Apesar da minha promessa de início de ano, baseada em inúmeros erros do passado, voltei a cometer o mesmo equívoco lamentável de tantos anos: debater com as vítimas.
Ainda hoje vi a notícia do assassinato de uma mulher (servidora pública da guarda civil) dentro do seu automóvel enquanto aguardava a chegada de sua filha de 7 anos. Uma morte estúpida, inaceitável e dolorosa, pois atinge todo aquele que vive em uma cidade. A morte de Ana Paola é um pouco a morte de todos nós.
O pior, como sempre, são os comentários, mas isso pode ser entendido como a explosão de sentimentos advindos da identificação dessas pessoas com a mulher que foi vítima, ou com seus familiares enlutados. O problema é que a dor e a indignação de muitos acaba se transformando numa explosão de ressentimento e ódio, sem que haja qualquer tipo de anteparo civilizatório, pelo menos em tempo de debate cibernético. Qualquer forma de linchamento é válida; julgamentos sumários são propostos e a vingança contra o meliante passa a ser muito mais importante do que a solução de um problema – a violência urbana – que existe há séculos e que se incrementou nas últimas décadas. Pior: qualquer tentativa de estabelecer um diálogo, ou mesmo um pedido de que haja ponderação acarreta o rechaço imediato dos vingadores e justiceiros. A frase clichê nessas circunstâncias é: “Ah, está com pena? Então leve para casa.” Pedir que as pessoas entendam que um crime não justifica outro parece, aos ouvidos das vitimas, o mesmo que defender a prática criminosa. Dizer que o assassinato dessa moça não significa que temos que baixar a idade penal para 10 anos (sim, isso foi proposto), ou que a pena de morte deveria ser instituída, é o mesmo que dizer que essa morte não representa nada e que o criminoso é inocente.
Para a vítima, movida pela intensa emocionalidade do momento, não existe ponderação ou razoabilidade, apenas paixão e dor. Nestes casos somos TODOS vítimas, e a manifestação popular é a síntese dessa sensação de medo e insegurança.
Resolvi que nada deveria dizer, além de um breve comentário:
“Os comentários fascistas acima são tão tristes quanto a notícia. Os defensores do linchamento são apenas criminosos que ainda não tiveram sua oportunidade ou circunstância para delinquir. É muito triste ver do que é feita a “opinião pública” do nosso povo. Assassinos em potencial.“
Escrevi e me retirei.
Podia ter ficado quieto, até que uma ativista da humanização escreveu um texto dizendo que o parto não é lugar para “doulos”, pois este espaço é feminino e deve ser assim preservado. Imediatamente reconheci nesse texto uma forma característica de sexismo com sinal trocado: a imposição externa de uma “cartilha”, feita para que as mulheres sigam um comportamento de acordo com o ideário feminista, mas sem levar em consideração o que aquela específica mulher entende como sendo sua necessidade ou desejo. Tentei explicar que nós homens fomos obrigados a testemunhar a invasão feminina de espaços historicamente destinados aos homens e que esta ocupação de funções e posições ocorreu pela luta por igualdade e equidade que as mulheres empreenderam. A entrada das mulheres na medicina, no direito, na administração e na política – mesmo estando ainda longe do ideal – foi um movimento especial na história da cultura ocidental, que ainda está atrasada no oriente. Minha posição, entretanto, é que, assim como as mulheres puderam empreender esta benfazeja invasão, também os homens poderia ocupar os espaços que historicamente as mulheres detinham.
Entre eles o cuidado de gestantes.
Se achamos que a equidade deve ser buscada e incentivada ela certamente é uma via de duas mãos. Se desejamos ocupar espaços antigamente determinados como fixos para o sexo masculino (lutas, guerras, cirurgia, futebol, mecânica, etc.) porque não admitir o parto como um território livre para a escolha das mulheres? Porque criar uma “reserva de mercado” para a ação feminina, quando nenhuma destas reservas se admite para os homens?
Pareceria até um argumento razoável, mas lembrei que numa sociedade machista como a nossa, ainda dominada pelo patriarcado, as mulheres são todas vítimas. Pressionadas e constrangidas por uma sociedade injusta podem debater da posição subjetiva de vítimas, usando de forma liberal a emocionalidade e a violência verbal que jamais é adequada em um debate racional, principalmente se considerarmos que os debatedores eram amigos.
Erro grosseiro da minha parte. Fui criticado e ofendido de forma desnecessária, em agressões “ad hominen”, por pessoas que deveriam estar do mesmo lado na luta pelas mulheres. Meu engano foi, mais uma vez, tentar tratar de forma racional temas que são extremamente doloridos para algumas mulheres. Mostrar as contradições do discurso de algumas feministas é, para elas, o mesmo que queimar parteiras e bruxas.
Não há meio termo: ou você participa do linchamento ou é um “mascus” asqueroso enganador de mulheres