na cidade mais mais culta e mais rica do mundo com desconfiança e tão pouco entusiasmo?

A resposta para essa pergunta não está tão distante da nossa compreensão. É fácil entender que o telefone era um artigo caro na época de sua disseminação, sendo apenas instalado nas mansões de pessoas muito abastadas. Nessas casas era comum aos visitantes se anunciarem a um mordomo que posteriormente perguntaria ao dono da casa da possibilidade de atendê-los; esse era o protocolo. Assim sendo, o telefone era visto como uma invasão aos domínios íntimos do domicílio. De posse de uma combinação de números qualquer um passaria a ter o acesso garantido, estaria apto a “entrar” na mansão outrora inexpugnável da elite parisiense. O telefone era visto, então, como uma “bugiganga de novos ricos”.

Hoje em dia o mesmo desconforto nos atinge, e pela mesma sensação de invasão. Repetindo o fenômeno do rádio – e depois da TV – que penetrou nos lares e em nossas consciências, as  redes sociais nos atropelam de informações e publicidades, invadindo nossos lares pelos olhos e ouvidos. A mesma retórica volta, recheada de augúrios catastróficos pela perda completa da privacidade. Talvez um dia isso venha a ser verdade, e um avanço tecnológico seja o portal para a nossa destruição. Por enquanto, com o acúmulo de experiências das quais somos sobreviventes no passado, cultivo ainda um saudável ceticismo.

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