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Milan

O escritor Milan Kundera faleceu aos 92 anos. Alguns defendem o trabalho do escritor – um notório anticomunista – dizendo que as acusações de Milan Kundera aos dramas do bloco soviético eram baseadas na verdade. “As coisas que ele relata eram reais” dizem. Todavia, o mesmo tipo de narrativa aconteceu faz pouco aqui no Brasil quando os golpistas falavam: “sim, mas as queixas contra Dilma eram todas reais” – o que justificaria o golpe. Neste caso, o “real” é aquela perspectiva apresentada pelos vencedores, né? As coisas na União Soviética eram realmente conturbadas durante a Guerra Fria (entre outras razões pelo esforço armamentista, que destruiu sua economia, mas é o que faz a Rússia ainda existir e estar vencendo a guerra – exatamente o que a Coreia Popular historicamente faz), mas o golpe de Yeltsin – a serviço do Império – fez a Rússia mergulhar no Caos do qual levou 25 anos para se reerguer.

Quem reclama do período Temer-Bolsonaro pode imaginar como seria uma economia reduzir-se a 1/3 do que era nos meses que se seguiram à fragmentação do bloco soviético. A destruição da União Soviética e o poder popular por ela criado era visto como o grande objetivo para a expansão do Império. Não foi possível com os tanques, mas o foi pela guerra gelada do comércio.

E quanto à “Primavera de Praga”, o eurocentrismo que ela denuncia é apenas espetacular. Claro, tanques em Praga são inaceitáveis, não? Já no Vietnã, qual o problema? Por que será que a gente não dá nomes bonitos para os 70 países invadidos pelo Império nas últimas décadas? Só esse episódio parece causar horror aqui no Ocidente. Mas e a Síria? E a Líbia, que retrocedeu um século após a invasão (por que não a “Primavera de Trípoli”?)? E Gaza? E o Afeganistão? E o Iraque? E o Panamá? Não deveríamos tratar por ‘Verão Panamenho” quando o país foi invadido e o presidente Noriega sequestrado pelos americanos? Não haveria uma estação do ano para adornar e dar nomes às sanguinárias invasões do imperialismo em países soberanos?

Eu li Milan Kundera e “A insustentável leveza do ser” me cativou. Poético, tocante, duro e delicado. Mas também li Vargas Llosa, que foi um baluarte de sustentação de Fugimori – e inclusive de sua filha, além de ter apoiado Orbán e Bolsonaro. E isso porque é possível ser reacionário e um gigante da literatura. Da mesma forma eu adoro Zizek e fiquei chocado ao ler seu apoio ao Otanistão, para tristeza de todo mundo que deseja o fim da guerra. As posições políticas desses escritores e intelectuais (inclusive Kundera) eu ponho na conta da russofobia que muitos ainda carregam. Se aqui no Brasil ainda acreditamos nas mentiras contadas sobre a USSR, imaginem o que é feito pela máquina de propaganda da burguesia entre os vizinhos da Rússia, e o grau de manipulação que deve existir até hoje. Mesmo com os graves erros cometidos na Cortina de Ferro – e que devem ser denunciados – nada justifica a adesão ao imperialismo mortal e destruidor que esses personagens adotaram. Meu interesse não é diminuir a importância do escritor Kundera, apenas lembrar desse aspecto da sua personalidade. Um grande escritor, mas um reacionário no campo da politica.

Por outro lado eu nunca deixo de me surpreender com o anticomunismo da esquerda brasileira. Essa característica pode ser explicada pela cultura ocidental que afunda no oceano de propaganda anticomunista que já tem mais de 1 século. Esses ataques é que nos fazem ver o cisco da “primavera” e não enxergar a trave das inúmeras invasões genocidas do Império. Talvez Milan seja “menos” anticomunista do que os francamente direitistas, como Soljenítsin ou Vargas Llosa, ou quem sabe nunca saberemos ao certo até onde o seu anticomunismo poderia chegar. Como saber?

Aliás, sabe o que mais choca as pessoas quando lembram do “A insustentável leveza ser”? O fato de um médico ter se tornado um mísero limpador de vidros. Acho que essa é a ideia central do autor: como pode haver uma subversão de classes a ponto de um médico, alguém que representa os valores das classes superiores, ter se tornado um simples operário. Para a burguesia é um horror imaginar que alguém da “nobreza capitalista” seja “reduzido” a um mero proletário. Todo o livro de Milan é recheado por esse pânico burguês de imaginar um mundo sem classes, onde limpadores e cirurgiões podem sentar na mesma mesa.

Mas, como eu já disse, os reacionários podem ser grandes literatos. Ferdinand Céline, um dos maiores escritores frances do século XX, era nazista, mas foi ele quem escreveu a melhor e mais bela biografia de Ignaz Phillop Semmelweis. Não posso cobrar dele que seja como eu quero. Milan escreveu maravilhosas obras, mas seu reacionarismo não pode passar em brancas nuvens.

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Caçada a Bolsonaro

Rui Costa Pimenta, em uma análise publicadas nas redes sociais há poucos dias, está certo ao denunciar os riscos de uma caçada jurídica a Bolsonaro & Filhos. Nesse caso, a esquerda liberal cirandeira – como sempre – está errada. Rui percebeu que a criação de um mito da direita, um “mártir da liberdade de expressão”, poderá ressuscitar Bolsonaro, retirando-o do limbo político onde se encontra depois de saiu do seu cargo e que seu inúmeros crimes foram descobertos. Os crimes que apareceram até agora – como a adulteração do cartão de vacinas – não vão mantê-lo muito tempo afastado da política. São crimes muito frágeis para colocar em risco – ainda mais destruir – o mito bolsonarista.

Pensem bem: o mesmo ocorreu com Lula. Eu questiono se essa estratégia de ataques insistentes pelo aparato judicial não tende a fracassar da mesma forma como aconteceu com os ataques à Lula; pouco tempo se passou e Lula voltou à cena política, e ainda por cima concorreu e venceu as eleições. Por que não poderia ocorrer o mesmo com Bolsonaro? É chato ter que concordar com as visões mais racionais e abandonar nossas ilusões, mas a preocupação que muitos têm demonstrado com o futuro do bolsonarismo – com ou sem Bolsonaro – é legítima e faz todo o sentido. Pode ser até que nossas preocupações estejam sendo superestimadas, afinal Bolsonaro não tem 10% da capacidade de articulação política de Lula, mas ainda assim olhar este movimento de extrema direita como uma força popular viva e atuante é essencial para poder vencê-lo. Neste aspecto, a postura do PCO sempre foi absolutamente coerente: contra o bolsonarismo, mas sem se iludir com os ataques (inúteis) à pessoa de Bolsonaro e aos bandidos que o cercam.

Querem exemplos? Ferdinand Marcos Júnior é o atual presidente das Filipinas, e isto ocorre porque a deposição de seu pai por uma revolução não exterminou a ideologia de vassalagem ao imperialismo que ele representava. A filha de Keiko Fugimori, quase foi eleita (e não há dúvida que existem chances grandes de que será em breve). A direita se revigora, mesmo quando as personalidades (Fugimori pai, Ferdinand Marcos pai, Bolsonaro) são caçados pelos cirandeiros e a esquerda de visão curta. Enquanto perdemos tempo obcecados por personalidades, as ideologias se metamorfoseiam em novos corpos e retornam ao poder.

Todavia, não sou contra a penalização de Bolsonaro, assim como acredito que Heleno, Mourão, Moro, Dalanhol, os militares et caterva devem pagar pelos crimes cometidos desde os golpes de 2016 contra Dilma e a prisão arbitrária de Lula. Mais do que isso: se esses personagens passarem incólumes por seus crimes, como aconteceu com os torturadores e os militares da ditadura militar, nosso país estará condenado a mergulhar no fosso do atraso e da estagnação por mais 50 anos. A impunidade criminosa dos artífices do regime de 64 nos condenou a repetir na atualidade a promiscuidade da caserna com o poder. Todavia, permitir que nossos ataques sejam centrados em personalidades – e não na ideologia fascista que eles representam – é um erro grosseiro, que poderá nos custar muito caro. Não é possível atacar Bolsonaro enquanto deixamos a direita de Alexandre de Morais, Waldemar da Costa, Temer, Tarcísio etc, correr solta, ainda mais quando vemos tanta gente que se considera de esquerda exaltar o autoritarismo performático de um juiz do supremo.

Não esqueçam: a história ensina que em todas as épocas da humanidade o abuso de autoridade e o punitivismo sempre acabaram penalizando a classe operária, mesmo que nos primeiros momentos possam ter nos iludido, atingido de raspão a classe burguesa – que, em última análise, sustenta e o promove o sistema judiciário.

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