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Evangelho

Quando pequeno tive aulas de “evangelização” na sociedade espírita que meu pai era presidente. Até hoje tenho sentimentos conflitantes sobre essa experiência. Discuti o assunto com vários amigos da época, e ainda acredito que, caso tivesse frequentado uma escola de artes, ou um clube literário, (quem sabe uma banda de rock?), estas escolhas teriam sido mais proveitosas, e me deixariam mais preparado para a vida. Para muitos, as aulas “dominicais”, são uma forma de ensinar perdão, amor, caridade, fraternidade, etc. Há quem discorde, acreditando que ensinar religião para crianças e encher suas cabeças com conceitos religiosos – acreditando que isso pode “moldar seu caráter” para que se tornem “cidadãos de bem” – é uma ideia absurda e que não encontra qualquer comprovação nos fatos. Seja qual for a verdade, compreendo quem acredita que a infância deve ser livre deste tipo de ensinamento, em especial os que são oferecidos às crianças do ocidente, como as mitologias judaico-cristãs.

Eu lembro vagamente dessas aulas, mas não de uma forma positiva, apesar de que minhas memórias sobre elas também não são negativas (afinal, conheci minha futura esposa nesses encontros). Todavia, acredito que minha cabeça seria mais livre de preconceitos se não tivesse escutado tantas histórias de Jesus e seus apóstolos, as quais acabaram trazendo toda uma exaltação da Palestina como um lugar “mítico” e “sagrado”. Ora, na perspectiva do Império Romano, naquela época a Palestina tinha tanta importância geopolítica quanto tem hoje a pequenina Gravatá em Pernambuco para o Imperialismo americano. Ou seja, absolutamente insignificante. Entretanto, foi Paulo de Tarso (o apóstolo dos gentios) e uma série inimaginável de intrincadas coincidências históricas o que fez o cristianismo ter relevância – muito mais do que a profundidade dos ensinamentos de Cristo, que podem ser achados numa infinidade de outras religiões e seitas até bem anteriores ao próprio cristianismo. “Ahh, mas o sermão do monte, as bem-aventuranças”. Sim, não há como negar o significado desta parte do Evangelho; este sermão é o coração do cristianismo e o seu grande diferencial, pois nele ficou clara a opção pelos pobres, e foi essa conexão com as classes miseráveis que lhe ofereceu imensa popularidade.

Por outro lado, por causa dessas aulas precoces de cristianismo, acabamos fixados nessa cosmovisão judaico-cristã – que pode ser sectária e até obliterante. A pior de todas as heranças é a tese do “povo escolhido” ainda usada pelos sionistas, como se aquele povo tivesse alguma qualidade especial aos olhos de Deus, mais do que os asiáticos, africanos ou os habitantes do novo mundo. Como se Deus tivesse encontrado, entre todos os grupos humanos, a sua gente “preferida”. Pergunto: que Deus é esse que se comporta como um pai irresponsável, que se dedica mais a um filho do que aos outros?

O espiritismo, por sua vez, importou esta ideia supremacista ao criar a fantasia do Brasil como “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, uma ideação arrogante e ufanista que não se assenta sobre nenhuma evidência na história, a não ser o fato de termos a maior população católica do mundo. Bem sabemos o quanto essa “religiosidade” não nos garante nenhuma qualidade especial na defesa dos direitos humanos, das crianças, das mulheres, da população LGBT, da natureza ou na distribuição de renda. Na infância muitas crianças espíritas são alimentadas com estas visões equivocadas e arrogantes sobre o Brasil, trazendo a fantasia de que somos um país “especial”, quando em verdade somos apenas mais uma nação que tenta sobreviver ao capitalismo brutal e decadente.

Hoje vejo entre os cristãos brasileiros uma adesão muito forte ao discurso de Israel na sua guerra covarde contra os palestinos, e acredito que muito disso está na visão positiva que têm da região. “Ahh, Jerusalém, o Monte das Oliveiras, o Gólgota, o lago Tiberíades, Belém, Nazaré, o lago de Genesaré, o mar da Galileia, o rio Jordão”…. são lugares que eu lembro de cabeça somente pelas histórias que li e ouvi durante os anos da infância, mas isso não deveria produzir nossa cegueira diante da perversidade genocida daqueles que controlam a ferro e fogo a região.

Minha experiência mais contundente aconteceu quando fui à China pela primeira vez e perguntei à uma plateia de quase 100 profissionais da saúde se tinham ouvido falar de “Freud”. Apenas duas pessoas o conheciam, mas nada sabiam de sua obra. Ou seja: a cultura de lá jamais necessitou de Freud para construção de uma sociedade vigorosa. Da mesma forma, conheci lá centenas de maravilhosas pessoas que jamais tiveram qualquer contato com o cristianismo ou com as histórias e parábolas de Cristo, o que parecia não lhes fazer falta alguma. Naquela oportunidade cheguei à conclusão que nossa visão eurocêntrica, ocidental e cristã nos dificulta enxergar outras realidades no pensamento humano. Por isso, oferecer aos pequenos uma perspectiva humanista e não sectária deveria ser uma alternativa muito mais frequente entre nós. Sem gurus, sem salvadores, sem messias, sem livros sagrados, sem povos escolhidos, sem verdades pétreas, sem diferenças essenciais entre os povos e abraçando a diversidade da forma mais intensa e possível, desde a mais tenra idade.

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Religião e alienação

“Ahh, mas o Brasil não é o coração do mundo e a pátria do Evangelho? Há de existir uma intencionalidade dos planos espirituais para o nosso país. Não ficaremos órfãos de cristandade”.

Esse é o papo dos espíritas de hoje. Sinto muita tristeza em dizer isso, mas uma improvável vitória de Bolsonaro nestas eleições levaria o Brasil à morte, à violência e, por fim, à confrontação em níveis nacionais. Não é uma ameaça, mas um temor bem fundamentado. A hipnose a que se submete o povo brasileiro não pode durar indefinidamente. Com o tempo – que vai depender da nossa consciência e poder de reação – teremos de despertar desse sono. A fome voltou, o desemprego não baixa, os programas sociais já foram exterminados, o desmatamento prosseguirá, o extermínio dos índios idem.

O ódio é o idioma falado pelos bolsonaristas nas ruas, vários ativistas de esquerda já foram mortos, inimigos (e ex parceiros) de Bolsonaro desaparecem, e o Congresso se verga às decisões que desejam transformar o Brasil em um fazendão, onde os latifundiários, os rentistas, os especuladores e os banqueiros terão sempre a última palavra sobre os destinos do país. Estes assassinatos que estamos vendo agora poderão se tornar o padrão daqui por diante. A tensão entre o Brasil pobre e os donos do poder se acentuará e os conflitos inevitavelmente explodirão. Não há como conter o desencanto indefinidamente. O auxílio criminoso eleitoreiro vai acabar. Se Bolsonaro fosse eleito em janeiro tudo voltaria ao terror de sempre, mas aí já seria muito tarde.

Para os espíritas eu apenas posso dizer que Jesus era um socialista pregando revisionismo judaico e mobilização política para judeus que sonhavam com um levante contra Roma. Ele jamais foi o “governador da Terra”, uma afirmação corrente entre alguns espíritas iludidos com um pretenso destino especial deste país. Esse tipo de ficção ufanista agride a realidade dos fatos e nada mais é do que um dos mantenedores do nosso atraso social e econômico. NÃO SOMOS ESPECIAIS. Nós brasileiros não somos melhores, não somos predestinados a nada. Construímos a estrada à medida que andamos. O Brasil foi o último país a exterminar a escravidão, o país que mais concentra renda na mão de poucos bilionários (que sequer vivem no país), temos a elite mais racista e perversa entre os países emergentes, e somos a nação que mais mata gays, pretos e pobres pelas mãos do Estado. Temos uma das polícias mais violentas do mundo e matamos mais brasileiros do que muitas das guerras contemporâneas, todo santo dia. Não é honesto ou lícito falar de religião, de espíritos superiores ou de um Cristo apaixonado pelo Brasil; em verdade precisamos extirpar a perversidade entranhada na estrutura de poderes deste país, e isso é uma tarefa para este mundo e não para o plano celestial. Não seremos salvos pelo retorno do Cristo em uma carruagem dourada, retirando do planeta os “maus” e mantendo apenas os “cidadãos de bem”. Se existe algum futuro para o Brasil ele virá através do trabalho dos seus cidadãos na busca por equidade e justiça social. É necessário abandonar definitivamente as perspectivas messiânicas e salvacionistas, pois que o resultado desse pensamento é a alienação e a inação.

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Espiritismo conservador

O CORAÇÃO DO MUNDO. No prefácio da obra escreveu Emmanuel: O Brasil não está somente destinado a suprir as necessidades materiais dos povos mais pobres do Planeta, mas, também, a facultar ao mundo inteiro uma expressão consoladora da crença e de fé raciocinada e a ser o maior celeiro de claridades espirituais do Orbe inteiro. O autor da obra esclarece, na introdução: Jesus transplantou da Palestina para a região do Cruzeiro a árvore magnânima do seu Evangelho, a fim de que os seus rebentos delicados florescessem de novo, frutificando em obras de amor para todas as criaturas.(…)

Sobre o conservadorismo espírita – pelo menos como absorvi na infância:

Estou nesse momento almoçando com minhas amigas chinesas olhando o mar da China e posso imaginar no horizonte a Coreia do Sul. Da conversa me surge a lembrança de que a obra ufanista “Brasil coração do mundo Pátria do Evangelho” é o que o espiritismo religioso tupiniquim mais produziu de semelhante ao nefasto sionismo. Na frase supra citada essa vinculação arrogante e pretensiosa fica constrangedoramente evidente: “Jesus transplantou da Palestina para a região do Cruzeiro a árvore magnânima do seu Evangelho, a fim de que os seus rebentos delicados florescessem de novo, frutificando em obras de amor para todas as criaturas“.

Nada pode ser mais inverídico e prejudicial ao Brasil do que ter uma crença como essa. A ideia de que o Brasil é o “coração do mundo” ou mesmo a “pátria” (????) do Evangelho me dá arrepios. Olho para as minhas amigas daqui e sinto vergonha de que ainda cultivamos a ideia de que somos superiores em algo, os escolhidos por Jesus (????), o povo que Deus escolheu. Por que deveriam os chineses ou os índios brasileiros se curvar a esse palestino? A ideia de ser diferente e superior só produz morte, miséria e devastação. Não me sinto em nada superior ou inferior a qualquer país ou cultura e jamais aceitarei que o Brasil está predestinado a algo de bom ou ruim. O Brasil sempre será o que fizermos dele. A China também.

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