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Arte e tempo

Meu pai costumava dizer “As virtudes são do sujeito e sua genialidade será eterna; já os defeitos são de seu tempo e lá devem ficar”. Com isso procurava relativizar as falhas e defeitos encontrados nas biografias de gênios da literatura, música, artes plásticas e até da ciência. “É injusto, continuava ele, analisar o sujeito fora do seu tempo, alijado de seu contexto, sem a pressão do seu campo simbólico, no tempo e no espaço. Sem levar em conta seu tempo nosso julgamento sucumbe ao anacronismo”.

Esta semana surgiram acusações ao pintor Paul Gauguin pela prática de relações sexuais com menores de idade no Taiti, onde passou seus últimos anos de vida. A discussão gira em torno dos quadros pelos quais Gauguin é mais conhecido, produzidos em seus últimos anos de vida, quando retratou meninas taitianas que serviram não apenas como modelos, mas parceiras em suas aventuras eróticas. Por esta parte obscura de sua vida mereceria ser, na linguagem contemporânea, ser cancelado.

Eu digo que se formos cancelar o pecador – e não o pecado – não sobrará uma obra sequer da vasta produção humana que não sofra cancelamento, seja ela em tela, página ou melodia. Nada restará de pé para que nossa civilização possa degustar sem culpa. Quem ai, dotado de genialidade criativa, estaria isento de ser seduzido pelos próprios monstros internos? Quem, diante da fama, fortuna e o poder que delas deriva, não seria chamado a se lambuzar nos sabores mundanos? Quem pode julgar o sujeito – não o delito – que, podendo errar, errou?

Por essa razão, eu me oponho de forma veemente a todo tipo de julgamento moral de artistas e pensadores. Nada é mais danoso à cultura contemporânea do que a patrulha moralista, em especial a identitária. Nada é mais embutrecedor do que apagar o passado por julgamentos morais do presente. A tentativa de remediar estas falhas, colocando embrulhos de celofane nos malfeitos é ainda pior; a solução encontrada por alguns de mudar as obras, fazendo “correções” para amenizar “erros” é absurda e mutilatória. “Corrigir” Heidegger, Monteiro Lobato, Picasso ou Wagner é destruir a história que circunda seus trabalhos, o que lhes veste de significados e relevâncias.

Deixem os termos racistas, antissemitas, misóginos e homofóbicos intactos e discutam esses fatos abertamente, como uma janela aberta no tempo para enxergar nossos valores mutantes no passado, assim como os erros de lá que desejamos combater aqui. Apagar da história as obras de gênios controversos é um crime de lesa-arte. Ao fim e ao cabo acabamos percebendo que a avaliação moral do artista serve sempre a interesses políticos, e libertar-se desse tipo de constrição é sempre um ato de justiça à própria arte, que será livre ou não será arte.

A partir de uma conversa com Oscar

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