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Propaganda Colorida

Recebi pela terceira vez esta semana pedidos para me unir aos esforços para combater o regime “misógino” do Irã.

“Os EUA, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá impuseram sanções a algumas instituições e líderes iranianos em decorrência das violações aos direitos humanos, mas muito ainda precisa ser feito!”

Essa propaganda chegou ao meu e-mail, enviada por estes grupos de “defesa” das populações oprimidas. Usa o mesmo artifício retórico das sanções contra a China por sua política que ataca os Uigur, tentando mostrar que o governo chinês – diferentemente do que ocorre no ocidente – é composto por bandidos que não respeitam os direitos humanos. Quando vamos pesquisar com cuidado e atenção, percebemos que as acusações são falsas ou criminosamente retiradas do contexto.

Mais uma vez o que se vê o identitarismo sendo usado para a desestabilização dos países não alinhados e rebeldes. É apenas asqueroso ver o uso que se faz de causas justas, como a defesa das mulheres, dos negros e dos gays, para angariar a simpatia de muitos ao redor do mundo, quando sabemos que o real objetivo é atacar os países que ousam enfrentar a crueldade do Império Americano.

Será tão difícil assim perceber que estes são movimentos coordenados para atacar o Irã – um país anti imperialista – para iniciar uma nova “Revolução Colorida”, uma “Primavera em Teerã”, cujo único objetivo é desestabilizar o governo local? Basta uma pesquisa rápida para entender que as mulheres estão sendo (mais uma vez) usadas para levar adiante um ataque do Império às nações “desobedientes”. Por que não iniciamos sanções aos Estados Unidos, onde 220 mil mulheres estão presas, numa população carcerária de mais de 2.3 milhões de prisioneiros, mais de 50% não brancos, em uma população onde eles são minoritários? Por que não iniciamos campanhas para punir os Estados Unidos pelo estímulo à guerra fratricida entre Rússia e Ucrânia? Por que não culpabilizamos o imperialismo do Otanistão pela crise dos imigrantes, pela Guerra na Síria, pela destruição da Líbia, pelos massacres sionistas em Gaza?

Por que escolhemos exatamente o Irã, e por que agora? Sim, no exato momento em que este país formaliza o desejo de se juntar aos BRICS para se juntar aos países já alinhados e formar um enorme bloco de oposição ao Imperialismo, os ataques ao país se tornam mais intensos, sempre baseados em questões morais, como a “defesa das mulheres”. Aqueles que se juntam a estes protestos são os mesmos que choravam com a vitória do Talibã em solidariedade às mulheres e meninas daquele país, sem se aperceber que muito pior é a dominação imperialista no país e suas inúmeras acusações de execuções, prostituição e a rede de pedofilia que foi liderada (ou tolerada) pelos americanos no país.

Por pior que seja o Talibã, nada pode ser pior que o domínio de uma potência cruel e destruidora como o Império Americano. Se nos Estados Unidos quase 20 mil mulheres das Forças Armadas americanas foram abusadas sexualmente por seus colegas apenas no ano de 2010, o que dirá das mulheres e suas filhas que vivem nos países brutalmente ocupados pelo exército americano invasor? Vamos cair de novo nessa armadilha montada para destruir o sonho de um mundo multipolar?

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Preconceito

É curiosa a nossa percepção de preconceito, e sobre essa questão já me debrucei diversas vezes. A definição de “pré-conceito” seria o conceito prévio, aquilo que trazemos como verdade antes do fato ser julgado, sentimento de hostilidade baseado em uma generalização após uma experiência pessoal (ou mais de uma) ou imposta pelo meio; uma espécie de intolerância por fatos já acontecidos. Aqui é importante diferenciar “preconceito” de “discriminação”. O preconceito é um sentimento, enquanto a discriminação é uma ação de desmerecimento de pessoas ou grupos baseada em preconceitos.

Pois eu afirmo que, na realidade, ninguém é contra os preconceitos. Todo mundo os tem e os usa todos os dias. “Vamos por este caminho para não termos que cruzar pelo bairro perigoso”. Quem nunca disse isso? Quem se aproxima sem cuidado de um cachorro desconhecido? Ora, pode ser mansinho, mas experiências anteriores nos dizem que ele pode morder. Temos preconceito com cães e com a “barra pesada”. O genial Oscar Wilde já nos dizia “A vantagem de brincar com fogo é aprender a não se queimar”.

Esta semana um sujeito nos Estados Unidos expulsou uma passageira que teve uma atitude racista no seu Uber. Teria dito: “ainda bem que você é branco, fala inglês”. O jovem ficou furioso e exigiu que ela se retirasse. Foi aplaudido por todos, inclusive por mim, que acho essas atitudes odiosas e injustificadas.

A gente não sabe se essa moça já teve experiências ruins com imigrantes de pele escura – uma, duas ou mais. Não importa: seu preconceito contra negros e imigrantes é intolerável. É consenso que as experiências prévias dela não podem justificar um julgamento sobre toda uma identidade (raça, origem, identidade e orientação sexual, gênero, etc.). Guardem essa última frase.

Agora pergunto: se ela tivesse dito “Ainda bem que você é mulher”, produzindo um claro e evidente preconceito de gênero contra os homens, acaso seria maltratada e expulsa? Seria admoestada por produzir uma generalização apressada, um sentimento de hostilidade contra um grupo, intolerância com a identidade dos motoristas homens?

Não, não seria. Vi mulheres expressando isso de forma clara e até orgulhosa. Ter preconceito contra homens NÃO É um problema, não é socialmente repreensível e não causaria nenhuma comoção caso seja expressado publicamente. Todo mundo já testemunhou isso sendo feito dezenas de vezes. Assim, fica claro que não é o preconceito que deploramos, mas apenas quando o uso de generalizações negativas recai sobre grupos socialmente desfavorecidos. O preconceito em nossa cultura é LIBERADO, o que não pode ser tolerado socialmente é seu uso para estigmatizar segmentos ou identidades que já são atacados ou desmerecidos.

Falar mal de homens, brancos, cis, heterossexuais etc, é absolutamente permitido e até estimulado. Não há problema algum tratarmos brancos como um bloco uniforme chamando-os de “branquesia”, tratar os homens por “mascus” ou “macharedo” ou desmerecer a heterossexualidade. Não há problema algum em enxergar todos os homens como versões de Fred Flintstone ou Homer Simpson. Não existe nenhuma revolta pelas generalizações sobre estes grupos; pelo contrário, são até elogiadas.

Não esqueçam que racismo é preconceito de raça e o que a passageira do Uber fez foi preconceito. Não há distinção. Também não há como deduzir que ela NÃO teve mais experiências negativas porque estava rindo. O comportamento diante dessa interação é errático e não segue padrões. Talvez quisesse apenas que ele se associasse a ela no preconceito. Mas veja…. boa parte das mulheres manterão sua perspectiva de que não há problema ter preconceito de gênero com os homens porque eles são realmente maus, abusadores e violentos, mesmo que 99.99999% das interações das mulheres com os homens seja absolutamente pacífica. Minha tese, que eu gostaria que fosse debatida, é sobre o fato de que não temos problema algum – enquanto cultura – em assumir posturas preconceituosas. O problema é contra quem é o preconceito é exercido, e não o julgamento pregresso que temos de pessoas, grupos ou identidades.

E vejam, eu não reclamo dessas características da cultura sobre a forma como os grupos são tratados, e entendo o preconceito contra os grupos vistos como poderosos – brancos, homens, heterossexuais, cis gênero, etc, mas apenas acredito ser errado criar sobre estas identidades uma falha moral, como se pertencer a elas fosse errado ou indecente, o que permitiria que fossem tratados de forma generalizada como inferiores, maléficos, degenerados ou violentos. Da mesma maneira, acredito ser absurdo imaginar que a condição de oprimido garanta uma vantagem moral sobre grupos opressores. Acho também que qualquer preconceito contra identidades é deplorável, e não apenas aqueles socialmente estimulados.

E… não é necessário concordar comigo; segundo meu ídolo Oscar Wilde, “Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão de que devo estar enganado.”

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As Armadilhas da Identidade

Há muitos anos me debato com a questão do identitarismo, até porque sempre fui um homem imerso em um universo absolutamente feminino, e seria normal e compreensível que sempre fosse visto com uma certa estranheza. Por esta razão, não foram poucas as vezes que me defrontei com silenciamentos, exclusões e com o indefectível argumento do “lugar de fala”.

Por certo que muita besteira eu disse nessas três décadas de debates sobre partos, amamentação, puerpério e os próprios aspectos da sexualidade ligada ao parto, mas eu via nas inúmeras interdições – veladas e explícitas – um cancelamento indevido de vozes cuja aparente dissonância em verdade oferecia a possibilidade de se criar uma melodia muito mais rica e complexa. Sempre acreditei que estes múltiplos pontos de vista poderiam compor uma paralaxe benéfica para fortalecimento das ideias. Todavia, muitas vezes preguei no deserto.

Assim, o livro “Armadilhas da Identidade” de Asad Haider, caiu como uma luva sobre minhas inquietações, em especial porque trazia a resposta para uma antiga indagação. Em uma parte do livro – onde comenta sobre a realidade do racismo que atinge os negros americanos – ele observa que em muitos lugares (como em Milwakee, por exemplo) a maioria dos policiais é negro. Surge então a questão: como poderia a polícia se manter violenta e racista se os indivíduos que a compõem são do mesmo grupo vitimado por esta instituição?

Quando li isso me veio à mente outra violência que acompanhei diuturnamente durante mais de três décadas: a violência de gênero que se expressa na assistência ao parto, onde a imensa maioria das atendentes – inclusive as obstetras, que se situam no ápice do sistema de poderes – é composta por mulheres. Aqui sempre esteve presente a mesma pergunta: por que mantemos uma assistência violenta e misógina mesmo depois da obstetrícia se tornar majoritariamente feminina?

Não seria de se esperar que a violência diminuísse a partir do momento em que negros vigiassem negros e mulheres acolhessem mulheres? Não haveria uma obrigatória identificação com o outro, objeto de nossa ação?

O resultado dessa maior representação – conforme testemunhei durante décadas – foi ausente ou pífio. Não há até hoje nenhuma diferença mensurável entre as ações de policiais negros ou de obstetras mulheres no que diz respeito à violência de sua prática. A explicação para esse fenômeno é porque, muito mais importante do que os sujeitos que estão presentes nestes atos, são as instituições e os valores que elas representam. A polícia existe para impor à sociedade pela força uma divisão brutal de classes, enquanto a obstetrícia vai marcar as mulheres com o signo da submissão feminina dentro da sociedade patriarcal, inobstante os atores que emprestam seus corpos e mentes para essa função.

Colocar indivíduos negros na polícia e mulheres na obstetrícia – garantindo a esses grupos uma maior representatividade – em nada auxilia na transformação radical do sistema que os sustenta. Em verdade, as políticas identitárias que se resumem a colocar mulheres e negros em posição de destaque são parte do sistema de dominação – e não sua real oposição.

O grande equívoco é mantermos nossa visão obscurecida pelo gênero e raça e não percebermos a estrutura capitalista que subjaz, a mesma que fabrica a misoginia, o racismo e outros preconceitos como ferramentas para manter a sociedade de classes. Esse erro se espalha e se reproduz quando colocamos a culpa no branco e no homem, como se estes personagens fossem os culpados pelo sistema de opressão do qual eles também são vítimas. Por esta razão creio que um movimento unificado que suplante os identitarismos seria a grande saída para o fortalecimento das lutas. Aliás, a proposta de colocar homens, cis, brancos e heterossexuais como “os inimigos a serem destruídos” é um roteiro que só pode levar ao fracasso, como visto até agora.

O fim do racismo e do machismo vai ocorrer quando houver a superação da sociedade de classes através da luta de todos, acima das identidades, em direção a uma sociedade sem divisões artificiais.

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Cartinhas

Sem nenhuma surpresa a resposta de Alexandria Ocasio-Cortez às críticas que recebeu sobre sua performance na festa de milionários da qual participou (usando o vestido “Tax the Rich”) cumpriu o padrão identitário conhecido. Referiu-se aos críticos como “machistas e racistas que não suportam ver mulheres negras em posição de destaque”.

Ora, não há dúvida que o racismo e o machismo são problemas reais e urgentes em países que adotaram a escravidão como sistema durante séculos e que ainda mantém suas sociedades conectadas ao modelo patriarcal. Da mesma forma, é fácil perceber que o antissemitismo permanece na cultura ocidental como discurso segregacionista, tanto quanto a homofobia multiplica vítimas no mundo todo.

Entretanto, usar essas feridas sociais para blindar qualquer crítica aos membros desses grupos traz como consequência o desgaste da retórica, prejudicando aquelas pessoas que realmente sofrem discriminação e até morrem por estas práticas. Durante 70 anos as práticas genocidas de Israel foram respondidas pelos apoiadores dessa colônia com o “holocaust card” (vejam o discurso de Norman Finkelstein sobre essa prática). Hoje em dia, questionar as ações de representantes do mundo gay – como dizer que uma cantora trans desafina – é tratado como crime. Criticar um político negro, como Holiday, passa a ser racismo. Reclamar da ação de algumas mulheres, mesmo de esquerda, torna-se um ato “machista”, e assim por diante.

O resultado dessa prática é que hoje ninguém mais presta atenção numa acusação de antissemitismo porque esse termo foi usado durante tantos anos para acobertar os massacres palestinos que os verdadeiros antissemitas se sentem protegidos. O mau uso do termo – abusivo e oportunista – o transformou em palavra vazia. Gasto, inútil, sem poder algum. Quando você chama um garoto de 18 anos que fez duas partidas de futebol de qualidade de “craque” que palavra precisaria usar para se referir a Pelé, Zico, Sócrates ou Messi?

O mesmo acontece com a “defesa” encontrada por AOC para rechaçar seus críticos: partir para o contra-ataque puxando as cartinhas fáceis que rotulam os adversários de “racistas” e “machistas”. Só faltou o “You shall not pass!!!”, ou “Não passarão!!”.

A resposta de Glenn Greenwald a esta réplica de AOC foi brilhante. Ele, um judeu gay e de centro-esquerda, não deixou barato e afirmou que o uso dessas expressões e acusações aos críticos da sua atuação de forma oportunista prejudica as milhares de mulheres e negras do mundo inteiro que sofrem reais e inequívocos ataques por seu gênero e cor. Gastar estas acusações para se livrar de críticas justas à sua atuação política é uma ação criminosa, e as vítimas são as próprias mulheres negras que ela deveria defender.

PS: Já fui chamado de “machista” várias vezes por críticas que eu fiz a algumas mulheres. Não discuto a validade destas acusações, mas se você chama a mim e a um espancador de mulheres com a mesma palavra, algo está errado. E esse erro, que produz o desgaste da palavra, só beneficia os brutos e agressores.

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Conservadorismo espírita

Pensa numa contradição….
Um cara escreve um texto denunciando a “geração cristal”, frágil e fraca, que não suporta contradições.
Você discorda,
Ele te bloqueia….

Mesmo sites espíritas que se dizem progressistas acabam escorregando para o conservadorismo, a essencialização dos gêneros a muitas vezes descambam para uma misoginia escancarada.

Acabei de ler um texto sobre a velha tese da “geração de cristal” que diz que os jovens de hoje não suportam críticas ou frustrações. Eu mesmo creio que existe verdade nesta perspectiva, e temos legiões de jovens “flocos de neve” cujos sentimentos ficam abalados por qualquer contradição. Entretanto o texto apelava para um saudosismo tosco quando afirma textualmente:

“A geração que nos ensinou a viver sem medo está morrendo
….as pessoas que ensinavam aos homens o valor de uma mulher
…. e às mulheres o respeito pelos homens.”

Quer dizer então que “antes sim os homens sabiam valorizar uma mulher”?

Sério? Há 100 anos quando elas não votavam? Há 43 anos quando não podiam se divorciar? Quando se matava em nome da honra? Quando não tinham liberdade sexual? Quando eram apêndices dos homens? Quando não podiam trabalhar? As mulheres não respeitavam os homens; tinham medo deles. E os homens – como regra – viam nas mulheres valores maternais, e quase nada mais.

Ora, quanta verve reacionária. Apesar do nosso atraso civilizatório não será no passado que vamos encontrar solução para os problemas de gênero. Achar que o “cavalheirismo” é a resposta é um brutal desrespeito com as lutas das mulheres. Acreditar que no passado havia respeito é ignorância. Achar possível um passo atrás é absurdo.

É triste ver posturas reacionárias dentro de um movimento que se propõe progressista, aberto e livre pensador.

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Lamaze

O que sobra nos dias de hoje dos ensinamentos do obstetra francês Fernand Lamaze? O controle consciente do processo de nascimento por parte da gestante ainda possui espaço na atenção ao parto de hoje? E seu pendor autoritário, ainda encontra defensores entre os pensadores do nascimento humano?

Eu creio que alguns modelos aplicados ao nascimento são – na perspectiva atual – completamente anacrônicos no que diz respeito às suas propostas.

Este é o caso dos modelos baseados na visão de Fernand Lamaze e seus sucessores, como Pierre Vellay, Achiles Economides, Robert Merger e outros, os quais estão conectados aos criadores da psicoprofilaxia do parto, originária da Rússia por Velvovsky que por sua vez se apoiava nos estudos de reflexos condicionados de Pavlov. O modelo de Lamaze se baseia na sugestão e no princípio do “awaken and alert” do “parto sem dor”, da respiração alotrópica e de tantos outros conceitos hoje completamente superados. Vale como documento histórico, mas é bom ressaltar que os “Grupos Lamaze” de educação perinatal de hoje em dia não tem mais conexão com as ideias do seu criador.

Aliás, a visão contemporânea do parto humanizado é exatamente OPOSTA à visão de Lamaze. A visão de atenção ao nascimento de hoje prescreve o apagamento neocortical, e não sua ativação.

De qualquer modo estas perspectivas de meados do século passado tem um grande valor histórico. Nos anos 60 o “parto sem dor” era a grande moda. Todos as cenas de parto do cinema, em especial americano, das décadas 60 e 70 mostravam a mulher “soprando” enquanto conversava com seu marido. A função deste era estimular a ela um contato visual, pedindo-lhe que se mantivesse alerta e desperta. Aos maridos era solicitado que servissem como “ajudantes de ordens” do obstetra.

Nesse modelo o médico seria o “capitão”, o marido seu imediato e a mulher a força da natureza contra a qual ambos agiriam. Isto é: um poder masculino reforçado (médico + marido) enfrentando a mulher e sua fisiologia caótica e indômita. Um choque entre razão e natureza, numa perspectiva patriarcal. Para isso ser efetivado, Lamaze inclusive admitia que “pacientes infantilizadas fossem tratadas de forma autoritária”.

Segundo a Wikipedia, “Lamaze foi criticado por ser excessivamente disciplinador e antifeminista A natureza disciplinar da abordagem de Lamaze para o parto é evidente na descrição de Sheila Kitzinger dos métodos que ele empregou enquanto trabalhava em uma clínica de Paris durante os anos 1950. De acordo com Sheila Kitzinger, Lamaze consistentemente classificou o desempenho das mulheres no parto como ‘excelente’ ao ‘fracasso total’ com base em sua ‘inquietação e gritos’. Aquelas que ‘falhavam’ eram, de acordo com Lamaze, ‘elas próprias responsáveis, porque nutriam dúvidas ou não haviam praticado o suficiente’ e, previsivelmente, mulheres ‘intelectuais’ que ‘faziam muitas perguntas’ eram consideradas por Lamaze como as mais propensas a falhar.

Mas é bem interessante que a mudança da compreensão do parto tenha ocorrido em perfeita sintonia com a troca de percepção da própria mulher na sociedade, numa dança dialética onde um fator reforça o outro e é por ele intensificado.

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Sexismo

Alguns ataques pelas redes sociais a personagens ligados ao movimento do parto humanizado se referem a um velho ranço da turma da humanização do nascimento com a presença de homens nas suas fileiras. Essa mescla contemporânea de humanização + feminismo abriu as portas para esse tipo de rejeição. Sofri isso de forma velada desde o primeiro post que publiquei na Internet há mais de 20 anos, e vejo isso até hoje (o que me garantiu o recorde mundial de blocks: mais de mil). Evidentemente que eu não posso dizer que tal circunstância é “culpa” do feminismo, assim como as cruzadas não foram culpa do cristianismo – muito menos do próprio Cristo. Entretanto, o uso inadequado do feminismo como projeto de silenciamento do masculino – em todos os níveis – é o parefeito de um projeto que, por sua origem, deveria promover a escuta de todas as vozes, sobrepujando em definitivo as barreiras de gênero.

A rejeição aos homens no debate sobre o nascimento sempre foi um fato muito evidente para mim, expressando-se através de uma constante desautorização e pelo desmerecimento de falas. Essa questão deveria ser abertamente debatida, se é que o movimento de humanização se deseja plural e aberto, e não um mero braço do movimento feminista mais radical.

Se é verdade que os homens estão alijados de falar DE parto, pois que anatomicamente estão impedidos a isso, (e aqui não vou tratar da questão trans), nada os impede de falar SOBRE o parto e por cima de suas experiências profissionais e/ou pessoais com o evento. Calar a voz de especialistas em parto como se sua masculinidade fosse um defeito é um ato criminoso.

Acho também que essa é uma questão menor, por certo, mas que vejo como importante de ser tratada nesse ambiente restrito. O mais importante no atual momento é o estrelismo, que mais uma vez nos acomete. A exaltação de egos, dos Messias da ciência, de salvadores e de “mensageiros da verdade científica” está produzindo uma autofagia absolutamente inútil e desnecessária. Ao invés de reconhecermos a nossa fragilidade diante de uma pandemia sobre a qual MUITO POUCO OU QUASE NADA sabemos ficamos destruindo reputações on line, atacando colegas e mandando “indiretas” como adolescentes.

Sei que essa minha opinião não é compartilhada por muitas pessoas, e boa parte chamará esse desabafo de “mimimi“, curiosamente a mesma expressão usada secularmente para as ilustrar queixas justas das mulheres a respeito dos abusos sobre elas cometidos. Não esqueçam que os ataques misóginos contra a presidenta Dilma foram tratados com o mesmo desdém, chamados de puro chororô de perdedor. Entretanto, também é importante olhar com os olhos dos milhares de homens que trabalham com o parto, de enfermeiros, obstetras, parteiros e pediatras que gostariam de participar desse debate, mas que são afastados dele pelos constantes ataques – por vezes sutis, muitas vezes indiretos – mas que na emergência de crises como a de agora se tornam explícitos, duros, incoercíveis e até cruéis.

Paz…

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Patriarcado

TODAS as religiões abrahâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), surgidas da mesma fonte na Palestina, foram criadas para espelhar o PATRIARCADO nascente. Por isso mesmo o Deus era homem, guerreiro, duro, inexorável e cruel; não por acaso chamado de “O Senhor dos Exércitos”. Isto é: as religiões CRIARAM um Deus homem para refletir a mudança substancial na estrutura da sociedade, que passou a ser marcadamente patriarcal, falocêntrica, baseada nos valores do masculino, na invasão, na conquista e – acima de tudo – na proteção da propriedade e das identidades. Veja como as deusas da antiguidade foram todas suprimidas e deixadas de lado para que o Deus masculino e fálico fosse colocado no posto máximo entre as divindades. Leia “As Brumas de Avalon”, por exemplo, para ver o destino das deidades femininas.

O patriarcado, para se impor como a estrutura básica da sociedade, precisava se apoderar de todos os símbolos e mitos, e assim o fez.Desta forma, jamais seria possível criar um modelo patriarcal – para defesa dos territórios, surgidos com a agricultura e a pecuária – e fazer com que a divindade superior fosse uma mulher!! Precisava ser homem, pois só assim seria temido e exaltado pelos exércitos. Ele seria a imagem mais fiel do espírito dos guerreiros e – num mundo agora patriarcal – era necessário que esse Deus mimetizasse os valores dos líderes humanos que guiariam seus povos. O patriarcado se espalhou desta forma pelo planeta inteiro exatamente porque produzia uma sociedade forte e bem protegida. Hoje pode ser questionado, mas há 10 mil anos pensar diferente significava a aniquilação.

Ao dizer que, uma sociedade que elege uma Deusa como figura máxima JAMAIS poderia ser patriarcal, digo apenas que o sistema de domínio seria “matriarcal”. Teríamos uma cultura invertida, nem pior e nem melhor do que a que temos hoje, e talvez nesse mundo imaginário os homens é que deveriam ser protegidos de um “matriarcado opressor”.

Quem acredita que as mulheres são MORALMENTE superiores, ou estão espiritualmente acima dos homens é tão sexista como o pior dos machistas, e só não está matando e estuprando por falta de coragem ou força. Como já foi escrito de diversas formas e em inúmeras línguas, “feminismo é busca por equidade, e não por supremacia”.

Quem acredita nisso – que homens e mulheres são intelectualmente e moralmente iguais em essência – deveria entender as coisas simples expressadas acima. Colocar um gênero abaixo OU ACIMA de outro é tão asqueroso quanto colocar uma raça, uma religião ou uma orientação sexual acima ou abaixo das demais. Sexismos e racismo são filhos do mesmo pai: o preconceito.

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O Sofá da Sala

Acabo de ler a nota do governo brasileiro – claramente inspirada pela corporação médica – que tenta impedir o uso do termo “violência obstétrica”, curiosamente na mesma semana em que o presidente, usando a mesma lógica, diz que “racismo é algo raro de ocorrer no Brasil”. A mesma tentativa tola de tirar o sofá da sala imaginando que assim o problema deixaria de existir.

O problema não é o termo utilizado, mas a “misoginia essencial” que permeia a atenção ao parto e nascimento, resultado de 100 séculos de modelo patriarcal a conduzir nossas vidas. Violência obstétrica existe sim – e dói.

Creio que não resta nenhuma dúvida dos interesses por trás dessa manobra; elas visam, em essência, a mudança de narrativa através da supressão de expressões consagradas. Estas são atitudes muito coerentes com o modelo revisionista que se pretende implantar no Brasil de hoje. Assim, não tivemos golpe em 64, mas “governos militares”. Dilma sofreu um “Impeachment” e não outro golpe patrocinado por grupos ressentidos, o que abriu caminho para outras aberrações jurídicas como prender o ex presidente Lula sem apresentar provas.

Desta forma sorrateira o Brasil inaugura oficialmente o uso da “novilingua” acreditando que assim fazendo exterminará como por encanto a violência física e moral a que são submetidas milhões de mulheres no país, algo que o termo – agora suprimido – sempre pretendeu denunciar.

Sabemos que tais iniciativas grosseiras e ofensivas fazem parte da cobrança da dívida que o bolsonarismo tem com a corporação médica. Esta corporação foi parceira de primeira hora nas manifestações golpistas de 2013-16, que culminaram com a queda de Dilma e a prisão de Lula, e posteriormente na eleição de Bolsonaro. Aqui mesmo no sul o sindicato médico já se apressou em mandar uma nota e um vídeo parabenizando o governo Bolsonaro pela proibição. Nenhuma surpresa.

Nada disso deveria nos espantar: a corporação médica mostra seu caráter reacionário de forma explícita desde o surgimento de canais na internet como Dignidade Médica, que disseminam todo o racismo, classismo, preconceitos de cor, raça e orientação sexual há muitos anos. Antes das redes sociais este fenômeno ficava restrito às salas acarpetadas de cafezinho dos hospitais. Agora… os monstros estão todos à solta.

Cabe a nós, ativistas da humanização, mostrar que o combate à violência obstétrica não é obra de “hippies”, “radicais comunistas” ou outras promotoras de “balburdia”, mas de um coletivo de pensadores e ativistas que se debruçam há muitos anos sobre o tema da violência de gênero no Brasil e no mundo. É digno de nota que inclusive elementos progressistas da própria corporação médica reconhecem a justeza do termo – além de sua consagração pelo uso – e entendem a necessidade de fazer algo a respeito dentro da prática cotidiana da obstetrícia, num exercício saudável de autocrítica e visão de futuro..

É importante que os ativistas, que sempre foram a locomotiva a puxar os movimentos articulados pela dignidade no parto e contra a violência obstétrica, se posicionem de forma vigorosa e contundente contra este tipo de iniciativa, denunciando o atraso em conquistas históricas por uma maternidade digna e segura que tal manifestação oficial significa.

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Trauma de parto

-Ah, você é obstetra? Tive dois partos. O primeiro foi normal mas sofri demais e no segundo já marquei uma cesariana para não passar de novo por tudo aquilo. Resolvi ligar as trompas quando fiz a cesárea.

Quando eu pedia para me contar o que significava “tudo aquilo” que sofreu para parir vemos que a dor das contrações era apenas uma parcela minoritária do que descreviam como o sofrimento que atravessaram para dar a luz. Mesmo reconhecendo que uma sociedade hedonista não entende mais a dor – física ou psíquica – como aceitável, eu ainda me espanto com o fato de que as descrições dos “horrores” apontam para um modelo “misógino” de atenção, centrado na eficiência médica de resolver o “problema do tumor fetal abdominal” dentro de um tempo adequado para não atrapalhar a vida do médico e o funcionamento do centro obstétrico.

-Então, doutor, deixa eu lhe contar como foi…

“E aí fiquei sozinha com minhas dores, e não deixaram meu marido entrar que homem desmaia e teriam que costurar a cabeça dele se caísse no chão e a luz era forte e não havia chuveiro, a sala estava gelada e me mandaram para outra sala e entrou um grupo de jovens e o professor explicou minha situação para os alunos e não para mim, e eles fizeram exames, um após o outro, e saiu sangue e eu me apavorei e foi a moça da limpeza que me tranquilizou e chamei o médico e ele não veio e eu gritei e aí disseram para eu calar a boca que isso assustava as mulheres e disseram que na hora de fazer não foi assim que voltaria no próximo ano e não podia andar porque estava no soro e pedi para tirarem e disseram que era preciso e pedi a presença do médico e de novo ele não veio pois estava atendendo e levantei sozinha para ir no banheiro e fui xingada pela enfermeira e senti vontade de evacuar e não deixaram e fizeram um outro exame e começaram a gritar e correr e me colocaram na maca e fui para uma sala muito clara com uma mesa de parto no meio e diziam de novo para não fazer força que o médico não estava pronto mas eu não podia controlar e um médico apareceu e perguntou meu nome mas estava de máscaras e luvas e não vi quem era e me deitaram mas eu queria levantar e amarraram minhas pernas e passaram um líquido gelado na minha vagina e depois senti uma fincada e uma ardência forte e de novo eu gritei para ser novamente criticada pela enfermeira e ela pulou na minha barriga e fiquei sem respirar e eu estava tremendo de nervosa e suava mesmo na sala gelada e o médico gritava que o bebê estava preso que se eu não o ajudasse o bebê não ia sobreviver e de novo veio aqueles pensamentos de morte e pensei em nossa senhora com o menino Jesus e lembrei da minha mãe que é nervosa e a enfermeira subiu de novo com o cotovelo na minha barriga e eu senti o médico cortando minha vagina graças a Deus não senti muita dor – devia ser o pique – e senti o sangue escorrer pelas coxas e a cabeça do meu filho fazia um volume na vagina mas eu não tinha as forças e eu chorava e pedia ajuda a Deus e o tempo não passava e ele estava preso e a enfermeira passou um pano na minha testa e eu só gemia e daí veio a força e eles gritaram todos e contaram até 10 e força comprida não-para-não-para e segura o ar e disseram que eu estava fazendo a força errada e empurraram minha cabeça e o queixo tocou o peito e os olhos se fecharam e parei de respirar por horas e eu fiz aquela força mais forte, mais forte.

Ficou tudo escuro e o silêncio foi quebrado por um choro fino que foi diminuindo até desaparecer como se tivesse se afastado por uns 100 metros e a enfermeira disse tudo bem e o médico reclamou de alguma coisa que não entendi e outra enfermeira viu minha pressão e o médico falou do Botafogo e a enfermeira ao meu lado deu uma gargalhada ao ver que a injeção que aplicou no meu soro havia atravessado a borracha e molhado o lençol.

Quando perguntei do meu bebê me disseram já vem e na verdade não veio e eu conheci meu filho uma hora depois mas pensei que foi melhor que o meu marido que só viu muito tempo depois ainda acho que eles foram muito bons comigo e pediram um lanche e depois me deram uma coberta porque a sala estava gelada e deram banho no meu filho e tiraram aquelas sujeirinhas, vérnix que fala?”

E aí, depois de 20, 30 ou 40 anos ela volta a chorar e lembra que o momento mais lindo de sua feminilidade foi cercado de violências e humilhações.

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