Vejo muita gente – inclusive à esquerda do espectro político – tratando a guerra como se ela partisse das propensões despóticas, dos valores morais e do estado de espírito dos líderes envolvidos. Assim, a guerra da Ucrânia teria acontecido pelo (mau) humor do presidente Putin, pelos seus defeitos, pela sua índole belicosa e violenta, como nas histórias da idade antiga onde um Rei invadia um país estrangeiro – levando à morte milhares em ambos os lados do conflito – apenas porque roubaram dele a mulher que amava.
Nada pode ser mais ingênuo do que isso. Entretanto lembrei do Presidente Bush filho dizendo “vou vingar o que você fez ao meu pai” dirigindo-se a Saddam Hussein quando da invasão do Iraque. Retórica que se usa na busca do “idiota comum”, aquele que tenta reduzir as complexidades da geopolítica às emoções comuns, suas batalhas diárias, seu mundo limitado de relações. Reduzir uma guerra a um embate de vaidades pessoais feridas é a mais absoluta tolice. O que existe por trás dessas narrativas é a tentativa de reduzir a complexidade geopolítica e econômica de uma guerra a questões pessoais e morais, porque assim o “idiota comum” consegue se engajar e juntar-se à grande massa de manobra que forma a opinião pública.
Percebo o mesmo fenômeno nos ataques que os identitários americanos fizeram ao presidente Trump. Era quase engraçado observar as críticas que se fazia ao então presidente por suas posições pessoais – e claramente orquestradas – sobre mulheres, imigrantes e negros. Existe um conluio que envolve ambos os partidos americanos para que as discussões em nível nacional durante as eleições se concentrem nas questões morais e de costumes. Por isso tanto se valoriza o fato de que o presidente é “fiel à esposa”, que “frequenta a igreja”, que é um sujeito “temente a Deus”, porque tal enfoque afasta a todos da realidade acachapante de que existe apenas um partido a governar os Estados Unidos: o “Deep State”, composto dos membros de Wall Street, Indústria de Armas, BigPharma e as empresas tecnológicas do Vale do Silício.
Todavia, o eleitor americano médio precisa de circo, e para isso a vida pessoal, os (des)amores, as frases descontextualizadas ditas no passado e a história familiar entram em cena roubando o lugar dos debates sobre saúde, economia, política externa, educação, etc. No Brasil as questões morais são menos importantes, mas nossa fixação na “corrupção” (uma chaga moral) ocupa o lugar onde deveriam estar programas e propostas. Aqui também temos nossos “idiotas comuns” que atacam a pessoa dos mandatários por não conseguirem entender a complexa tarefa que lhes cabe.
É exatamente este tipo de visão moralista e obliterante que permite que um presidente desastroso como Barak Obama, que invadiu SETE países durante a sua administração, pode ser visto ainda hoje como um “exemplo de administração” um exemplar “homem de família”, e ganhar o prêmio Nobel da Paz de 2009, mesmo que seu governo tenha sido um dos mais violentos e assassinos dos últimos anos, e um dos mais desastrosos no que diz respeito à classe média americana – o que levou à eleição de Trump. Este último teve celebrada sua derrota pelo mundo inteiro, que o considerava um monstro, homofóbico, racista e misógino, sem se dar contra de que esta é uma construção fartamente alimentada pela máquina de guerra americana, ávida por colocar no poder um presidente ligado às suas intenções imperialistas e fomentadoras de conflitos mundo afora. Como disse muito bem Glenn Greenwald em uma recente entrevista “Nada do que Trump fez pode ser comparado à maldade moral das guerras patrocinadas por Bush e Obama”.
Quando escuto pessoas no Brasil e fora daqui “torcendo” pela Ucrânia e se justificando com algo como “Putin não dá para aceitar, afinal, ele é homofóbico!! sou obrigado a reconhecer que esta redução da complexidade das guerras à lógica de uma briga de rua produz efeitos até entre as pessoas esclarecidas. Mas não deixa de ser lamentável.