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Sugestão

Quando eu morrer, ao chegar nas portas do inferno, deixarei na caixinha de reclamações o seguinte bilhete:

“Agradeço a oportunidade recebida, as condições para levar adiante seus compromissos assim como a intuição para escolher boas causas. Entretanto, deixo como sugestão para novos empreendimentos que estas causas sejam oferecidas àqueles com níveis mínimos de simpatia. Realizar tais tarefas desprovido de carisma e encanto pessoal é uma tarefa difícil demais. Que aos novos postulantes sejam oferecidas classes de simpatia, sorriso, paciência e sedução antes de serem enviados para este planeta de provas e expiações. Grato pela atenção dispensada”

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Morrer

Minha mãe morreu em casa, como todos que têm a possibilidade de escolher deveriam cogitar.

Em verdade, esta escolha se fez há alguns anos quando de sua última internação por um problema neurológico. Muito piores que as dores e angústias do seu transtorno físico foram as burocracias relacionadas à internação. Apesar do notável o esforço da equipe de enfermagem em diminuir o desconforto com a situação, nada foi suficiente diante da objetualização natural a que passam todos os velhos confinados em hospital.

“Para um velho a rotina é um alívio”, diz meu pai. Seu argumento é de que a mudança de um padrão diário de atividades produz a inevitável necessidade de readaptação às novidades. Esse exercício de mudança é simples e estimulante para os jovens, mas angustiante e até mesmo aterrador para os velhos. Quando minha mãe acordava de madrugada e não encontrava meu pai ao seu lado isso produzia um sofrimento diretamente proporcional ao seu grau de confusão. Este foi apenas um dos múltiplos efeitos da internação; as medicações estupefacientes, a falta de luz solar, as pessoas uniformizadas ao seu redor, a impessoalidade, as visitas restritas, a cerimônia, a “papelada”… tudo contribui para a piora do quadro psíquico dos idosos.

Com o meu pai ocorreu o mesmo. Quando de sua internação por um AVC o drama foi muito mais o hospital do que a própria doença. As visitas, as rotinas, as drogas, a troca da equipe de enfermagem, as avaliações médicas relâmpago, o atraso dos neurologistas e as “normas de segurança” tornaram a internação um suplício, tanto para ele quanto para nós, os familiares.

Não quero demonizar hospitais e profissionais que lá trabalham, mas alertar apenas do custo muito alto de manter pessoas idosas em tais lugares. A escolha para levar e manter idosos no hospital deveria ser por exclusão. No hospital deveriam permanecer apenas quem dele pode se beneficiar.

Por isso nos mantivemos firmes em não internar minha mãe diante da sua piora e da proximidade do seu quadro final. Mesmo sabendo da dificuldade de suportar a tensão do último suspiro de quem tanto amamos, a escolha de permitir que a passagem se faça com suavidade e na paz do lar vale o sacrifício.

Assim como nascer, a morte deveria ser um momento pleno de afeto e cuidado, e junto aos seus. Os polos da vida se encontram na necessidade de oferecer significado aos momentos mais importantes da nossa breve estada. Nascer e morrer deveriam ser momentos sagrados, resguardados da intervenção exagerada dos sistemas de poder.

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Morrer

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A face atual da medicina é como a de uma mulher eternamente insatisfeita com sua aparência. Pela impulsividade de seu desejo não interdito submete seu corpo a inúmeras cirurgias plásticas em sequência, as quais obedecem à lógica de consertar o que antes era – ou parecia – falho ou insuficiente. Quem com ela convive no cotidiano não percebe plenamente a intensidade da desfiguração; entretanto, quem a encontra depois de algum tempo, percebe que pouco restou da pessoa de outrora.

Existe um texto de Eliane Brum  (vide aqui) que é uma tocante descrição da morte, o morrer e suas circunstâncias. Fala do poder absoluto dos médicos e sua frieza arrogante. Descreve a insensibilidade dos profissionais que tratam da passagem sem a devida consideração das histórias e falas das quais somos feitos. Deixa clara a necessidade de mudar o médico e sua formação, para que o morrer seja reintegrado à vida e a entrada no mundo dos espíritos seja carregada de respeito e dignidade.

Infelizmente Eliane ainda não percebeu que mudar os médicos é INÚTIL e INEFICAZ se não houver ao mesmo tempo uma mudança nos pacientes. A sociedade forma os médicos que deseja e cultua. A frieza médica é ADMIRADA pelos pacientes; sua fala pretensiosa é valorizada e venerada. Ou, como se dizia no meu tempo: “Ele é um cavalo, mas um excelente médico”.

“Como assim?“, pensava eu, entre ingênuo e idealista. Era importante reconhecer que os médicos não vem de outro planeta; nem os políticos. Médicos e políticos são construções sociais. Temos os profissionais que merecemos e desejamos. O médico que agir em uma UTI – como pedem aqueles que desejam uma medicina mais humana – será destruído em pouco tempo, e pelos próprios pacientes cuja humanidade tenta defender. Não podemos ser ingênuos de propor mudanças em apenas um lado do muro; estas precisam ocorrer na CULTURA para só depois verter para as ações cotidianas.

Sobre isso lembro de uma história de minha época de escola médica. Havia um senhor da Santa Casa que estava em estado terminal há várias semanas. Inconsciente, velho, emagrecido e fraco. Recebia visita de uma filha apenas. Mulher pobre, morava em uma cidade vizinha e pegava duas conduções para vir ao hospital apenas para ver o pai-objeto como carne inerme sobre a cama cuja pintura descascava sem dó. Em uma das visitas eu estava ao seu lado quando confrontou o médico responsável. Disse-lhe que a situação do pai era injusta, que era crueldade mantê-lo naquele estado e que seria muito mais decente “acabar com seu sofrimento”.

Os rodeios eram inevitáveis ao falar de uma morte que era desejada, mas cuja expressão era constrangida. O médico, entretanto, foi duro. “Enquanto houver uma centelha de vida lutaremos por ela“. Despediu-se secamente e foi-se embora, deixando a pobre mulher comigo no corredor.

São uns animais insensíveis“, disse ela secando as lágrimas.

Uma semana depois o velho pai desencarnou e encontrei o médico atendente na enfermaria. Ele me contou que a senhora, filha do paciente que faleceu, veio ao hospital e ao encontrá-lo o acusou de ter “matado” seu pai. Disse que foi negligente, irresponsável, um verdadeiro assassino. Disse também, como ameaça final, que iria à polícia e ao CRM.

Por que ela agiu assim, a mesma mulher que uma semana antes pedia por um fim digno para o seu pai?” perguntou meu colega.

“Culpa”, respondi. “Alguém deveria pagar pela culpa que ela sentia por desejar a morte do próprio pai. Nada melhor que o médico que funciona como um “comedor de pecados”. É uma atitude devastadora para os profissionais, mas muito mais comum do que gostaríamos.”

Ele completou:

“Você tem razão, por isso mesmo é necessário entender as atitudes dos médicos também através desse prisma. Agimos como robôs insensíveis, mas assim o fazemos como uma forma de proteção“.

Se todos os familiares fossem sensíveis e compreensivos diante das perdas seria fácil ser humano diante da morte de um paciente. Mas eles não são…

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Derradeira luz

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“Então, ao descerrar as pálpebras pela derradeira vez, só restarão esses ruídos, sensações dispersas e pedaços de imagens: o choro de um bebê, um sorriso solto no espaço, os bigodes do meu pai, um aroma, um afago cálido, fragmentos de uma carta, luzes fugidias e o calor do corpo que te acolheu no frio de uma solidão. E a certeza da volta. Afinal, não somos mesmo daqui, não?”

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