Agendar o Inagendável

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Eu sou do tempo em que a cesariana era um recurso utilizado em circunstâncias especiais. Diante de uma impossibilidade de parto ela era usada, mas sempre com uma espécie de “pesar”. Para o obstetra a cesariana também era entendida como um  “fracasso”. Pensávamos: “O que poderíamos ter feito? Onde erramos? Fomos apressados? Insistimos demais? Foi a posição do bebê? Ou foi algo “entre as orelhas”?

Naquela época, em meados dos anos 80, operar um ventre estufado de vida era algo com muitos significados. Os professores de outrora ainda cultivavam a fama de “parteiros”. Haviam, muitos deles, aprendido com parteiras hospitalares, mulheres do povo que haviam ascendido à condição de “enfermeiras” (mesmo sem título) que atendiam partos em hospitais através do aprendizado direto. Eu mesmo, há 25 anos, conheci muitas parteiras que trabalhavam em hospitais da periferia da minha cidade e cujo aprendizado foi exatamente esse: olhando, auxiliando, comandando e depois fazendo.

Muita coisa aconteceu desde então, e o parto foi perdendo importância enquanto evento feminino. Mas uma transformação de tal monta nunca se processa sem que seja necessário alterar a forma como o entendemos. Era necessário retirar do parto sua importância na formação do ser feminino, passando a ser visto a partir de então como uma fragilidade, um erro, um equívoco natural e algo a ser modificado através do conhecimento científico. O mundo contemporâneo precisava arrasar os significados subjetivos de um parto, para que a modalidade cirúrgica de nascer pudesse ser vista primeiro como uma “alternativa”, e depois como “o padrão”.

Muito ainda se falará sobre a derrocada do nascimento feminino e a ascensão do nascimento tecnológico. Entretanto, nunca se dirá tudo o que é necessário para que se entenda a profundidade dos significados culturais desse movimento. Eu fui testemunha desta história, e estava presente quando esta mudança se procedeu. Da natureza em direção à tecnologia o nascimento foi reconstruído primeiramente pela palavra. Para quem tinha ouvidos de ouvir, ficava muito claro perceber que, para se mudar o nascimento de um evento feminino e natural para um evento médico e cirúrgico, era necessário transformar o olhar que tínhamos para o processo. Mudando o olhar tínhamos que transformar as palavras. Se ao princípio estas palavras tinham um som “duro” e causavam estranhamento, sua repetição acabava por dessensibilizar nossas concepções, agora entendidas como “ultrapassadas”.

Foi ainda no século passado que, pela primeira vez, escutei a expressão “parto cesáreo“. Não por acaso, “cesáreo” é uma palavra que não existe, mas que foi masculinizada pela palavra que o antecede. Os “partos” acabaram também se tornando uma extensão do universo masculino, apartados da lógica feminina. O tempo, as rotinas, os protocolos, a normatização e as intervenções “salvadoras” deslocaram a mulher do centro decisório dos nascimentos, colocando-as na periferia, alienado-as de si mesmas. Elas eram agora assistentes da arte médica, espectadoras de algo que ocorria em seus próprios corpos, expropriadas de si mesmas e nas mãos de profissionais altamente treinados na interferência cirúrgica dos processos biológicos.

Mas era necessário transformar a cesariana em uma “modalidade de parto“. Não mais o recurso último, a cirurgia que se explicava ao velho professor como quem confessa um pecado. Não, ela agora seria um tipo de nascimento, igual àquele criado há alguns milhões de anos a partir do surgimento da viviparidade. A cesariana é, na mente contemporânea, a sucedânea do parto vaginal, aquela que livra as mulheres das agruras de um procedimento cuja espera, tensão e dor não encontram nenhuma justificativa nas mentes positivistas atuais. Ela veio para livrar a mulher da crueldade imposta por uma natureza madrasta; algo pelo qual esperávamos há milênios, desde que as mulheres foram a ela condenadas pelo pecado da luxúria… e do saber.

Portanto, nada mais natural do que observar que os hospitais contemporâneos não tem mais nenhum pudor em “agendar partos”. Sim, nós sabemos que eles estão se referindo às cesarianas, e sabemos também por que elas são chamadas na “modernidade” de “Partos Cesáreos“. Mas a naturalidade com que estas coisas aconteceram nunca deixará de me espantar. Sou um velho, quanto a isso não há mais dúvida alguma. Mas, quando tudo puder ser agendado, previsto e conhecido por antecedência, o que mais restará para nos emocionar?

Ninguém se escandaliza com o fato de perdermos mais um pedaço da emoção que o bolo da vida nos oferece?

Como é possível agendar o imprevisível?

O que sobrará do nascimento quando retirarmos dele a circunstância inesperada, a surpresa, a alegria incontida de uma notícia e o telefonema cheio de lágrimas avisando, no frio da noite, a chegada de um bebê?

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Arquivado em Ativismo, Parto

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