
Hoje se completam 35 anos da morte de Dimitri. Lembro da data porque estava de no trabalho e meu telefone tocou. Era Vladimir me trazendo a notícia. “Súbito”, me disse. Dimitri não tinha mais do que 28 anos. Era psicótico, e eu mesmo o havia visitado em um hospital durante um surto. Já algum tempo morava só. O pai também sofria de transtornos mentais, assim como o irmão mais novo. Foi encontrado três dias depois de ter morrido. “Ouvi falar de uma ruptura de aneurisma”, emendou Vlad.
Acho que Dimitri era gay, mas não havia como saber naquela época. Ele tinha 4 anos a mais do que eu, e provavelmente sequer ele se sabia homossexual. Certa vez me convidou para jantar e ficamos conversando sobre nossas famílias e planos. “Pago o jantar”, insistiu. Eu tinha 18 e ele 22. Dimitri era dono de uma inteligência fina, raciocínio rápido e humor ácido. Sim, tinha uma certa afetação e um gosto por se vestir bem, mas na minha juventude a homossexualidade era como espinha no rosto: se tornavam evidentes na puberdade e se tentava escondê-las, ou se possível fazer de conta que não existiam. A homossexualidade cursava silenciosa, como uma pleurisia que se disfarçava suprimindo a tosse. Coloco a imagem do amigo à minha frente e escuto sua risada, seus comentários jocosos e seus trejeitos apenas para me surpreender com nossa cegueira diante de tantas evidências. Dimitri era gay, mesmo sem o saber.
Sua morte me surpreendeu. A voz carregada de Vlad ao telefone me tomou de assalto. Nada pude dizer, e o resto da tarde fiquei adornando minhas ideias com as nossas últimas falas. “Seu pai o tem em grande conta”, disse ele, “Você não é o patinho feio que pensa ser”. Dimitri gostava do velho Sergei, e o tinha como um pai substituto para os assuntos mais complexos, já que seu pai estava sempre envolvido com a bebida e sua paranoia megalomaníaca. O velho Sergei o escutava como podia, mas havia coisas que o fosso das gerações o impedia de entender.
Dimitri não teve um acidente vascular; ele tirou a própria vida, mas esta realidade foi de todos sonegada pelo tabu do suicídio. Quando alguém chega a este ponto muitos dedos são apontados para todos aqueles que, estando por perto, nada fizeram. Não fui ao enterro, pois não suporto tanto a dor quanto a estupefação pela morte de um jovem. Todavia, entendo porque nos contaram a versão adocicada de sua morte. Tanto antes, quanto hoje, o suicídio é marcado pela mancha da vergonha e da culpa. Como Marc-Antoine, o filho de Jean Calas – no famoso erro judiciário de Toulouse tão bem descrito por Voltaire – tirar a própria vida é uma vergonha que se espalhava para cima, para baixo e para os lados, atingindo tanto a memória de quem se foi quanto a respeitabilidade daqueles que com ele conviviam.
Dimitri não conseguiu suportar uma vida de dedos apontados e desejos sufocados. Apenas o velho Sergei um dia escutou dele uma tênue confissão. Não de uma visão clara, mas de uma ponta que se erguia do iceberg de sua alma. Sergei lhe perguntou o que sentia, e porque tanto se angustiava, e tudo o que Dimitri conseguiu responder foi “Eu não sei. Meu desejo é apenas um fragmento de caos deslocado no universo”.
Dimitri teria hoje 63 anos.
“Anatoli Kuznetsov “Contos de Novosibirsk”. Ed. Fydorov, pag 135
Anatoli Kuznetsov é um escritor russo nascido em São Petersburgo em 1962. Escreve basicamente contos e crônicas em especial do universo LGBT. É um dos mais conhecidos ativistas russos contra as leis de censura à homossexualidade, em especial às prisões, constrangimentos, humilhações públicas, perseguições políticas e até mesmo assassinatos. Anatoli Kuznetsov foi preso por “desordem pública” em 1990 ao liderar uma passeata em favor das minorias, tendo sido mantido preso sem julgamento por mais de dois meses, sendo liberado a seguir sem uma acusação formal. Faz parte – e foi fundador – da Coalizão Russa pelos Direitos LGBT e milita nesta causa até hoje em sua cidade. Escreveu mais 4 livros e um ensaio de fotografias sobre a história e a vida reclusa dos velhos homossexuais.