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As Cores da Humanização

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A humanização do nascimento é um movimento gestado a partir dos questionamentos sobre a sexualidade surgidos nos anos 60 e 70. Apesar dos trabalhos de Grantly Dick-Read terem sido produzidos nos anos 40 e Robert Bradley ter começado seu trabalho de “desmedicalização do parto” e a inserção do parceiro no ambiente do nascimento nos anos 50, foi após a publicação de “Birth Without Violence” de Fréderick Leboyer que a discussão de uma nova abordagem no parto tomou um forte impulso. Se o lema dos hippies era “Faça amor e não faça a guerra” – numa crítica aberta a participação americana na guerra do Vietnã – e a atitude era de franca liberação sexual, a abordagem não violenta do parto proposta por Leboyer estabelecia uma clara consonância com tais pressupostos.

Não por acaso a inquietação com a intervenção desmedida e a violência implícita nos atos médicos que ocorria em ambientes hospitalares disseminou-se pelo mundo inteiro com a força de uma “nova ordem”. Entretanto, a forma como estas ideias eram adaptadas a cada contexto cultural variava enormemente. Por exemplo: o termo “humanização do nascimento”, muito usado no Brasil, é quase desconhecido nos Estados Unidos. Lá a ideia se disseminou com os termos “amigáveis”: “Motherbaby Friendly Childbirth Initiative”, é como o movimento de humanização se chama por lá. Na Inglaterra, por seu turno, a associação que luta por partos mais suaves é “AIMS”, uma associação que luta pela melhoria dos serviços de maternidade, e a forma mais comum de se tratar do parto humanizado é chamando-o de “Parto Ativo”. Cada país imprime suas características específicas para estas ideias.

Por razões históricas a humanização entrou no Brasil junto com a contracultura hippie, que veio acoplada com o orientalismo que impregnou todo esse movimento, a começar pela aproximação dos próprios Beatles com Maharishi Mahesh Yogi. Aqui, o Yoga deixou o movimento com as cores do misticismo e das práticas orientais indianas. A introdutora desta discussão no Brasil foi uma professora de Yoga chamada Maria de Lurdes Teixeira, mas que atende pelo apelido de Fadynha. Em meados dos anos 80 ela criou um instituto de Yoga no Rio de Janeiro chamado “Instituto Aurora” que realizava encontros com casais grávidos de preparação para o parto natural. Desses encontros surgiu a necessidade de um encontro nacional de “parto natural e consciente”, que já está na sua 23ª edição. Estes encontros foram a porta de entrada para os debates sobre as humanização do nascimento, e foi dele que surgiu no ano de 1993, em Campinas, a ReHuNa – Rede pela Humanização do Parto e Nascimento.

A partir destes encontros foram se agregando ao movimento de humanização profissionais de várias áreas – obstetras, pediatras, enfermeiras, parteiras, obstetrizes, doulas, etc. – em torno de uma série de reivindicações que estruturam o ideário do movimento. De início eram ideias centradas nos problemas do excesso de intervenções e a necessidade de “suavizar” a prática médica. Não havia ainda uma clara noção do que deveria ser feito, mas uma indignação compartilhada do que não deveria continuar ocorrendo.

No final do século passado surgiu um novo fenômeno na cultura mundial que acabou por modificar de maneira inquestionável todas as relações sociais, inclusive a forma como entendíamos a humanização do nascimento. A Internet diminuiu distâncias e aproximou pessoas com ideias semelhantes. Um pouco antes da virada do século surgiram os “list servers” que eram listas de discussão temática na internet e que abordavam infinitos assuntos. A primeira de lista de discussão de nascimentos chamava-se “Parto Natural”, e ainda está ativa. Seguiram-se a ela a “Amigas do Parto” (nome criado para criar semelhança com o grupo Amigas do Peito, que luta pela amamentação livre) que depois viria a se chamar  Parto Nosso”, ainda em atividade. Estas listas foram multiplicadoras de vozes sobre o tema da humanização, congregando, como por encanto, ativistas distantes milhares de quilômetros, em diversas partes do Brasil.

A entropia gerada pelas listas de discussão acabou por fomentar um amadurecimento sem precedentes da estrutura ideológica dos movimentos de humanização do parto. Aquilo que anteriormente era indignação e desassossego com a tecnocracia obstétrica passou a oferecer alternativas de atenção centradas em um modelo de nascimento mais moderno e mais em sintonia com os desejos das mulheres. O surgimento, ainda nos ano 90, da “Casa de Parto 9 Luas” no Rio de Janeiro foi um exemplo desta nova atitude propositiva. Apesar da ideia não ter vingado – por problemas na própria concepção da casa de parto, que em verdade era uma pequena clínica e não uma Casa de Parto – este foi um dos primeiros modelos alternativos de atenção apresentados à sociedade. Se não continuou a oferecer atendimentos, pelo menos serviu como um exemplo de que muitas coisas eram possíveis de fazer em se tratando de modelos de atenção centrados na família, no afeto e no parto fisiológico.

A internet mudou a cara da humanização. Médicos obstetras, enfermeiras, doulas, psicólogas, pediatras, epidemiologistas e – principalmente – mulheres gestantes e seus companheiros juntaram-se no país inteiro através do espaço cibernético. As listas de discussão criaram um espaço amplo e democrático de encontro de ideias, e dos choques e embates gerados pelo conflito natural de propostas diferentes – por vezes divergentes – surgiu uma estrutura muito mais sólida, mesmo sem se pretender monolítica, que embasa as propostas de humanização do nascimento.

Em função de suas raízes, e da personalidade quem introduziu de forma sistemática este movimento, o Yoga impregnou a humanização do parto com as cores do misticismo e das práticas orientais indianas. Para alguns colegas de outros países isso soa muito estranho, talvez tão estranho quanto a relação estreita entre homeopatia e espiritismo, que entraram no Brasil pela mesma via, o médico lionês Benoit Mure, e acabaram se confundindo por muito tempo, o que causa uma rara estranheza em colegas franceses e alemães.

O que se questiona por ora é se essa específica vinculação entre a humanização do nascimento com sua origem ligada ao Yoga é natural, necessária ou deletéria. Para algumas pessoas, a humanização do nascimento caminha na mesma direção das ações “desmedicalizantes” do Yoga e outras práticas alternativas, e não é à toa que muitas mulheres que procuram partos humanizados também criticam o modelo médico contemporâneo ocidental e procuram formas de tratamento mais “suaves” e menos drogais. O Yoga é uma destas formas de procurar saúde sem a inserção de drogas no organismo.

Entretanto, para muitas mulheres cosmopolitas, a vinculação com essas práticas NÃO É natural e sequer desejada. Se acreditarmos que os pressupostos básicos da humanização sejam o protagonismo restituído, a visão interdisciplinar e a vinculação com a medicina baseada em evidências então nenhuma vinculação necessária existe com práticas não ortodoxas para a assistência humanizada ao parto. Podemos ser absolutamente ligados a uma medicina tradicional, alopática e endorcista sem ferir qualquer dos pressupostos fundamentais da humanização.

Isto parece certo, e parece não haver dúvidas quanto a este fato. Por outro lado, não vejo porque rechaçar a visão plural que estas práticas podem acrescentar, desde que entendamos que partos humanizados não significam (da forma como pejorativamente falam seus opositores) partos “naturebas”, em que se estimula um rechaço sistemático e dogmático à ciência oficial e aos tratamentos drogais e invasivos.

Assim, creio que a humanização do nascimento é uma casa grande e cheia de portas, por onde podem entrar várias formas de expressão do nascimento. Se as paredes forem mantidas de pé, com os pilares do protagonismo, a visão interdisciplinar e a vinculação com a medicina baseada em evidências, então as cores locais da humanização, sejam da Yoga, do budismo, ou até de um agnosticismo crítico, serão bem vindas.

A pluralidade das visões e o respeito às perspectivas diferentes devem ser pressupostos centrais no debate sobre o nascimento. Se existem infinitas maneiras de parir, tantas quantas forem as mulheres no mundo, então a forma como entendemos este movimento e suas expressões também precisa ser de incontáveis maneiras, tantas quantas forem as cabeças e mãos a construi-lo.

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