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Scrooge

A história do “morto muito louco” que foi manchete no Brasil – e mesmo fora daqui – e envolve uma mulher levando um homem já morto (aparentemente seu tio) ao banco para solicitar um empréstimo, me fez recordar uma antiga história ocorrida na Liga Homeopática, em meados dos anos 90 do século passado. Naquela época era nosso paciente um sujeito por volta dos 80 anos chamado Joaquim (nome fictício). Sofria de um quadro de DBPOC (doença bronco pulmonar obstrutiva crônica) decorrente de mais de meio século do uso de cigarros. Era um sujeito bem simples, separado, ex-funcionário publico. Sua ex-esposa vivia em uma casa de repouso e estava em estado terminal de Alzheimer, mas ele cobria com sua aposentadoria todas as suas despesas. Teve um único filho que morreu muito cedo de câncer, deixando uma neta adolescente que ele via uma ou duas vezes por ano.

O grande amor de sua vida era sua única irmã, mais moça que ele, uma senhora que também era paciente na Liga Homeopática e que se tornou muito grata pela melhora impressionante que o tratamento havia produzido em seu irmão. Seu Joaquim tratava essa irmã com todo o carinho e a admiração que um irmão é capaz de devotar. Falava dela e das sobrinhas com imenso afeto, admiração e, acima de tudo, gratidão. Durante muitos anos ele era “figura carimbada” nas manhãs de quarta-feira na porta da Liga Homeopática, “lagarteando”, escutando seu radinho de pilhas (sempre sintonizado na rádio Guaíba) e vestindo seu indefectível abrigo amarelo.

Depois de muitos anos de melhoras, inclusive nos aspectos emocionais (“ele deixou de ser um sujeito intragável e insuportável”, diziam os amigos), ele teve uma piora significativa do quadro respiratório e foi internado no hospital. Durante esse período internado fomos visitá-lo, mas as décadas de tabagismo estavam finalmente cobrando seu preço amargo. Depois de algumas semanas de piora crescente ele finalmente veio a falecer. Algumas semanas depois do falecimento do Seu Joaquim a irmã volta a consultar e pergunto como estava se sentindo com a morte do irmão. Ela disse que seu quadro respiratório era mesmo dramático e que sua estada no hospital foi muito desgastante. “De certa forma me sinto aliviada”, disse. Foi então que ela relatou a curiosa história oculta do seu irmão.

Quando estava ainda consciente, apesar da intensa dispneia, Joaquim pediu que chamassem a gerente do banco para criar uma conta conjunta com a irmã e com isso evitar que suas despesas com medicamentos – e até seu funeral – fossem pagos por ela. Disse que tinha um dinheiro reservado que seria suficiente para estas despesas. A irmã disse para ele não se preocupar, que tudo ia dar certo, que em breve ele ia voltar para casa, mesmo sabendo que essa hipótese era pouco provável. Com o correr do tempo o quadro, como era de esperar, piorou ainda mais. Alguns dias depois dessa conversa, a própria gerente do banco compareceu à UTI do hospital e encontrou a irmã. Disse a ela que o Sr. Joaquim havia lhe pedido para assinar documentos dando à irmã livre acesso aos seus depósitos. A irmã então concordou e pediu para que ambas entrassem no recinto da UTI. Quando lá chegaram encontraram Joaquim semiconsciente, incapaz de entender as determinações e sem condições sequer de segurar a caneta com firmeza para assinar os documentos.

“Seria criminoso fazê-lo assinar qualquer coisa, mesmo que seja para seu próprio bem. Não se preocupe com as despesas; eu pagarei tudo pelo meu irmão”. Essas foram as palavras da irmã à gerente, que apenas respondeu “É uma pena. Ele gosta muito da senhora”.

Depois do falecimento de Joaquim a irmã se tornou a curadora temporária de seus pertences. Foi ao banco com os documentos e foi atendida pela mesma gerente que encontrou no hospital. Ela a recebeu com um sorriso e mostrou a ela a conta que Joaquim tinha no banco. A irmã tomou um susto: a conta era milionária. Milhões depositados na poupança e outros investimentos. Não lembro do exato valor e até porque os valores nominais de três décadas atrás não fariam sentido hoje, mas na época eu lembro que era algo como o valor capaz de adquirir vários apartamentos. Ela não sabia como o irmão poderia ter tanto dinheiro. Depois disso, junto com seu marido, ela se encarregou de esvaziar o apartamento do irmão. Era um apartamento alugado, um JK simples no bairro Menino Deus, a poucas quadras da Liga Homeopática. Um lugar escuro e bastante bagunçado, com muitos livros, papéis velhos, documentos, móveis em mau estado e pouquíssimas roupas. No meio das gavetas encontrou um envelope pardo contendo papéis. Ao investigarem do que se tratava descobriram que eram letras de câmbio ao portador de uma grande empresa gaúcha, que ele havia comprado há muitos anos e que, depois de investigar, descobriram que valia milhões. Um tesouro escondido num JK escuro e caótico. Seu Joaquim era um homem muito rico travestido de um velho de hábitos simples.

– E o que aconteceu com todo esse dinheiro?, disse eu ainda espantado com a história do seu Joaquim.

Ela contou que foi tudo para a neta, que morava em outro Estado e tinha desprezo pelo avô. Durante anos a garota só o procurava para pedir dinheiro, mas a justiça não quer saber dos afetos: a lei determinou que ela fosse a única herdeira, recebendo os milhões do avô. Seu Joaquim era um personagem de Dickens, inclusive na aparência. Ele era uma versão moderna de Ebenezer Scrooge protagonista de “Um Conto de Natal” de 1843, que mais tarde inspiraria a criação do personagem Tio Patinhas (uncle Scrooge McDuck), por Carl Barks em 1947. Seu Joaquim era um avarento, ranzinza e pão-duro, mas que tinha na figura da irmã sua conexão com a gratidão e o afeto. A irmã foi seu porto seguro de amor e proteção durante os anos em que viveu isolado e contando seu dinheiro. Infelizmente, a fortuna que acumulou não foi deixada para quem mais a merecia mas, como bem o sabemos, a vida raras vezes é justa como gostaríamos.

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Parteiras

Muitos ainda não perceberam a potencialidade revolucionária da parteria. Boa parte de nós ainda está aprisionado aos ícones de Sarah Gamp, uma velha enfermeira-parteira suja, deseducada, grosseira, alcoolista, mal treinada e mal humorada, personagem fictícia da obra “Martin Chuzzlewit” do escritor inglês Charles Dickens. Ou então, nas parteiras adocicadas, solícitas e domesticadas pela obstetrícia nascente do século XX, e talvez por isso mesmo agora seja o momento mais adequado para repensar as novas assistentes do parto. Depois da quase extinção, elas retornam ao cenário do nascimento no Novo Mundo com força renovada, já que na Europa, África e boa parte da Ásia não houve o mesmo extermínio que a tecnocracia por aqui impôs.

O que me parece claro é que a emergência das novas parteiras – que Robbie Davis-Floyd chama de “Parteiras pós-modernas” – vai impor a elas uma inexorável escolha. Podem se adaptar à tecnocracia e seguir a trilha dos médicos na utilização dos instrumentos, do linguajar e da postura. Podem também aceitar com docilidade a posição subalterna ao saber médico, com sua natural ênfase na etiologia. Por outro lado, elas poderão revolucionar a linguagem, a abordagem, a perspectiva e a conexão que estabelecem com as mulheres grávidas e aquelas que estão a parir.

Estar ao lado das mulheres no momento do parto, o qual conjuga em si morte, vida e sexualidade – como dizia Holly Richards – significa tangenciar o sagrado e o mais profundo mistério da vida. Desta forma, aquelas que protegem esse evento acabarão por reconhecer essa responsabilidade e sua destinação para a mudança, no sentido de transcender o patriarcado e, desta forma, transformar o mundo.

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