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Lugar que cala

Vou falar de um tema que sempre me atingiu de forma pessoal: a ditadura dos “lugares de fala”, um recurso utilizado há muito tempo por grupos identitários que afirmavam que somente aqueles que tivessem sofrido na pele um determinado problema (pobreza, racismo, machismo, lgbtfobia, etc) poderia tratar do assunto. O mantra é “Se você não é (mulher, preto, gay, latino, pobre…) apenas cale-se e escute”. Ou seja: estamos diante do “Império dos Sentidos” onde somente aquele que sentiu algo diretamente têm o direito garantido de falar e ser escutado. Todo aquele que porventura tenha estudado e se dedicado ao tema está condenado a ter uma opinião de “segunda classe” ou, pior, sequer ter acesso à fala. Eu acho que qualquer um que critica o autoritarismo identitário, está muito correto, e por diversos aspectos. O “lugar de fala” serviu desde sempre como “lugar que cala”. Ou seja, se você é preto tem o direito de calar todos “não pretos” quando o assunto é negritude, como se a sua vivência fosse o único qualificador, negando o direito de expressão de todos aqueles que se dedicaram a estudar o tema. Assim ocorre o mesmo com a violência, as orientações sexuais, a identidade de gênero, a Palestina, a pobreza, a mulher etc. Existe um “passe” identitário para tratar de temas específicos.

Por ser um obstetra homem, impossibilitado de parir, sofri a vida inteiro este tipo de constrição sempre que tratei dos temas ligados à gestação, parto, puerpério ou amamentação. Havia (e ainda se mantém, ainda que com menos intensidade) a ideia (explícita ou implícita) de que só as mulheres poderiam falar dos eventos relacionados ao parto, o que sempre me pareceu equivocado, porque é possível falar do parto na perspectiva dos direitos humanos, da fisiologia, da reprodução, da genética, e tantos outros aspectos sem ter passado pela experiência específica de parir. A única coisa que não há como falar é sobre a vivência de parir, pois que só quem teve o corpo marcado por ela pode tratá-la com cumplicidade e proximidade.

Por isso sempre tive o cuidado de afirmar que não terei jamais a capacidade de descrever como é gestar e parir numa narrativa de primeira pessoa; posso no máximo descrever o fenômeno pela percepção do outro. Sempre afirmei que ignoro por completo como é carregar um filho no ventre e todas as nuances e significados do trabalho árduo de separá-lo de si no parto. Entretanto, isso não deveria impedir que se discuta a questão do parto por todas as suas outras facetas, até porque quem não o sente no corpo que pariu, por certo o viveu em seu corpo parido, e isso diz respeito a todos aqueles que passaram ou passarão por este momento.

Sobre as vozes dos homens nos saltos transformativos da atenção ao parto, pensem o que seria da humanização do nascimento sem a visão do ambiente nos livros de Grantly Dick-Read e o círculo vicioso de medo-tensão-dor. Como estaria a atenção ao parto não fosse “parto sem Violência” de Leboyer, e o nascimento na perspectiva de quem nasce? Como estaria o mundo sem a visão ecológica de Michel Odent, a revolução das doulas e da conexão mãe-bebê sem Klauss & Kennell? Sem Marsden Wagner, como saber a importância dos paradigmas hegemônicos que regulam o nascimento a despeito das descobertas científicas que apontam para um ponto oposto? Sem o exemplo de Galba de Araújo, como saber a importância do serviço público e seu impacto nas mudanças qualitativas e quantitativas na atenção ao parto com recursos simples e acessíveis? E que seria de tantos outros homens anônimos que dedicaram suas vidas ao cuidado, mesmo alijados da experiência direta de parir? Deveriam silenciar e aguardar décadas até que uma mulher tivesse a perspectiva que tiveram? Seria justo calar-se diante de uma postura tão autoritária e abusiva?

Não há sentido em afastar os homens do debate sobre parto, mas também nada justifica calar qualquer um sobre as questões tão relevantes do nosso tempo. O movimento pela Palestina mostrou de forma muito clara que, mesmo não sendo palestinos, somos parte da mesma humanidade e desejamos um mundo sem o racismo sionista, a ocupação e a limpeza étnica protagonizadas por Israel. Por fim, o fato de ser humano me garante o lugar de fala para expressar aquilo que é humano, e tudo que é humano me afeta e pertence. Ou, como diria Terentius Afer, “nada do que é humano me é estranho”.

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Arquivado em Ativismo, Parto