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Espetáculo mórbido

Claro que é possível analisar o caso de uma mulher, uma conhecida e rica influencer, que mostra o embrião recém-expelido para as câmeras, numa postagem que se tornou viral nas redes sociais e propiciou debates. Podemos olhar este caso pela ótica da mulher, e se perguntar qual o quinhão de sofrimento que uma mulher experimenta diante deste tipo de perda. É verdade que apenas quem passou por essa dor tem plena capacidade de entendê-la. A perda de um embrião é muito mais do que uma gestação interrompida: é o fracasso de um projeto, a perda de uma esperança, um soco na autoestima e a desconfiança em suas capacidades de gestar e parir com segurança.

Um fato como esse abala a vida de uma mulher, e disso fui testemunha em centenas de pacientes. Além disso, este fato tem repercussões para toda a vida; a gestação que se segue é sempre muito delicada, cheia de medos, desconfianças, angústia e ansiedade. Muitas vezes terminam pela alternativa cirúrgica, pois a falha no pré-natal faz com que elas acabem depositando mais confiança na tecnologia do que na sua própria fisiologia, que lhes parece indigna de confiança. Uma gestação após perda – gravidez arco-íris – sempre é delicada, precisando de um suporte psicológico muito consistente. Ou, no mínimo, que esta gestação seja atendida por um cuidador paciente, consciencioso e atento às questões emocionais e espirituais envolvidas.

Entretanto, neste caso de agora a questão mais relevante não recai sobre as repercussões na vida da mulher e da família diante de uma perda que, apesar de potencialmente devastadora, é muito mais comum do que parece. O que acho digno de debater, pois que é o fato incomum e mais chamativo, é que um influencer usa um embrião recém-saído do corpo de sua mulher para capitalizar nas redes sociais, para conquistar seguidores e, desta forma, ganhar ainda mais dinheiro. O que deveria ser debatido é o limite da exposição; deveríamos questionar a fronteira desta busca insana por notoriedade e avaliar com o devido rigor a necessidade de espetacularizar a própria vida, tornando até fatos tristes – como a perda de uma gestação – em uma oportunidade de faturar, explorando de forma mórbida a intimidade de quem passa por tais dramas.

Por certo que estas pessoas têm o direito de fazer o que bem entendem, desde que se mantenham dentro da lei. Não se trata de criminalizar o exibicionismo macabro, até porque isso seria impossível. Todavia, creio ser importante questionar o tipo de sociedade que valoriza e aplaude tais atitudes. O resultado direto postagem mórbida do casal foi o aumento do número de seguidores – a nova moeda do mundo cibernético – que se seguiu à exposição do embrião. Ou seja: do ponto de vista do sujeito que ganha a vida vendendo cursos de como ficar rico e que, poucos dias antes, havia prometido que seu filho se aposentaria antes dos 18 anos, o resultado foi ótimo. Nesta lógica, sempre vale a pena se o desfecho é financeiramente positivo.

Para aqueles que acreditam que esta foi uma oportunidade de dar voz a uma mulher que, de outra forma, ficaria com sua dor presa no peito e incapacitada de manifestar sua dor, eu digo que existem milhares de maneiras de fazer isso sem expor seu embrião à exposição pública e dando vazão à curiosidade das massas. Para isso existem grupos de mulheres, como o Grupo Transformação, que escutam mulheres e famílias que passaram por perdas gestacionais e/ou neonatais, e que tantas mulheres já auxiliaram. Quem já passou por isso – inclusive pessoas da família – sabe o valor de ser escutada e acolhida quando estão atordoadas pela tristeza.

Em verdade, assim como ocorre nas rupturas de relacionamento amorosos, quanto mais exposição pública dos fatos relacionados ao desenlace, mais claro fica que não houve um rompimento maduro e saudável. É falsa a ideia de que a solução para os problemas é a vulgarização escandalosa de nossas dores; a maturidade se expressa por vias muito mais sutis. Não se trata, muito menos, de exaltar o sofrimento silencioso, mas de entender que a monetização da vida privada – em especial nossos dramas e dores – é um sinal de falência dos valores, desintegrados pelo capitalismo decadente.

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Medicina e arte

Hoje ouvi um relato que se repetiu durante 40 anos de escuta de histórias de pacientes e seus médicos. A história de hoje também é triste e envolve diagnósticos desagradáveis. Uma moça vai ao médico do convênio com um sangramento no inicio da gravidez conjugado com um pouco de cólica. O médico faz um exame, constata um colo uterino fechado e pede uma ecografia. Algumas horas depois ela volta e traz o exame que mostra um hematoma atrás da placenta e um cisto no ovário. Por ser uma gestação muito inicial o bebê não foi visto.

O médico então explica que o esse sangramento pode ser um início de aborto espontâneo, que o hematoma pode crescer ou estacionar e que o cisto não é nada, pois é normal na gravidez. Diz isso em uma única frase. Olha para o papel à sua frente e pede para ela voltar em duas semanas para ver se a gestação “vingou ou não”. Levanta-se e lhe indica a porta de saída. Ela sai da consulta furiosa. “Como assim, vingar a gestação? Isso é forma de se referir a uma gravidez, um bebê… o meu filho? Ele poderia ter sido delicado, explicado com gentileza e cuidado. Esse médico é um carniceiro, desumano, animal,…”

É importante lembrar que ela teve uma perda há poucos meses e temia que fosse a mesma história se repetindo. Estava angustiada, sensível, amedrontada. As palavras do médico caíram como uma bigorna em seus ouvidos. Chegou em cada chorando, amaldiçoou o médico e suas próximas três gerações. Só então me ligou. Ela contou toda a história mais uma vez. Mandou os exames por WhatsApp e pediu minha opinião. Escutei tudo com atenção e percebi – porque a conheço bem – que a questão principal era como lidar com suas emoções afloradas. E é exatamente aqui que entra o nó da história. Tudo que eu poderia dizer objetivamente era repetir o que já havia sido dito. Não havia muito mistério neste caso do ponto de vista diagnóstico e prognóstico. Eu concordei com as palavras e as condutas propostas pelo médico do convênio. Agora eu estava na posição de repetir o que o médico anterior havia dito diante de um caso claro, mas o que poderia eu dizer?

Respirei fundo e resolvi explicar pausadamente cada detalhe do exame e o que pode ser feito. Procurei ser claro, didático, sem ser paternalista, sem dar falsas esperanças, sem mentir, sem dourar a pílula, mas sendo atencioso e realista. Ela sentiu-se aliviada e ficou de ligar para outras orientações caso achasse necessário. Percebi que ela estava mais confiante, menos angustiada e mais tranquila ao me ouvir dizer – de uma forma diferente – o mesmo que já lhe havia sido dito.

E aí fica provado que a Medicina não é uma ciência, mas uma arte. Como a pintura – uma arte que usa da química das cores para se expressar – a Medicina é uma forma de artesanato que usa as ciências biológicas para tomar corpo e aplicá-las na cura das enfermidades. Olhar para a Medicina como numa técnica é empobrecê-la, tirando-lhe o brilho e a transcendência. Porém, há que se considerar que essa conexão do médico com o paciente é uma via dupla. O paciente precisa encontrar no profissional essa conexão de transferência, o reconhecimento de um suposto saber, mas o médico precisa responder com empatia, sem a qual sua ação se torna estéril, como uma boa semente que jaz sobre a pedra fria.

Muitas vezes nossas palavras e ações são cuidadosas e delicadas, mas por mais que haja dedicação, a falta de confiança (em especial com profissionais desconhecidos, como os plantonistas) impedirá que uma conexão produtiva se estabeleça. Outras vezes, a falta de empatia do profissional poderá barrar qualquer possibilidade de cura – ou alívio – da angústia experimentada. É importante reconhecer que muitas vezes não há nada que o médico possa dizer para gerar uma resposta positiva, enquanto em outras qualquer coisa que venha a dizer – inclusive repetir o que já foi dito – será entendida como positiva.

A sabedoria para agir nestas situações é arte que se aprende em décadas, mas muitas vezes ela parece menor aos nossos olhos, tanto quanto ocorre com algumas pinturas cuja elaboração foi fruto de anos de amadurecimento artístico, mas que muitas vezes passam invisíveis à nossa percepção.

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