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Tríptico Amor Romântico – 3. Do que estamos falando?

Primeiramente é importante deixar claro este conceito. Amor romântico não é isso que muitas das pessoas imaginam; aliás, quase todos confundem esse conceito quando se trata das formas de constituir uma sociedade. Amor romântico é casar (ou qualquer relação semelhante que objetiva constituir uma familia) por amor, e não por qualquer outro interesse. Essa criação social é relativamente jovem na história da humanidade, e ainda hoje existem milhões de casamentos que não ocorrem por amor, fora do esquema que temos aqui, e que ocorrem por contrato de divisão de terras, divisão de poder, por escolha dos pais, para fazer filhos, por interesses jurídicos (green card, por exemplo), por rituais familiares, etc.

O Japão tem uma longa história de casamentos arranjados, chamados “omiai”. Este país mudou bastante a partir da 2a guerra mundial e a forçosa ocidentalização que se obrigou pela invasão americana e hoje em dia muitas pessoas estão escolhendo parceiros que conhecem e amam. Há não menos de 20 anos o total de casamentos Omiai era de 20%, mas hoje estima-se que cerca de 5% a 6% dos japoneses ainda usam o modelo do casamento arranjado e aceitam ter seus parceiros escolhidos por outras pessoas. Os casamentos arranjados ainda são a norma na Índia, mas há uma tendência crescente de algumas mulheres escolherem seus próprios parceiros, ou simplesmente não se casarem. Ou seja: o casamento romântico que parece morrer aqui, lá na Índia está recém nascendo e florescendo, e se tornando – só agora – a norma.

Esses casamentos arranjados, que foram o padrão da humanidade por séculos, costumam ser uma instituição muito mais sólida, firme, forte e permanente. Como dizia Contardo Calligaris, “o casamento é uma instituição sólida, a única coisa que o enfraquece e ameaça é o amor”. Todos nós percebemos o quanto o casamento de nossos avós eram bem mais duradouros que os atuais, mas também muitos se espantam (ou ficam horrorizados) ao descobrir que muitos destes nossos antepassados… jamais se amaram.

Enquanto isso, o casamento por amor romântico é uma novidade recente onde o sentimento afetivo (amor) é o principal elemento de união, não havendo outras amarras explícitas para o contrato. Não são escolhas parentais e não são valores materiais os objetivos dos que escolhem o parceiro, o objetivo não é monetário e não há interesses escusos.

Algumas pessoas dizem que este tipo de união é fracassada, tendo em vista que na idade madura mais da metade das pessoas já estão separadas desse amor. Pois foi esse meu interesse ao perguntar: se não for esse o modelo de casamento – por amor – qual seria? Voltar a ter casamentos por dinheiro, escolhidos pelos pais? Pessoas fazendo filhos sem se conhecer? Máquinas de gestação extra corpórea? Relações fugazes? Longos namoros sem coabitação? Filhos criados por comunidades de mulheres? Paternidade dispersa? Pessoas vivendo sozinhas e se encontrando apenas por sexo (como ocorre em parte da juventude de hoje)?.

Claro que qualquer um pode escolher o seu modelo, mas isso não se configura um padrão social, apenas uma forma de resolver sua vida erótica, e sobre essa questão social se apoia a pergunta inicial. Alguns perguntaram “para que precisamos modelos?”, que é uma pergunta válida para o sujeito, mas se vamos tentar entender as tendências sociais é importante questionar as razões pelas quais escolhemos formas de guiar as práticas de união social – em especial aquelas que vão produzir filhos e manter nossa espécie.

Portanto, não estou falando de “amor verdadeiro”, “amor eterno”, “amor real e sincero” e muito menos do conceito de “romantismo”, ou seja, “práticas externas e explícitas de demonstração de afeto e paixão por uma pessoa”. Isso é outro assunto. O amor romântico pode ser silencioso e discreto, basta ser movido tão somente…. por amor.

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Romance

Sempre me perguntei se haveria alguma razão para que eu fosse um sujeito romântico. Aqui vou conceituar “romântico” como alguém que acredita no amor entre duas pessoas, que pensa que uma relação assim pode gerar filhos e que constituir uma família pode ser um dos objetivos mais nobres da vida. Não se trata do romantismo de gestos externos como flores, bombons, declarações grandiloquentes ou, modernamente, carro de som na porta da casa – substituindo as serenatas. Não… apenas a crença no amor entre duas pessoas.

E vejam, coloco a crença no amor romântico apenas como mais um fetiche humano, tão válido quanto qualquer outro – cintas-liga, poliamor ou roupas de couro incluídas. É uma conexão afetiva de ordem irracional, portanto infensa às análises racionalistas e objetivas. Não acho que alguém se torna “superior” por se dedicar a essa fantasia, mas reconheço que os românticos assim definidos se tornam sujeitos mais fáceis para manter relacionamentos duradouros.

Escrevo isso porque arrumando livros antigos dos meus pais encontrei uma singela pista para o meu acanhado romantismo: uma carta que minha mãe escreveu ao meu pai uma semana antes de ganhar seu primeiro filho, meu irmão mais velho. A carta é um primor de romantismo, como não se encontra mais na literatura, mas também explica porque as mulheres nos anos 50-60 tinham muito mais facilidade para parir. O estado se espírito da minha mãe poucos antes do “grande dia” era de pura excitação com o que estava para ocorrer. Não havia uma linha sequer de angústia, preocupação ou temor, apenas uma viva ansiedade para ter seu filho nos braços…. e uma alegria imensa em poder cumprir aquilo que o “destino” havia legado a ela. Outros tempos, por certo…

Achei invasivo mostrar a carta inteira escrita por ela, mesmo que ambos já tenham partido, mas creio que a última frase é um primor de amor romântico e retrata bem as mulheres de sua época, que apostavam sua felicidade no amor profundo por seu companheiro e por seus filhos, dedicando-se uma vida inteira para que eles fossem felizes.

Lendo a derradeira frase daquela simpática missiva parece que estou assistindo uma novela escrita pela cubana radicada no Brasil Glória Magadan…

“My romance doesn’t need a castle rising in Spain
Nor a dance to a constantly surprising refrain
Wide awake I can make my most fantastic dreams come true
My romance doesn’t need a thing… but you”

Carly Simon – My Romance

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Dia sem pai

Pai e mãe, ouro de mina
Coração, desejo e sina…

Hoje era o dia de juntar os netos e ir na casa dele escutar histórias, trocar abraços e ouvir os comentários mais variados sobre – literalmente – qualquer coisa. Este domingo está feliz pelos abraços que recebo, e triste pelos que já não posso mais dar. Hoje é o primeiro “dia dos pais” em que ele não está entre nós; a primeira vez que não tenho meu pai para abraçar.

Tive a oportunidade rara de alcançar o meu pai na corrida do tempo; quando ele morreu ambos já éramos velhos, e pude “trocar figurinhas” com ele sobre o que nós dois sentíamos com o aconchego da velhice a nos envolver com seus braços gelados. Muito do que sei sobre ser velho aprendi com seus conselhos e seu humor sobre a “melhor idade”. Hoje ele me deixa sozinho nessa trilha, e não tenho mais sua experiência para me contar como serão os dias que me restam.

Uma das últimas coisas que ele me disse, quando sua marcante lucidez já estava muito distante, foi uma de suas observações sarcásticas características. Durante sua estadia no hospital eu me aproximei do seu ouvido e disse: “Oi pai, sou eu, Ricardo. Lembra de mim? Sou o seu filho mais bonito”. Ele abriu os olhos, ajeitou o corpo na cama do hospital e disse: “Meu Deus, como você está velho!”.

Olhou firme da minha face e demos uma breve risada. Depois aprofundou-se em seu sono, esperando apenas o momento exato para mergulhar na dimensão desconhecida que o aguardava. Espero que ele esteja bem, e que mantenha para toda a eternidade o humor, a elegância, o charme, a fidelidade aos seus princípios e o amor que sempre direcionou à sua família. Por certo que minha mãe vai cuidar para que mantenha-se na linha.

Em breve serei eu. Percebo a cada dia que passa a proximidade da minha morte, como alguém que sente o frio do inverno se aproximando nas primeiras brisas do outono. Hoje mesmo perguntei ao meu neto Oliver se eu poderia conhecer o filho dele quando nascesse. Oliver disse que não sabe se vai ser pai, talvez com medo da responsabilidade de ser tão bom nessa tarefa quanto seu pai e seu bisavô. Espero ter essa oportunidade cada vez mais rara em um mundo onde as funções parentais perdem valor diante do individualismo que nos cerca.

Ao meu pai deixo o agradecimento de mostrar a mim a grandeza dessa tarefa, construção recente na história da humanidade, mas que oferece às crianças um suporte firme e seguro para alcançar seus mais nobres objetivos.

Sinta-se abraçado, pai.

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Carta a Theo

Há poucas semanas você partiu ainda antes de chegar. Theo, filho de Lucas e Ariane, com 30 semanas de gestação. Como disse meu irmão Roger, “um bisneto que se foi antes do seu bisavô”. Sem explicações e sem avisos, apenas fechou seus olhinhos enquanto ainda aguardava em silêncio, imerso no mundo aquático, quentinho e róseo que o circundava.

De sua breve passagem, algumas descobertas. A primeira é de que o valor da vida está em sua fragilidade. Como pétala, quanto mais delicada mais rara sua beleza. Para além disso, o aprendizado de que a dor, por mais violenta e dilacerante, sempre carrega consigo várias lições . No seu caso Theo, você nos ensinou o valor da comunhão, do suporte, da família, da vida e do perdão. Também nos mostrou a importância da resiliência e da aceitação, assim como nos lembrou que juntos somos mais fortes e capazes de suportar mesmo as perdas mais dolorosas.

Theo, você seguiu seu caminho e à nós resta a saudade de tudo que não vivemos ao seu lado: as brincadeiras com seus irmãos, primos e amigos, a vida na Comuna, o amor dos seus pais e tios, os vovôs carecas e as avós doces e carinhosas. Todavia, sabemos que você está em algum lugar imaginando quando poderá voltar. Quiçá antes do que pensamos…

Vá Theo. Siga o seu caminho. Curta as nuvens, as estrelas e o céu azul. Brinque com os pássaros e a chuva. Estará para todo o sempre vivendo em nossos corações.

* Fotos da cerimônia de despedida com a família mais próxima na Comuna *

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Onde você está?

O isolamento me impede de visitar o meu pai. Com 90 anos, lúcido, sobrevivente de um AVC (que não deixou sequelas físicas) e confinado em casa, recebe apenas a visita da minha irmã. Desde que enviuvou há algumas semanas não saiu mais de casa. Nossas conversas são agora por telefone e, quase sempre, acabam na política. Eu “comuna”, ele um “coxinha”. Por vezes a conversa fica áspera, mas eu entendo o porquê. Ele deve pensar: “Daqui a pouco vou morrer e vou deixar esse comunista desamparado”.

Ontem foi a mesma coisa. Risadas, histórias, críticas e a espiral concêntricas sobre crise-capitalismo-Lula-comunismo. Ele se irrita com o meu idealismo, que lhe parece estéril. Eu me incomodo com sua cabeça dura para aceitar as mudanças necessárias – e inevitáveis. Por outro lado, esse confronto de ideias sempre foi uma marca da família; somos uma família de conversadores e debatedores. Ninguém fica bravo com os exageros retóricos alheios. Como ele sempre diz, “os debates se concentram apenas no terreno das ideias”.

Ontem, depois de quase duas horas de conversa animada a ligação caiu…

– Alô? Pai, está aí?
Silêncio…

Resolvo ligar de novo. Ele atende.

– Puxa, tua irmã ligou e caiu nossa ligação. Ela está chegando aqui com as compras.
– Não tem problema pai, eu tenho mesmo que almoçar, disse. Até outra hora. Assim que passar tudo eu e o Lucas vamos te visitar.

Ele ficou uns segundos em silêncio e perguntou:
– Onde tu estás?
– Ora, na Comuna. Não saio daqui há quase um mês. Estamos completamente confinados.
– Na comuna? Não pode…
– Por quê?
– Tu foi no banheiro? Está ligando daí? Há 5 minutos atrás estavas aqui comigo, conversando na sala!!

Não consegui conter a risada…
– Pai, a gente estava conversando o tempo todo pelo telefone!!
– Sério? (escuto ele levantar para ver se tem alguém no banheiro). Bahhh, a conversa estava tão animada que achei que estavas aqui comigo. Diz isso e cai na gargalhada. Eu também…

Acho que envelhecer bem é conseguir rir até das suas próprias limitações….

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Morrer

Minha mãe morreu em casa, como todos que têm a possibilidade de escolher deveriam cogitar.

Em verdade, esta escolha se fez há alguns anos quando de sua última internação por um problema neurológico. Muito piores que as dores e angústias do seu transtorno físico foram as burocracias relacionadas à internação. Apesar do notável o esforço da equipe de enfermagem em diminuir o desconforto com a situação, nada foi suficiente diante da objetualização natural a que passam todos os velhos confinados em hospital.

“Para um velho a rotina é um alívio”, diz meu pai. Seu argumento é de que a mudança de um padrão diário de atividades produz a inevitável necessidade de readaptação às novidades. Esse exercício de mudança é simples e estimulante para os jovens, mas angustiante e até mesmo aterrador para os velhos. Quando minha mãe acordava de madrugada e não encontrava meu pai ao seu lado isso produzia um sofrimento diretamente proporcional ao seu grau de confusão. Este foi apenas um dos múltiplos efeitos da internação; as medicações estupefacientes, a falta de luz solar, as pessoas uniformizadas ao seu redor, a impessoalidade, as visitas restritas, a cerimônia, a “papelada”… tudo contribui para a piora do quadro psíquico dos idosos.

Com o meu pai ocorreu o mesmo. Quando de sua internação por um AVC o drama foi muito mais o hospital do que a própria doença. As visitas, as rotinas, as drogas, a troca da equipe de enfermagem, as avaliações médicas relâmpago, o atraso dos neurologistas e as “normas de segurança” tornaram a internação um suplício, tanto para ele quanto para nós, os familiares.

Não quero demonizar hospitais e profissionais que lá trabalham, mas alertar apenas do custo muito alto de manter pessoas idosas em tais lugares. A escolha para levar e manter idosos no hospital deveria ser por exclusão. No hospital deveriam permanecer apenas quem dele pode se beneficiar.

Por isso nos mantivemos firmes em não internar minha mãe diante da sua piora e da proximidade do seu quadro final. Mesmo sabendo da dificuldade de suportar a tensão do último suspiro de quem tanto amamos, a escolha de permitir que a passagem se faça com suavidade e na paz do lar vale o sacrifício.

Assim como nascer, a morte deveria ser um momento pleno de afeto e cuidado, e junto aos seus. Os polos da vida se encontram na necessidade de oferecer significado aos momentos mais importantes da nossa breve estada. Nascer e morrer deveriam ser momentos sagrados, resguardados da intervenção exagerada dos sistemas de poder.

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A Cartola e a Bengala de Karpov

Olhou para seus interlocutores com um ar de enfado e regurgitou seu clichê sem nenhum pudor:

Sou um homem muito dedicado à família”.

Na realidade Karpov é um solitário, incapaz de cultivar amigos, reservado e tímido. Taciturno, indignado e misantropo. Um fóbico social, desajeitado e desinteressante. Não lhe sobram muitas alternativas além dos filhos e da mulher, que por força das pressões sociais continuam a manter com ele um contato protocolar. Fosse ele um mero desconhecido, sua mulher e filhos não veriam nele nenhuma das inúmeras qualidades morais que enumera para si mesmo. Deveras, se o encontrassem, murmurariam entre cochichos: “que velho chato e inoportuno!!“.

Mais do que entreveros consuetudinários, os laços de sangue lhe servem de boias salva-vidas. Não fosse pelo sangue que compartilha com os seus sua alma seria nada mais do que uma diminuta semente presa à casca corpórea, que solitariamente rolaria pelo jardim de uma casa há muito abandonada.

Sua proteção contra o completo abandono as produziu metodicamente com as ferramentas mais primitivas: manter a dependência de sua família à relativa segurança dos bens que adquiriu. Karpov antevia que seu destino era a solidão.

Alexei Ustinov, “Цилиндр и трость Карпова” (A Cartola e a Bengala de Karpov), Coletânea de contos, Ed. Vostok, pág. 135

Alexei Ustinov nasceu em Astrakhan, no Império Russo, em 1820. Sua infância passou às margens do Volga e envolvido nos estudos e na literatura. Com 11 anos de idade leu Noites na Fazenda de Dikanka (1831), do seu compatriota Nikolai Gogol, o que lhe produziu profundo impacto. No início de sua adolescência leu Arabescos (1835) e Mirgorod do mesmo autor, e quando da leitura dessas obras decidiu-se pela carreira de escritor. Como Gogol, especializou-se em contos, cheios de ensinamentos e crítica social. Alexei jamais escondeu que “A Cartola e a Bengala de Karpov” foi baseado em “O Capote” de Gogol, assim como “O Regente Ivan Aleksándrovitch” é uma referência óbvia ao falso inspetor enviado para fiscalizar a cidade em o “Inspetor Geral”. Escreveu várias coletâneas sobre a vida no campo, o Volga, os passeios de barco no Cáspio e também sobre as interações das crianças com seus cuidadores diante da educação severa – e por vezes brutal – na Rússia imperial. Escreveu em 1852 um conto chamado “Adeus ao Mestre” em que faz referência a Nikolai Gogol, falecido naquele ano, e sua obra, através do personagem Misha, que sai de sua cidade do interior da Rússia e vai viver em São Petersburgo, a idêntica trajetória feita por Gogol em sua infância. Alexei Ustinov morreu em Moscou em 1895, vítima de pneumonia.

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