Em 2003, há quase 20 anos, fiz uma palestra num hospital de Cleveland em Ohio sobre uma novidade que estava surgindo no Brasil, da qual eu era – e ainda sou – um grande entusiasta: as Doulas. Minha amiga Robbie convidou para a conferência um médico já avançado em idade que foi humildemente escutar minhas palavras. Era nada menos do que o prof. John Kennell, aquele que, junto com Marshall e Phyllys Klauss, trouxe para o século XXI a ancestral figura das Doulas.
Na palestra mostrei para o criador como estava sua criatura: o movimento de Doulas no Brasil. Ele a tudo escutou atentamente e mostrou um vívido interesse nas repercussões dessa “velha novidade” no país do seu amigo Moyses Paciornik. Entretanto, houve um único momento de tensão, e foi quando uma assistente – provavelmente uma doula – ergueu o braço e me perguntou:
– Dr, como agir no momento em que se testemunha um erro ou uma condução equivocada de um médico durante um trabalho de parto com uma paciente sob nossos cuidados?
Eu imaginava que esse tipo de questão ocorreria, visto que se iniciava no mundo inteiro um debate cada vez mais acirrado sobre algo que, desde aquela época, passou a ser chamado de “violência obstétrica”, entendida como uma variante da violência de gênero.
Minha resposta poderia ser resumida assim:
“Não lhe cabe fazer nada. Doulas não tem competência para fiscalizar trabalho médico. Mesmo que você – por estudo ou experiência – perceba estar diante de um erro ou atitude maliciosa, não lhe cabe acusar ou apontar dedos para ninguém, pois você não foi contratada para esta função. Se a sua cliente lhe perguntar diretamente, transfira a questão ao médico responsável. Não atue sobre algo que não lhe diz respeito”.
Achei que que havia sido suficientemente claro mas, para minha angústia, após dizer as últimas palavras o Dr. John Kennell levantou sua mão miúda e pediu a palavra. Gelei…
Suas palavras foram simples e diretas:
“Concordo com o Dr. Ric, mas deixo claro que ainda há mais um aspecto. As Doulas são personagens novas na cena do parto. Pela perspectiva de médicos e enfermeiras elas são ‘invasoras’. Se uma doula resolve denunciar médicos, hospitais e enfermeiras não só a sua porta estará fechada, mas a de todas as suas outras colegas, pelo medo que os profissionais terão de alguém que age para além do cuidado e do bem estar da gestante, atuando em verdade como uma inoportuna espiã.”
Percebi nas palavras do mestre uma preocupação nítida com a sobrevivência de um novo paradigma que precisava ser lentamente aceito pela comunidade de atendentes de parto, mais do que com a justiça a ser feita em casos pontuais. Havia sabedoria em suas palavras e ficou claro para mim, já passadas quase duas décadas, que a indignação e o sentimento de justiça devem ser controlados por quem se encontra nessa posição. Faz-se necessário ter em mente um bem maior. Aceitar denúncias de Doulas produziria o fim prematuro de um movimento, o que impediria milhões de mulheres de usufruírem do benefício que elas trazem ao nascimento.
Assim, sempre que surgem Doulas envoltas em indignação por casos que testemunharam, eu acho justo que tenham noção da real função que elas desempenham na história e no futuro do parto, para que uma atitude intempestiva não coloque tanto esforço a perder