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Lacração

Muitas pessoas colecionam arrependimentos durante a vida, mas vamos combinar que não é possível atravessar o charco da vida sem embarrar os pés. Eu também tenho a minha lista de erros constrangedores, que poderiam ser organizados em lista alfabética, mas sobre eles eu tenho outro sentimento, igualmente pernicioso: a vergonha.

Sim, eu tenho vergonha principalmente por ter cedido a uma tentação terrível, que muitos sequer reconhecem como um defeito, mas que é tão grande a ponto de destruir potencialidades incontestes: a tentação de agradar.

Sim, tenho vergonha de ter dito certas coisas apenas porque sabia que isso ia agradar meus interlocutores. Fico corado ao lembrar das vezes em que falei determinadas palavras sabendo da satisfação que colheria de quem as escutou. Isso é a melhor definição de “lacração“: a ideia que suas manifestações serão aceitas e bem recebidas não pela verdade que contém, mas pelo efeito emocional que geram nas pessoas que as escutam. No meu tempo a isso se chamava “jogar para a torcida“, uma prática corriqueira entre os políticos, mas que atrasa o crescimento pessoal e coletivo.

Hoje eu me envergonho muito de ter aceito a imposição da opinião alheia, de ter acolhido a pressão do contexto, de não ter falado verdades inconvenientes, de não ter sido mais impopular do que já sou. “Mea culpa, mea maxima culpa”.

Meu pai, quando ficou velho (pelo seu próprio critério subjetivo) costumava dizer algumas verdades dolorosas e depois complementava: “Já tenho X anos; conquistei o direito de ser sincero”. Eu ficava satisfeito de poder ouvir alguém que me dizia coisas pouco agradáveis e que o fazia mesmo sabendo que a recepção não seria das melhores. Isso foi algo que invejei demais e que me fez acreditar na promessa das “benesses da senectude“.

Hoje eu creio que, se algum valor há em envelhecer, talvez este seja alcançar o lugar onde é possível ser fiel a si mesmo.

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Conservadores e Progressistas

Eu sempre me defini como um progressista, de esquerda, comunista e com uma postura aberta e franca sobre a minha posição política. Jamais achei que esta é uma questão moral, a qual me tornaria melhor do que os outros por estar do “lado certo” do espectro político. Não acredito nisso. Conheço pessoas de direita que são anjos, gente caridosa, amável, inteligente, culta e espiritualizada. Contrário senso, conheço esquerdistas toscos, violentos, agressivos, preconceituosos, sexistas e vingativos. As qualidades morais não se estabelecem entre progressistas e conservadores; elas são produzidas em camadas muito mais basilares de nossa estrutura psíquica.

Digo isso porque entendo que as posições políticas estão profundamente sedimentadas na nossa especial visão de mundo – e de nós mesmos. São valores adquiridos numa fase muito inicial da vida. Um conservador é alguém que tenta manter o que foi conquistado. Sua missão é não perder as conquistas, garantir o caminho percorrido e não permitir aventuras que possam colocá-las em risco. Já os progressistas querem ver adiante, romper barreiras, atravessar os limites, arriscar novos caminhos e questionar valores. Um tem os pés no chão e o outro as mãos apontadas para o céu.

Não existe erro em nenhuma dessas posturas; ambas são válidas e necessárias. Não há nenhum problema moral em exigir que as mudanças sejam lentas e cuidadosas, assim como não há equívoco em desejar lançar-se ao espaço e experimentar a novidade do mundo. Ambas são posições subjetivas naturais e moralmente válidas, e pessoas más e boas ocorrem em ambos os lados desse embate.

Quando no inicio desse século resolvemos intensificar os debates sobre as definições da “humanização do nascimento” enquanto movimento, ideologia, filosofia e prática eu deixei claro que havia uma série de princípios dos quais não poderíamos abrir mão, sob pena de perdermos a base ideológica que nos conectava. Por esta razão, sempre me posicionei de forma muito forte contra a ideia de “cesarianas humanizadas” na medida em que o protagonismo é um fator essencial nessa definição e, estando ausente num procedimento cirúrgico, não poderia ser tratado como tal. Da mesma forma, sempre me mantive fiel à proposta revolucionária da obstetrícia – o modelo de parteria – não aceitando as propostas reformistas que muitos ainda perseguem e defendem com fervor.

Nesse aspecto específico, eu sempre me comportei como um “conservador”, e acredito que posso até parecer um “reacionário” aos olhos dos que acreditam que “o importante é o resultado, não a via de parto”. Por isso eu posso entender quando conservadores em várias áreas me falam de suas preocupação em relação à sexualidade, gênero, costumes, economia, pedagogia, educação dos filhos etc, mesmo não concordando com sua visão de mundo. E também entendo visceralmente a perspectiva daqueles que, como eu, lutam por mudanças.

A idade nos garante esse tipo de vantagem. Podemos enxergar esses conflitos e atritos com menos apaixonamento, de forma mais compreensiva e situando-se de maneira mais racional diante desses dilemas. Isso não significa “frouxidão”, mas “flexibilidade”; não é “fragilidade”, é “paralaxe”.

Como eu dizia ao meu pai, ao ouvir muitos de seus conselhos cheios de sabedoria: “são as benesses da senectude”.

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