O caso da influencer que teve sua história exposta pela mídia a partir das queixas que ela fez sobre o atendimento grosseiro que recebeu durante o parto dominou os noticiários por algumas semanas e suscitou alguns debates interessantes sobre os limites da atuação médica. Por outro lado também acabou produzindo um efeito catártico, servindo para o deságue de mágoas e ressentimentos de muitas pessoas que reviveram violências sofridas no passado. O fato também possui um aspecto deletério para a cultura do parto: continuamos a mostrar o nascimento como cenário de guerra, local de gritaria, abusos, invasões da privacidade, intervenções descabidas e exercício exagerado de poder. Acredito que o debate sobre estas múltiplas violências – mais do que o ataque a profissionais – deve vir acompanhado de um esclarecimento de que a assistência ao parto não precisa ser assim e que esta não é a essência do parto. Colocar toda a nossa energia em ataques pessoais (mesmo que compreensíveis) ajuda muito pouco, quando é a própria a estrutura viciosa da atenção que produz esse tipo de problema.
O que temos é um problema sistêmico de violência ao parto, e não a sequência de “fatos isolados” que se acumulam. Tal como os tiroteios americanos que se sucedem de forma macabra, não é a caça aos degenerados que fará o problema desaparecer, mas quando a sociedade perceber que eles são consequência, e não origem, do problema estrutural da sociedade capitalista e individualista. Da mesma forma, o que testemunhamos hoje nada mais é do que a “degenerescência da assistência”, causada pela falha do sistema médico das sociedades ocidentais de reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas, emocionais, sociais e espirituais do parto e nascimento. Esse evento foi violentado em nossa cultura, afastado de sua essência de cuidado, jogado na lógica da intervenção e da patologia, controlado por cirurgiões treinados na intervenção e gerenciado por interesses capitalistas. Como poderia um projeto como esse prosperar sem a criação de um clima artificial de pânico a lhe envolver, fazendo desse medo a base ideológica de tanta submissão e – como consequência – tantos abusos?
Praticamente tudo o que se vê na atenção ao parto – do local do parto aos procedimentos, passando pelo local de nascer e pelos acompanhantes – é artificial e ideológico. Quase nada (com raras e notáveis exceções) está baseado em evidências científicas sólidas. Entretanto, a encenação de um nascimento segue um roteiro bem estabelecido de submissão e poder, que obedece a um ordenamento opressivo sobre as mulheres – tratadas como contêineres fetais, e seus bebês – vistos como o produtos da cultura.
Há poucos dias um casal amigo planejou um parto hospitalar, mas o bebê nasceu muito rápido e acabou chegando a este mundo pelas mãos das parteiras que os acompanhavam em casa. Decidiriam ir ao hospital conforme combinado para terminar a avaliação, e lá foram tratados com atitudes típicas de retaliação por alguns profissionais, motivadas pela “ofensa” de permitir a um bebê nascer em sua própria casa. Na saída do hospital o casal me confidenciou: “o saldo foi positivo, pois só uma médica plantonista e uma enfermeira chefe foram “terroristas” conosco. Os outros foram bem gentis e educados”.
Ainda acho que somos demasiado condescendentes com este tipo de violência, tão comum quanto disseminada. Aceitamos um mínimo de dignidade como se fosse um presente e ainda engolimos sapos para não criar confusão. Estamos inseridos em uma sociedade onde questionar o poder abusivo é visto como “desacato”, como atitude de enfrentamento e comportamento não colaborativo. Somos doutrinados a naturalizar ações agressivas por parte de equipes médicas pela crença de que “é para o nosso próprio bem”. Não, não é em nosso benefício; é apenas para manter os pacientes dóceis e submissos às ordenações criadas para facilitar a vida e os ganhos de profissionais e instituições. A própria existência de abusos na indicação de cesarianas é a prova de que existe uma tendência de que as ações nos hospitais sejam conduzidas no sentido de proteger a ação dos profissionais e dos hospitais, e não no benefício primordial de mães e bebês.
Ainda assim, mais do que fazer justiça, é fundamental ampliar o debate sobre os descaminhos da assistência ao parto através das críticas aos seus fundamentos e sua conexão com a visão alienante do modelo patriarcal que visa o controle da sexualidade feminina em todos os seus aspectos. Para revolucionar a assistência ao parto e nascimento é essencial desconstruir a visão centenária do parto como “ato médico” e reconstruí-la através de uma visão transdisciplinar, integrativa e baseada em evidências científicas consistentes.