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Minha paixão socialista

“É fácil entender que durante a idade média a ideia republicana poderia parecer “irreal” e fantasiosa. Afinal nossa experiência com a república durante o período anterior ao império romano havia fracassado e acabou se transformando no terreno ideal para o aparecimento de imperadores despóticos e cruéis. Parecia que os ideais republicanos teriam sido definitivamente soterrados pelo pragmatismo da força e do poder coercitivo das armas. Entretanto, como a história pode nos mostrar agora, essa primeira experiência republicana foi especialmente pedagógica, mais pelos erros do que pelos acertos – como sempre é para o nosso aprendizado. O mesmo aconteceu com a democracia grega, que se manteve adormecida por séculos, guardada como semente para só agora ser revigorada.

Durante o período feudal a idéia da República e de estados-nações poderia soar estranha e inviável, ainda mais por parecer uma idéia “ultrapassada” e que “fracassou” quando foi experimentada. Pois estávamos errados. O feudalismo foi gradativamente mostrando suas fragilidades e inconsistências de forma crescente até que a república se mostrou, depois da passagem pelas monarquias e dos “déspotas esclarecidos”, como a solução mais justa e adequada para o ordenamento social.

Ficar gritando contra o socialismo porque “nunca deu certo” se insere nesta mesma lógica. O capitalismo, ao fomentar a iniquidade, a divisão do mundo entre patrões e empregados, jamais foi um elemento de justiça social. Fracassou de forma evidente em terminar com a miséria, mesmo tendo posse dos recursos suficientes para tal projeto. Todavia, numa sociedade de classe faz parte da essência cristalizar os pobres nesta posição subalterna para que não ameacem as elites decadentes e seu poderio.

A lenta decadência do capitalismo mundial nos permite constatar suas falhas pelo crescimento da desigualdade e pela manutenção da miséria, o crescimento de refugiados e de expatriados, a ameaça constante de guerras, de conflitos e injustiças crescentes. Para se fazer presente o capitalismo continua se valendo de golpes contra a democracia, como o que vemos hoje no Brasil de Temer-Bolsonaro, onde seus representantes só chegam ao poder por meio de fraudes.

Consigo ver entre os detratores do socialismo os mesmos campesinos da idade média, pobres e explorados por seus senhores, clamando que “a república e a democracia jamais terão lugar na Europa” porque “é vontade divina que uns mandem e outros obedeçam“.

Se já vimos essa descrença, motivada por pressões e ignorância, por que não haveria ela de sobreviver até hoje? A verdade é que o capitalismo enfrenta uma grave crise e, como em todas as épocas da humanidade, um velho sistema precisa ser substituído por outro que ofereça mais justiça e menos divisões entre os homens.”

“Pour le citroen, le socialisme c’est l’avenir”

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O Carnaval das Classes

Uma amiga foi visitar pela primeira vez o Carnaval da Bahia e resolveu comprar um abadá – uniforme especial do Carnaval baiano – que permite a ela brincar dentro do encordoamento que separa os que pagam (bastante) para ficar próximos ao trio elétrico dos “pipocas”, que por nada pagarem seguem a folia do lado de fora. Não saiu barato, mas suas economias do ano anterior foram suficientes para garantir essa extravagância colorida de verde e amarelo.

A festa corria solta e animada até que algo inesperado aconteceu. Quando o trio elétrico se aproximava da Praça Castro Alves, e a banda começava a cantar a música de Caetano em sua homenagem, todos os cordeiros (seguranças que controlam as cordas de separação) foram acionados para conter uma confusão próxima, e com isso muitos “pipocas” invadiram a parte exclusiva da turma do abadá. Como a invasão foi muito abrupta, rapidamente a área reservada se viu pintada de muitas cores, em especial a dos soteropolitanos mais pobres e escuros que se misturaram aos sulistas e aos turistas estrangeiros de pele avermelhada pelo sol da Bahia. A banda torpedeava “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião” enquanto uma súbita democracia de raças, credos e castas tomou conta da rabeira do trio elétrico. Enquanto o povo se divertia na mistura inesperada a cantora abria o grito, alheia ao que estava acontecendo.

Aos poucos a alegria genuinamente popular que ocorreu com a invasão deu lugar a um crescente desconforto. A entrada do povo na parte restrita às elites começou a desagradar aqueles que se sentiam invadidos. Não que estivessem perdendo algo (já haviam pago mesmo), até porque nada lhes foi retirado. Sequer era espaço o que lhes faltava, pois antes já estava bastante lotado. Não, a inconformidade se dava pela invasão de um espaço que consideravam seu, o qual estava sendo usurpado por aquelas pessoas mais pobres. Não era nenhuma perda objetiva, mas a sensação desagradável e subjetiva de dividir espaço com aqueles a quem não julgavam como iguais. Afinal, tinham pago; portanto, tinham mérito. Tinham, por esta razão, direito a um lugar exclusivo.

A nenhum deles ocorreu, no meio da folia, das músicas, dos beijos roubados, da dança frenética e dos goles de cerveja questionar porque uma festa popular dividia o povo entre os que podem mais e os que podem menos. Muito menos ocorreu a qualquer um dos que vestiam abadá se perguntar as razões e as circunstâncias profundas que lhe permitiram estar do lado de cá da corda. Não, não havia clima para estas perguntas incômodas. A solução encontrada foi uma chamada conjunta de todos que vestiam o abadá verde-amarelo para que os seguranças jogassem todos os penetras para fora. “Voltem para o seu lugar”, gritavam. “Eu tenho o direito de estar aqui, você não”, diziam outros. “Eu paguei, não tenho culpa se você é pobre”.

Em alguns minutos, após a intervenção violenta dos seguranças, a ordem foi restaurada e mais uma vez só havia abadás verde-amarelos entre as cordas. “Eles que façam um carnaval só para eles”, disse o alemão barrigudo que segurava a mulata pela cintura. “Esse aqui é nosso”, completou. O trio elétrico parado na Praça chacoalhava os vidros dos sobrados centenários de Salvador e fazia as ondas do mar próximo quebrarem no ritmo dos atabaques. No centro da praça, impávido e pétreo, Castro Alves recitava em solilóquio alguns versos que surgiram em seu pensamento. Talvez – como saber? – fosse uma lembrança que, sem perceber a razão, lhe ocorreu naquele exato instante de euforia máxima e frenesi apoteótico.

“Existe um povo que a bandeira empresta
Prá cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! …”

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