Escafandristas

Durante muitos anos eu me perguntei as razões pelas quais uma das carreiras mais instigantes e criativas, que se encontra na linha de frente da saúde e das crises mais importantes e decisivas da vida, é conduzida pela camada mais reacionária, conservadora e politicamente atrasada da sociedade, e porque esta categoria profissional jamais oferece qualquer visão revolucionária para a condução da saúde. Pelo contrário; sempre que uma perspectiva mais libertária aparece – como a humanização do nascimento – estes sempre se comportam como o principal obstáculo a ser vencido para que as propostas alcancem sucesso. São, basicamente, o muro a ser ultrapassado para que um avanço estrutural aconteça.

Apesar de entender a complexidade desta resposta ainda creio que ela deverá estar próxima do específico processo de seleção dos novos médicos, e também guarda relação com a camada da população que recorre a estas carreiras, as oligarquias médicas, o vestibular que seleciona aqueles que tem tempo e dinheiro para uma preparação adequada, etc…

Mais intrigante ainda é o fato de que os raros casos de jovens pobres e da classe proletária que conseguem ingressar na carreira médica imediatamente se comportam como se fossem garotos quatrocentões, escondendo seu passado de pobreza e assumindo naturalmente os valores, os gostos, a visão de mundo e o estilo de vida dos seus colegas burgueses. Assumem com plena naturalidade o discurso e a postura daqueles que, outrora, viam como opressores.

Não deveria causar espanto que os elementos da pequena burguesia que ascendem à carreira médica reproduzam em seu discurso e na sua ação pública uma postura de reforço de suas prerrogativas e privilégios, desprezando as iniciativas de democratização do acesso à saúde e uma visão mais holística da questão da atenção médica. Em verdade, a visão desses profissionais – em sua grande maioria – é completamente caolha, pois que em sua experiência de vida jamais tiveram contato íntimo e continuado com os dilemas, dramas, tragédias, escolhas e dificuldades cotidianas das populações pobres e que vivem em situação de risco. Muitos sequer entendem o significado real e físico da fome, o problema da violência endêmica, o risco de um temporal ou enchente e o consequente desespero do desteto. Olham para estes fatos com distanciamento e por vezes espanto, sem se dar conta de que são eles próprios a exceção na sociedade, e não a norma.

Todavia, muitos deles são obrigados, quando no serviço público, a atender estas camadas da população, mas o fazem como escafandristas que, isolados em sua bolha de classe média, vasculham as dores e feridas de seus pacientes sem jamais respirar o mesmo ar que os circunda.

Mundos diferentes, valores distintos, roupas e idiomas meramente semelhantes. Médicos são elementos de uma classe que pouco ou nenhum contato estabelece com a imensa maioria das pessoas a quem atendem. Essa distância de histórias e perspectivas está na gênese de muitos desencontros e dificuldades na atenção médica. Para que a Medicina cumpra sua função primordial de acolher e cuidar do sofrimento humano esse abismo precisa ser vencido e, para isso, uma visão completamente diversa do que seja cuidar da saúde deverá emergir das profundezas do nosso Apartheid social.

Escrevi outro texto sobre o tema, que pode ser visto aqui

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