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Sobre Sombras e Nódoas

Num dia um assassinato estúpido na frente da família numa festa de aniversário. No outro, um caso de abuso sexual por parte de um médico. Ambos, inquestionavelmente, produzidos por cidadãos de bem. Em comum nos dois casos a simpatia pelo presidente que se dizia a favor da tortura e que tinha como livro de cabeceira a biografia de um monstruoso torturador.

No caso da morte em Foz do Iguaçu é difícil dizer algo sobre a estupidez em forma bruta, que ceifou a vida de um pai de família cujo crime foi homenagear seu candidato na festa de aniversário. Muito ainda vai se falar sobre esse assassinato brutal, motivado por intolerância criminosa, e incentivado pelo próprio mandatário principal da nação. Entretanto, eu gostaria de me debruçar sobre o caso de abuso sexual ocorrido em uma maternidade do Rio de Janeiro. Por ter trabalhado em maternidades por mais de três décadas da minha vida eu lamento profundamente pelas pacientes atingidas por estes crimes, mas também penso mais além, nas repercussões que essa ação produzirá sobre toda a profissão médica – que depende de forma muito intensa da confiança que os pacientes depositam nos profissionais.

Como confiar nos médicos agora, se por trás de um sorriso ou um simples exame físico pairar o espectro da desconfiança? Como deixar as pacientes seguras de que por trás de pedidos e avaliações simples não se escondem intenções malévolas? Toda a ação médica se baseia no processo transferencial, a confiança em um suposto saber do profissional sobre o nosso corpo, nossa doença, nosso organismo e as razões pelas quais adoecemos e como podemos nos curar. Nesse processo ocorre uma entrega: oferecemos ao médico nossa intimidade mais profunda: nossas histórias, sentimentos, emoções, medos fragilidades e o nosso corpo.

O respeito por parte dos profissionais a esta oferta que vem dos pacientes é a pedra angular sobre a qual se constrói o vínculo, sem o qual nenhuma cura profunda é possível. Como diria o psicanalista húngaro Michael Balint, “o melhor remédio que um médico pode oferecer ao seu paciente é ele mesmo”. pois curador é o mais significativo remédio que se pode oferecer. Quando essa confiança se quebra, as conquistas para a saúde são apenas superficiais, incapazes de atingir o processo profundo de cura – que depende de uma modificação das rotas patológicas do sujeito.

Demonstrações públicas de desrespeito a esses limites, maculando a sacralidade desse encontro, tem efeitos devastadores. Garotos recém formados, com as calças arriadas e fazendo gestos que imitam vaginas, demonstram a falta de seriedade com que estes jovens profissionais encaram o compromisso com a profissão que têm pela frente. É preciso encarar esse problema com a gravidade que demanda. O ensino excessivamente técnico da medicina, a falta de embasamento humanístico, a objetualização dos corpos, o afastamento afetivo dos clientes e o distanciamento emocional com sua dor são subprodutos de uma medicina desvinculada da alma, a porção do sujeito que nos transforma de amontoados de células, nervos, ossos e matéria… em seres humanos.

Portanto, é essencial que o ensino médico seja, desde o princípio, carregado de conteúdo das ciências humanas, como psicologia, sociologia, antropologia, psicanálise e filosofia. Sem essa base sobre os sentidos fundamentais da “arte de curar”, e o constante reforço destes pontos durante toda a carreira médica, não formaremos nada mais do torneiros mecânicos de luxo, que tudo sabem sobre as partes danificadas e nada sobre o conjunto curioso de elementos que nos torna gente.

Os fatos que se somam nos mostram uma lenta e insidiosa degenerescência da arte de tratar os sujeitos nas sociedades contemporâneas. As ações da corporação médica, que aderiu em massa ao discurso bolsonarista e ao ideário da extrema direita, produzem um divórcio desta parcela da sociedade com seus propósitos mais profundos. É impossível pensar na saúde de um povo sem questionar as razões estruturais que nos fazem adoecer. É inconcebível que os médicos da atualidade virem as costas às necessidades essenciais da população e se coloquem ao lado da classe burguesa, tratando a grande massa da população como estorvo. Fatos escandalosos como estes são muito tristes, e afetam a todos nós.

Todavia, há que se entender que esses fatos não se expressam num vácuo conceitual. Existe uma sombra gigantesca que paira sobre o país, e que nos mostra a necessidade de depurar essa doença que nos consome. Para buscar esta cura faz-se necessário extirpar a nódoa que corrói o coração do Brasil.

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Arquivado em Causa Operária, Medicina

Tchutchuca

Para mim, conforme já disse em outras oportunidades, o grande erro – que a própria imprensa ratifica de forma sistemática – é considerar o CFM como um órgão preocupado com a saúde da população ou com a cura de doenças. Isto é um equívoco. O CFM se preocupa com os médicos – seu valor social e sua importância – a Medicina e seu significado na cultura. NÃO É função do CFM proteger pacientes. Para isso outras instâncias precisam ser criadas. Sugiro a “Ordem dos Pacientes”.

É evidente a impropriedade de misturar saúde e lucros, e o absurdo de ainda termos sistemas de saúde e profissionais que lucram com a doença e/ou com a piora dos pacientes. Por outro lado, muitos ainda continuam acreditando que o CFM tem alguma responsabilidade com a saúde das pessoas ou mesmo com a boa prática médica. Não!!! Estes órgãos existem para proteger os médicos e a Medicina – os quais realmente precisam ser protegidos. Uma sociedade que não protege médicos e profissionais da saúde que atuam na fronteira entre morte e vida produz caos e ações defensivas. Todavia, cobrar dessa instituição que zele pela saúde dos pacientes é um erro que precisamos corrigir com a criação de uma CFP – Conselho Federal de Pacientes, órgão responsável para defender os pacientes contra práticas anacrônicas e prejudiciais, como o abuso de cesarianas, kristeller, episiotomias, circuncisão ritualística e outras práticas sem evidências em todas as áreas da medicina.

Limpar a barra da categoria vai levar muitos anos, porque o problema não é de agora. O que testemunhamos nesse momento é o problema escancarado; porém os médicos assumiram uma postura reacionária e contrária aos interesses nacionais desde a eleição do segundo mandato de Dilma. Foram os médicos que tomaram a frente dos ataques misóginos a ela. Estavam lá debochando do AVC de dona Marisa ou na morte do neto de Lula. Foram os médicos que se recusaram a atender crianças (!!!) filhos de pais de esquerda. Colaboraram com a desestabilização. Atuaram como frente de ataque ao PT assumindo como fala principal os discursos de extrema direita.

O CFM está lotado de bolsonaristas da pior espécie. O episódio da pandemia é apenas o coroamento de uma postura anti-SUS, antipovo, aristocrática, arrogante e perniciosa para a saúde da população. A solução para a Medicina só vai ocorrer quando houver uma transformação radical no sistema de ingresso, impedindo que ocorra o sequestro de uma profissão pelos filhos da classe abastada, que pouco entende e quase nada conhece da realidade da saúde brasileira. Infelizmente a Medicina brasileira é arrogante, alienada e autocentrada. Os professores são aristocratas sem vinculação com as populações marginalizadas.

Sei que é uma generalização e que existem exceções importantes e atuantes, mas são minoritárias. A face da medicina brasileira não é boa, e isso ficou muito claro com a deplorável atuação do CFM no desenrolar da crise sanitária.

Esse mesmo CFM que ataca médicos humanistas e promove perseguições covardes a eles e à enfermagem, é a instituição que jamais mexeu um dedo para questionar os médicos que promovem abusos de cesarianas. Já parou para pensar a razão dessa dupla moral? Ora… o CFM só ataca quem ameaça a supremacia médica ao questionar suas ferramentas de intervenção. Jamais quem as usa de forma abusiva e perigosa, colocando em risco a integridade de pacientes.

Ou, como se diz no popular…“Feroz com humanistas, tchutchuca com cesaristas”.

Veja mais aqui na matéria do El País

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Arquivado em Medicina

Escafandristas

Durante muitos anos eu me perguntei as razões pelas quais uma das carreiras mais instigantes e criativas, que se encontra na linha de frente da saúde e das crises mais importantes e decisivas da vida, é conduzida pela camada mais reacionária, conservadora e politicamente atrasada da sociedade, e porque esta categoria profissional jamais oferece qualquer visão revolucionária para a condução da saúde. Pelo contrário; sempre que uma perspectiva mais libertária aparece – como a humanização do nascimento – estes sempre se comportam como o principal obstáculo a ser vencido para que as propostas alcancem sucesso. São, basicamente, o muro a ser ultrapassado para que um avanço estrutural aconteça.

Apesar de entender a complexidade desta resposta ainda creio que ela deverá estar próxima do específico processo de seleção dos novos médicos, e também guarda relação com a camada da população que recorre a estas carreiras, as oligarquias médicas, o vestibular que seleciona aqueles que tem tempo e dinheiro para uma preparação adequada, etc…

Mais intrigante ainda é o fato de que os raros casos de jovens pobres e da classe proletária que conseguem ingressar na carreira médica imediatamente se comportam como se fossem garotos quatrocentões, escondendo seu passado de pobreza e assumindo naturalmente os valores, os gostos, a visão de mundo e o estilo de vida dos seus colegas burgueses. Assumem com plena naturalidade o discurso e a postura daqueles que, outrora, viam como opressores.

Não deveria causar espanto que os elementos da pequena burguesia que ascendem à carreira médica reproduzam em seu discurso e na sua ação pública uma postura de reforço de suas prerrogativas e privilégios, desprezando as iniciativas de democratização do acesso à saúde e uma visão mais holística da questão da atenção médica. Em verdade, a visão desses profissionais – em sua grande maioria – é completamente caolha, pois que em sua experiência de vida jamais tiveram contato íntimo e continuado com os dilemas, dramas, tragédias, escolhas e dificuldades cotidianas das populações pobres e que vivem em situação de risco. Muitos sequer entendem o significado real e físico da fome, o problema da violência endêmica, o risco de um temporal ou enchente e o consequente desespero do desteto. Olham para estes fatos com distanciamento e por vezes espanto, sem se dar conta de que são eles próprios a exceção na sociedade, e não a norma.

Todavia, muitos deles são obrigados, quando no serviço público, a atender estas camadas da população, mas o fazem como escafandristas que, isolados em sua bolha de classe média, vasculham as dores e feridas de seus pacientes sem jamais respirar o mesmo ar que os circunda.

Mundos diferentes, valores distintos, roupas e idiomas meramente semelhantes. Médicos são elementos de uma classe que pouco ou nenhum contato estabelece com a imensa maioria das pessoas a quem atendem. Essa distância de histórias e perspectivas está na gênese de muitos desencontros e dificuldades na atenção médica. Para que a Medicina cumpra sua função primordial de acolher e cuidar do sofrimento humano esse abismo precisa ser vencido e, para isso, uma visão completamente diversa do que seja cuidar da saúde deverá emergir das profundezas do nosso Apartheid social.

Escrevi outro texto sobre o tema, que pode ser visto aqui

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Arquivado em Ativismo, Medicina

O Sofá da Sala

Acabo de ler a nota do governo brasileiro – claramente inspirada pela corporação médica – que tenta impedir o uso do termo “violência obstétrica”, curiosamente na mesma semana em que o presidente, usando a mesma lógica, diz que “racismo é algo raro de ocorrer no Brasil”. A mesma tentativa tola de tirar o sofá da sala imaginando que assim o problema deixaria de existir.

O problema não é o termo utilizado, mas a “misoginia essencial” que permeia a atenção ao parto e nascimento, resultado de 100 séculos de modelo patriarcal a conduzir nossas vidas. Violência obstétrica existe sim – e dói.

Creio que não resta nenhuma dúvida dos interesses por trás dessa manobra; elas visam, em essência, a mudança de narrativa através da supressão de expressões consagradas. Estas são atitudes muito coerentes com o modelo revisionista que se pretende implantar no Brasil de hoje. Assim, não tivemos golpe em 64, mas “governos militares”. Dilma sofreu um “Impeachment” e não outro golpe patrocinado por grupos ressentidos, o que abriu caminho para outras aberrações jurídicas como prender o ex presidente Lula sem apresentar provas.

Desta forma sorrateira o Brasil inaugura oficialmente o uso da “novilingua” acreditando que assim fazendo exterminará como por encanto a violência física e moral a que são submetidas milhões de mulheres no país, algo que o termo – agora suprimido – sempre pretendeu denunciar.

Sabemos que tais iniciativas grosseiras e ofensivas fazem parte da cobrança da dívida que o bolsonarismo tem com a corporação médica. Esta corporação foi parceira de primeira hora nas manifestações golpistas de 2013-16, que culminaram com a queda de Dilma e a prisão de Lula, e posteriormente na eleição de Bolsonaro. Aqui mesmo no sul o sindicato médico já se apressou em mandar uma nota e um vídeo parabenizando o governo Bolsonaro pela proibição. Nenhuma surpresa.

Nada disso deveria nos espantar: a corporação médica mostra seu caráter reacionário de forma explícita desde o surgimento de canais na internet como Dignidade Médica, que disseminam todo o racismo, classismo, preconceitos de cor, raça e orientação sexual há muitos anos. Antes das redes sociais este fenômeno ficava restrito às salas acarpetadas de cafezinho dos hospitais. Agora… os monstros estão todos à solta.

Cabe a nós, ativistas da humanização, mostrar que o combate à violência obstétrica não é obra de “hippies”, “radicais comunistas” ou outras promotoras de “balburdia”, mas de um coletivo de pensadores e ativistas que se debruçam há muitos anos sobre o tema da violência de gênero no Brasil e no mundo. É digno de nota que inclusive elementos progressistas da própria corporação médica reconhecem a justeza do termo – além de sua consagração pelo uso – e entendem a necessidade de fazer algo a respeito dentro da prática cotidiana da obstetrícia, num exercício saudável de autocrítica e visão de futuro..

É importante que os ativistas, que sempre foram a locomotiva a puxar os movimentos articulados pela dignidade no parto e contra a violência obstétrica, se posicionem de forma vigorosa e contundente contra este tipo de iniciativa, denunciando o atraso em conquistas históricas por uma maternidade digna e segura que tal manifestação oficial significa.

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