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Impactos

“The Doctor”,1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate (Londres)

Vejo com frequência pessoas exaltando os progressos da medicina e se espantando ao pensar como a humanidade foi capaz de sobreviver sem eles. Citam os antibióticos, as ultrassonografias, as cirurgias e a vacinação em massa, dando a entender que só sobrevivemos por causa desses tantos avanços tecnológicos. Entretanto, a própria ciência reconhece que o impacto (não confundir com a eficiência) dessas novidades (todas elas surgidas a pouco mais de um século) na atenção à saúde foi diminuto. O aparecimento dos antibióticos, das vacinas e dos diagnósticos por imagem não produziu resultados significativos para a saúde global. Em verdade, o impacto real nunca ocorre por meio da ciência médica, mas da engenharia e da política: muito mais significativos para a saúde foram o saneamento básico, o transporte público, as janelas nas paredes, ventilação nas casas, roupa limpa, trabalho digno, limpeza urbana, higiene pessoal, serviço social, ar respirável, comida saudável e água limpa. A medicina, sem dúvida alguma, salva muitas vidas, e controla doenças que, antigamente, seriam inexoravelmente fatais. Todavia, seu impacto na saúde global humana é tímido.

A tuberculose e a Revolução Industrial tiveram uma relação complexa e profunda. A industrialização, que trouxe em seu bojo a urbanização e aglomeração de trabalhadores em ambientes insalubres e superlotados, contribuiu para a proliferação da doença, que se tornou um dos maiores problemas de saúde pública da época, conhecida como “peste branca”. Esta doença é um exemplo clássico: grande flagelo europeu dos séculos XVIII e XIX, ela teve uma queda brusca na sua mortalidade a partir da aplicação das leis trabalhistas que limitavam as horas trabalhadas, em especial nos porões de navios e no porto de Londres. Quando a estreptomicina começou a ser implementada, o número de pacientes graves já havia diminuído em mais de 90%. Segundo o pesquisador Frost, “nada teve mais influência sobre o declínio da tuberculose que a progressiva melhoria na ordem social” e que “um dos aspectos mais essenciais no efetivo controle da doença é a melhoria do padrão de vida dos estratos econômicos mais baixos”. Ou seja: o real impacto veio por meio da regulamentação rígida das relações de trabalho, a alimentação adequada e sobre a insalubridade da vida dos operários. Os antibióticos vieram muito depois, mas ganharam fama porque, com isso, seria possível vender remédios e fazer girar a roda da fortuna do capitalismo. E, percebam: não afirmo que os antibióticos sejam “inúteis” (apesar de serem perigosos); pelo contrário, salvam vidas e são indispensáveis no tratamento de pacientes gravemente enfermos. Entretanto, sua ação é multiplicada pela propaganda; o real efeito positivo para a saúde das populações vem das transformações sociais que ocorrem em função das lutas sociais.

Outra constatação: de todas as descobertas da área médica do século XX, a mais impactante foi a descoberta do aumento de absorção de água pelo túbulo distal do intestino quando, em uma solução salina, se acrescenta uma pequena quantidade de glicose. Para quem é atento, estou apenas descrevendo algo banal: o soro caseiro. Entretanto, essa descoberta foi brutalmente impactante, capaz de salvar milhões de crianças em África, vítimas de disenteria e outras doenças causadas pela água contaminada ou não tratada. Ou seja, o uso deste tratamento causou até um resultado demográfico, aumentando a expectativa de vida, e foi superior a qualquer novidade da medicina surgida na mesma época.

Em resumo, a tecnologia de medicamentos e equipamentos aplicada à medicina tem valor e preserva vidas, mas sua ação é muito menor do que as medidas sociais, políticas e estruturais que, neste caso, podem fazer revoluções significativas na sobrevida, no bem-estar, na longevidade e na saúde das populações. É essencial ter boas noções de epidemiologia ao tentar avaliar o real impacto da Medicina na saúde. Talvez um bom começo seja lendo Ivan Illich e “A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina”. Como pode ser visto na “Encyclopaedia Britannica“, “As visões de Illich sobre a classe médica, expostas em Medical Nemesis: The Expropriation of Health (1975), eram igualmente radicais. Ele contestava a noção de que a medicina moderna havia levado a uma redução geral do sofrimento humano e afirmava que a humanidade era, de fato, afligida por um número cada vez maior de doenças causadas por intervenções médicas. Além disso, argumentava que a medicina moderna, ao parecer oferecer curas para quase todas as condições — incluindo muitas que não haviam sido consideradas patológicas pelas gerações anteriores —, criava uma falsa esperança de que todo sofrimento pudesse ser evitado. O efeito, concluiu ele, era minar os recursos individuais e comunitários dos humanos para lidar com as inevitáveis ​​dificuldades da vida, transformando-os, assim, em consumidores passivos de serviços médicos.”

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Ilustre desconhecido

Desapareça, para sobreviver…

Ontem uma moça me chamou no Messenger porque estava interessada em promover um curso de homeopatia para profissionais do parto. Disse ser doula, ativista, apaixonada por partos e que mora em uma cidade no interior do Brasil. No meio da conversa, e das tratativas sobre o futuro curso, perguntou quem eu era e qual a minha formação, pois não me conhecia, apenas viu uma mensagem que me ligava a cursos de homeopatia na gestação e no parto.

A existência de uma doula neste país que nunca ouviu falar de mim é algo que me deixa extremamente… feliz!! Pensem que há alguns poucos anos isso era impossível; éramos tão poucos e centralizados que era impossível não conhecer os poucos profissionais da atenção ao parto que acolhiam, capacitavam e trabalhavam com doulas. Seu desconhecimento da minha existência prova, de forma inequívoca, que eu não sou tão importante como imaginava, e que a disseminação da mensagem das doulas pode prosseguir sem a minha contribuição ou mesmo existência.

O movimento se espalhou de uma forma e com tal velocidade que os dinossauros aos poucos vão caindo no esquecimento e isso, ao contrário do que parece, deve ser celebrado. Qualquer movimento que se assenta sobre personalidades – ao invés de se apoiar em propostas e ideias – está fadado ao fracasso e ao desaparecimento.

O movimento de doulas no Brasil se tornou extremamente descentralizado, abrindo novas fronteiras de debate e trabalho todos os dias. É notável a capacidade de multiplicação dessa ideia e uma das formas de medir este impacto está na resistência – por vezes agressiva e desleal – dos sistemas de poder instituídos contra a organização e ação das doulas nos hospitais. Também é uma medida de poder dessa proposta a resiliência corajosa das doulas de continuarem existindo apesar de todas as violências cometidas contra elas e seu trabalho.

De minha parte, esta sempre foi a minha maneira de enxergar um projeto de sucesso: trabalhar pela própria desaparição, crescente e insidiosa, para dar lugar a ideias novas, personagens mais capazes e por propostas mais radicais.

Apesar do enorme amor que temos por nosso próprio ego, reconhecer a importância de sair de cena é um dos principais elementos para dar sentido ao trabalho de uma vida inteira.

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