Eu escuto Gênesis, Yes, Chico Buarque. Sou velho. Não, eu não reparei em celulite e nem o rebolado de ninguém ultimamente, mas não é moralismo, é umidade. Quando se tem umidade avançada a gente fica exigente e chato. Como diria Brizola, “eu vim de longe”. Eu estava entrando na puberdade quando apareceu a banda Secos e Molhados com um cara que cantava com voz de mulher. Muito bizarro.
Sabem qual o nome original da banda? “Frescos e Molhados”, mas vetaram o nome para não chocar a sociedade conservadora dos anos de chumbo. Mas lá pelas tantas, vencido pela curiosidade, resolvi escutar o long play (eu avisei que era velho) e uma música me atingiu os tímpanos de forma dramática, deixando uma cicatriz melódica da qual nunca me recuperei totalmente. A música, cuja melodia é de Vinicius de Moraes, dizia assim:
Pensem nas crianças
Mudas, telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas, inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas, alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh! Não se esqueçam
Da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume
Sem rosa, sem nada
O cara que cantava era um magricelo “fresco”. Era assim que a gente chamava os caras afeminados, mais tarde chamados de homossexuais, isso tudo antes da eclosão da diversidade, a partir de quando eles ficaram perigosamente próximos. Nada pode ser mais perigoso para as nossas certezas do que a proximidade com o desigual. O respeito ao diferente não é inato; natural é o rechaço. O respeito é aprendido, por bem ou por mal.
Secos e Molhados poderiam ser um sucesso de verão, como tantos que passaram, e os rebolados do Ney estariam hoje nas coletâneas de bizarrices dos anos 70. Porém, havia mais do que trejeitos e performance, havia arte e transgressão, e talvez não haja mesmo arte transformadora que não se arrisque a ofender. Um camarada amigo meu dizia há tempos dizia “não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve, suave limpa, muito linda e muito leve. Sons e palavras são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém”
Talvez esses novos transgressores possam ser o portal de uma nova estética que nos oportunize rever conceitos e abrir nossas mentes. Por enquanto permitam-me ser um pouco cético até que surja uma Rosa de Hiroshima para me deslocar o queixo e deliciosamente estuprar os tímpanos.