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Riqueza

Houve dois momentos na minha vida nos quais eu tive a nítida sensação de riqueza. Ou seja: a percepção de ter dinheiro sobrando, em demasia, para mais do que necessitaria, a ponto de não ter ideia do que fazer com ele. Sim, foram sensações fugazes, passageiras, momentâneas e rápidas, porém intensas o suficiente para que eu as recorde até hoje.

A primeira ocorreu há 45 anos. Comecei a trabalhar como interno em um Pronto Socorro aos 18 anos, ainda no segundo ano da Faculdade. Era, segundo meu pai, um “maleteiro“, carregador de “maleta”, uma enorme caixa de medicamentos usados pelo médico nos atendimentos domiciliares. Também era “padioleiro”, alguém que fazia transporte de doentes entre um hospital e outro. Depois do primeiro mês de trabalho recebi meu salário, referente às horas que fiquei de plantão no pronto socorro. Lembro que naquela época uma noite de plantão pagava o equivalente a 50 reais nos dias de hoje, mas o dinheiro era o que menos contava; a gente fazia plantão mesmo era para aprender.

Cheguei em casa com o bolso da calça cheio de notas, pensando em como usaria todo aquele dinheiro (uma calça US Top? uma camiseta da Gang? um tênis Bamba? livros?). Meu pai me recebeu em casa com um envelope nas mãos, e nele estava a minha “mesada”. Olhei o envelope e sorri. “Mais dinheiro ainda? Que vou fazer com tudo isso?”, pensei. Disse ao meu pai que não era necessário, mas ele fez questão de me dar aquela que, depois percebi, seria a última das mesadas da minha vida. Poucas vezes tive uma sensação tão grande de opulência.

A segunda vez foi há alguns poucos meses. Depois de uma longa luta contra as burocracias do INSS eu recebi meu primeiro salário como aposentado. O salário, aliás, muito menor do que eu gostaria, mas muito mais do que eu esperava receber. Os cálculos da aposentadoria de profissionais liberais são misteriosos e o resultado é sempre uma surpresa. Depois de muitos anos vivendo num modelo de contenção de gastos e minimalismo, a sensação de ganhar um salário fixo pelos 40 anos de contribuição ao INSS me pegou de surpresa. Tive a mesma sensação da adolescência ao achar que estava ganhando muito mais do que precisava. Sim, já passou, e agora estou de volta à ordem natural da vida, esperando e desejando mais do que tenho. De qualquer modo, ver minha conta no banco recebendo estes valores me conectou imediatamente ao meu primeiro pagamento.

O segredo do amor, segundo sábios do passado, é sentir que está recebendo algo além do seu merecimento. É acordar de manhã, olhar para sua alma gêmea e se perguntar “O que fiz para merecer uma pessoa tão especial como esta? Por que eu?” No mesmo sentido, o segredo do equilíbrio na vida cotidiana é não apostar jamais sua felicidade na posse das coisas, escravizando seu desejo ao que pode ser comprado. “Tudo de real valor na vida é gratuito”, dizia meu amigo Max. O afeto, o amor, a presença da família, os filhos, os netos, a chuva, o sol, os pais, nada disso se encontra em uma prateleira ou vitrine, e muito menos tem uma etiqueta de preço pendurada.

Eu costumava provocar meus filhos quando pequenos perguntando a eles quem era mais rico, eu ou o Sílvio Santos, ao que eles respondiam: “O Sílvio é muito mais rico do que você!!”. Então eu os contestava dizendo: “Pois eu não sei quem é o mais rico, vai depender do quanto o Sílvio Santos deseja”. Sêneca nos ensinou que “não é a carência que produz a pobreza, mas a multiplicidade dos desejos”. Por isso minha surpresa nessas duas ocasiões: acostumado a não desejar pela falta de recursos, a pequena quantia que recebi pareceu exagerada e capaz de satisfazer todos os desejos do momento, mesmo que o tempo viesse a criar outros desejos e a certeza da falta novamente viesse a me fazer companhia. Porém restou uma lição: o segredo da riqueza não está em muito possuir, mas em reconhecer o valor do que não tem preço.

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A nave Brasil

Depois de 25 anos como “caixeiro viajante” da humanização do nascimento um fato novo ocorreu esta semana: pela primeira vez (provavelmente última) eu viajei de primeira classe.

Claro que foi uma feliz coincidência. Meu voo de volta ao Brasil foi cancelado por causa do furacão Dorian e a minha companhia original foi obrigada a me realocar para que conseguisse chegar ao Brasil a tempo de comemorar os 90 anos do meu pai. A única solução encontrada foi evitar o foco das tempestades e fazer uma viagem para o norte, até Washington DC, e de lá seguir para São Paulo. Diante da inexistência de alternativas, aquiesci.

Para minha estupefação, ao entrar no site para marcar os assentos no novo percurso descobri que havíamos sido colocados na primeira classe.

Achei melhor não acreditar para evitar falsas expectativas mas a realidade acabou me vencendo. Os cartões de embarque não mentiam. Entramos com toda a pompa e circunstância na frente de todo mundo e quando vi o cubículo a mim reservado lembrei quando, há uns 10 anos, vi Gisele Bündchen – que viajava no mesmo voo que eu – na acomodação que agora eu ocuparia. Que emoção!!!

Claro que a atitude da companhia se deu porque o voo estava lotado e só estes assentos ainda estavam livres. Era a única forma de chegarmos ao Brasil no dia determinado. Eu não me furtei de agradecer ao Sr. Dorian pelo presente, mesmo com a inevitável culpa de saber que a dor de tantas pessoas atingidas pelo furacão nas Bahamas havia se transformado numa sorte inusitada para mim.

Ao olhar para o fundo do setor da primeira classe eu percebi uma senhora vestida de forma muito simples, como eu. Pensei “deve ser outra sortuda“. Claro que fui vítima do preconceito estrutural que nos contamina, mas não pude evitar. Quando ela se levantou para ir ao banheiro durante a decolagem – e foi contida pelos comissários – a minha certeza se acentuou. Talvez fosse sua segunda viagem de avião, mas certamente a primeira nesta classe. Assim como eu, estava em um mundo que não lhe pertencia.

Foi só depois de algumas horas que eu passei a me dar conta de que a situação, apesar de insólita, era muito familiar. Inobstante o fato de que tal regalia nunca tivesse ocorrido a mim, a situação tinha inúmeras correlações com o mundo em que vivo.

Era muito claro que eu não merecia estar ali; minha presença foi causada por um mero acidente. Fui colocado naquela situação sem esforço pessoal; não havia mérito algum em estar num lugar melhor que o das outras pessoas daquele avião. As regalias, a comida, o licor Bailey’s (não pude evitar), a cama reclinável, a “nécessaire” chique, o sorvete, o tratamento diferenciado da tripulação… nada daquilo era merecido. Não havia justiça em ser tratado de forma tão…. diferenciada.

Por outro lado, um pensamento absurdo me assaltava. Por várias vezes eu imaginava que… afinal… se isto chegou até a mim… muito provavelmente… de alguma forma tortuosa e indecifrável… eu merecia.

(Não pude conter um sorriso lembrando da menina gritando histericamente: “SE EU ESTOU AQUI É PORQUE EU… ME – RE – CI !!!)

Criava na minha cabeça mil fantasias sobre um valor pessoal que só eu enxergava. Pensava que a “justiça divina” era sábia e premiava com justeza. Entretanto, por mais que minha imaginação flutuasse sem controle, eu sabia que era tudo mentira, tudo falso, tudo engano.

Foi o Dorian, somente ele. Nenhuma justiça atrasada, nenhum mérito, nenhum pagamento por valor, nenhuma vantagem merecida. Apenas a coincidência fortuita de uma viagem e um fenômeno meteorológico.

Outra sensação curiosa – que eu procurava afastar com humor caipira – era imaginar ser realmente diferente dos passageiros que estavam na classe “popular”. Olhava lá para trás do avião e brincava com Zeza dizendo “coitados desses pobretões“. Fazia troça dizendo que nunca mais viajaria naquele “poleiro” lá do fundo e que o meu lugar de direito era onde estava agora. “Finalmente estou entre os meus iguais“, sorria em pensamento .

Nesta viagem fui transportado magicamente para a nave Brasil. Como na nossa realidade cotidiana, todos estavam no mesmo avião, haviam embarcado no mesmo lugar e desceriam no destino final, inexoravelmente. Alguns, como eu e Zeza, recebemos por pura sorte um presente que, por sua vez, causou desgraça a centenas ou milhares de pessoas atingidas por uma pequena tragédia, mas isso não nos fez deixar de brindar com o Champagne oferecido. “Não é minha culpa“, pensei eu…

Por outro lado, mesmo o caráter absolutamente fortuito de minha “posição social” não me impediu de fantasiar a respeito de uma suposta diferença que tinha com os outros passageiros. A sensação de ser alguém, superior e “especial” é muito mais inebriante do que qualquer Scotch que se possa beber.

Bastou colocar o pé para fora da aeronave e o encanto da Cinderela se desfez. Imediatamente depois de sair já estávamos na fila do passaporte como todo mundo e meu sonho encantado de primeira classe se tornou apenas lembrança, de onde restou uma boa história. Todavia, esta situação me fez pensar nas injustiças existentes por trás de muitas das nossas hierarquias sociais, onde os méritos são, com frequência, obra do acaso e dos desígnios misteriosos da deusa Álea, a divindade dos fatos aleatórios, na mitologia particular do meu irmão Roger.

Saí do avião com a ideia de que, no fundo, as diferenças que observamos em nossas vidas são artificialismos e muito mais simbólicas do que práticas e reais. O que se vende na classe alta é a ilusão de ser diferente e a fantasia de ser especial. Em verdade, saímos do mesmo lugar e chegamos no mesmo destino, em uma viagem curta, onde o que mais importa é o que carregamos em nossa bagagem de amores.

Como a vida.

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