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Os Três Porquinhos

Quem nunca escutou durante a infância a história dos três porquinhos e suas casas de diferentes tipos? Estima-se que a primeira versão desta história infantil tenha surgido por volta dos século X e XI da nossa era. Sua autoria não é conhecida, mas sua origem é anglo-saxônica. Em 1383 foi feita uma adaptação de Os Três Porquinhos para teatro, e mais recentemente, em 1890, o conto foi popularizado depois de ter sido reescrito por Joseph Jacobs. Mas, qual o sentido último dessa história? Seria a fábula dos três porquinhos uma propaganda de materiais de construção ou uma simples leitura da história a partir dos modos de construir abrigos?

Não creio que a verdade esteja tão à superfície. A história dos três porquinhos é rica em simbolismos, e a interpretação que mais me atrai é uma que me foi contada por Robbie Davis-Floyd, antropóloga de nascimento e reprodução de Austin – Texas. Sua perspectiva nos fala dessa história multimilenar como se referindo ao processo de desenvolvimento da relação dos humanos com a natureza, na época em que houve a mais significativa revolução de nossa história, 100 séculos atrás. Não esqueçam que esta história é muito mais antiga do que a nossa memória é capaz de captar, e sua sobrevivência no “catálogo” de histórias contadas em tantas latitudes apenas nos comprova a força dos simbolismos que ela carrega.

O primeiro porquinho, aquele que constrói a casa de palha, representa nessa história os caçadores coletores, humanos primitivos que usavam a estratégia de sobrevivência mais longeva que a nossa espécie utilizou, dominante por 95% do tempo em que habitamos a Terra. Nossos ancestrais construíam casas de um material simples e frágil porque necessitavam de abrigo somente por um ou dois dias, o tempo para recuperar suas energias das longas caminhadas em busca de comida e proteção das intempéries. Como eram nômades, não havia porque criarem casas que seriam imediatamente abandonadas assim que ficassem escassas a caça e a coleta de frutos, folhas e raízes.

O segundo porquinho é o que constrói as casas de madeira, o pastoralista. Após a revolução do neolítico e ao adquirirmos a capacidade de domesticação de plantas e animais, o pastoralista (atual pecuarista) precisava de habitações sazonais, ou seja, casas de madeira que durassem por um tempo maior, o qual era determinado pelas estações do ano e pelas pastagens para alimentar seus rebanhos. A casa de madeira do segundo porquinho simboliza a morada temporária dos vaqueiros e pastores que viajavam muitos quilômetros para levar seus animais para locais distantes, mas que seriam demolidas tão logo fosse adequado voltar para casa. Pela sua alta mobilidade, os pastoralistas foram grandes impulsionadores da migração da espécie humana. Na Idade Média, Genghis Khan, já no século XIII, foi originalmente um pastor que se transformou em guerreiro porque esta atividade necessita de terras, propriedades, pastagens e, portanto, conquistas bélicas para se estabelecer. Suas conquistas levaram genes mongóis para boa parte do leste europeu.

Por último, o porquinho da casa de alvenaria representa a agricultura, o ponto principal da revolução do neolítico. Com a domesticação das espécies vegetais, e o controle da sua reprodução em benefício do homem, tornou-se mais vantajoso manter-se ao lado de sua plantação do que mover-se constantemente para colher espécies silvestres e nativas. Com a sedentarização e a fixação do homem na terra criou-se uma estrutura social absolutamente diferente da anterior, e por isso pode-se entender o surgimento da agricultura como uma verdadeira “revolução”- certamente a maior de todas em sua amplitude de consequências. Com ela veio a noção de posse, a divisão de trabalho e de poderes e o patriarcado, que cuidava das mulheres como “matrizes” e controlava a descendência. As relações econômicas estariam radicalmente modificadas para sempre através da emergência da agricultura e da criação de animais como processos econômicos, com evidentes consequências civilizatórias.

E o “Lobo Mau”, o que representa? Ora, ele é a representação das forças erráticas da natureza, contra quem o homem eternamente se digladia. É evidente que a história dos “Três Porquinhos” exalta as casas de alvenaria, mostrando que elas seriam as mais eficientes para derrotar o lobo mau. Desta forma coloca a agricultura como a mais elevada forma de relação com a Terra. Em verdade essa história tenta vender a vida “civilizada” e sedentária como sendo superior à vida total ou parcialmente nômade. Entretanto, esta opção nunca será unânime entre os civilizados, pois que todos nós, de uma forma mais ou menos intensa, nos ressentimos pela desconexão com a natureza que hoje temos, muito diferente da ligação que os modelos anteriores nos garantiam.

* Os nomes dos três porquinhos em português são Cícero, Heitor e Prático, por ordem de aparição (palha, madeira e tijolos). Já em uma versão em inglês eles são chamados pelos instrumentos que tocam “Fifer” (flautista), “Fidler” (rabeca) e …. “Practical” (prático), que não toca nenhum instrumento por usar a lógica e a razão para construir sua morada. Em outra versão, mais antiga, são chamados de “Browny”. “Whitey” e “Blacky”, mas hoje seria proibitivo usar cores para descrever os porquinhos. Também em versões antigas o inimigo dos porquinhos é uma raposa, e não um lobo.

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Água e civilização

A MESOPOTÂMIA

Em função de uma característica peculiar – nosso cérebro avantajado – foi necessário ao ser humano desenvolver um sistema de arrefecimento de temperatura mais eficiente do que aqueles dos nossos primos que vivem nas selvas, os grandes pongídeos (gorilas, orangotangos, chimpanzés e gibões). Apesar de não pesar muito mais do que 1 kg nosso cérebro é responsável por 20% do calor produzido pelo corpo, e o sobreaquecimento do cérebro pode ocasionar lesões e perda de funcionamento, até mesmo coma e morte. Por esta razão o ser humano perdeu seus pelos para produzir um sistema mais rápido e eficaz de diminuição de temperatura: a transpiração. Esse mecanismo se produz através da perda de água pelas glândulas sudoríparas produzindo uma lâmina de umidade sobre a pele que, ao entrar em contato com o ar e evaporar, leva consigo água e calor, baixando a temperatura do corpo. Esse é um mecanismo muito mais eficiente do que aquele da imensa maioria dos mamíferos – como cães e primatas da selva – que o faz através da respiração. Mas essa modificação nos impôs uma séria restrição: a necessidade imperiosa de água para o funcionamento desse sistema.

Esse preâmbulo serve para mostrar que a espécie humana é extremamente dependente de água para o próprio funcionamento cerebral, pois que para produzir cérebros grandes era necessário um sistema que diminuísse sua temperatura com rapidez e eficiência. Em uma analogia moderna, para que o núcleo do computador seja rápido tornou-se necessário criar pequenos ventiladores para arrefecer sua temperatura, caso contrário…. “tela azul”, e o núcleo se apaga, como nosso cérebro. 

Por esta razão as civilizações se desenvolveram na proximidade de grande mananciais de água potável. O crescente fértil se situa entre dois rios muito importantes, o Tigre e o Eufrates, e pela sua abundância de água – portanto, de vida – tornou-se o local ideal para o início das primeiras civilizações. As cheias que ocasionalmente ocorriam nestes rios produziam a inundação das regiões próximas, levando lodo, umidade, nutrientes, microrganismos, espécies aquáticas e seus predadores, produzindo um “humus” extremamente poderoso para o crescimento da vegetação. Posteriormente, esse fluxo de nutrientes produziria solos ricos para a grande revolução que se aproximava: o surgimento da agricultura, a domesticação de espécies animais e vegetais, o sedentarismo e o sentimento de posse (animais, plantas, terra, matrizes).

Essa modificação radical na relação do homem com a natureza, chamada de Revolução do Neolítico, teve repercussões em todos os aspectos das sociedades humanas, levando ao que conhecemos hoje como sociedade patriarcal, onde não apenas as colheitas, os animais e as terras precisavam possuir um dono e serem por ele cuidados, mas também  as mulheres, matrizes, que por estarem fragilizadas pelas múltiplas gravidezes, amamentação e o cuidado com as crias precisavam ser protegidas pelos homens, que passaram a estabelecer sobre elas um domínio – até os limites da opressão – que se mantém até hoje.

Por certo é que o surgimento das primeiras civilizações nas regiões adjacentes ao Crescente fértil não foi um fato aleatório. A abundância de mananciais de água e as enchentes que traziam nutrientes para as regiões próximas aos rios fizeram desse um local extremamente propício para a grande aventura da agricultura e do sedentarismo que estava para se iniciar.

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Evolução

evolucao

Será o “progresso” realidade ou miragem?

O problema é que a adoção da agricultura não foi pelas potenciais “facilidades” que ela sugeria, mas pela premência de adquirir espaço. Exatamente porque a estratégia de caça e coleta obteve vantagens por milênios ela acabou por determinar incremento da população e sucesso reprodutivo. Com isso a população cresceu e a cizânia se instalou. Um grupo de caçadores coletores precisa de 1 km2 por elemento para uma caça e coleta adequadas. Como garantir esse espaço? Com o crescimento – mesmo que lento e insidioso – da população, onde acomodar o surplus populacional? Desta forma, fica fácil entender que agricultura não foi opção; foi a imposição dura de um mundo que ia encolhendo. Com ela veio a fome, a religião, o patriarcado e a violência como modelo de relação.

Ganhamos com isso? Talvez sim, e a nossa sobrevivência é a prova.

Mas… a que preço?

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