Arquivo da tag: Monteiro Lobato

É possível mudar?

Eu não levo muita fé na pretensa mudança da essência profunda do sujeito. Estas são características basilares e formativas que não podem ser mudadas pelo simples confronto com a realidade. Acho difícil – quiçá impossível – as pessoas mudarem os princípios e o caráter; elas mudam tão somente os detalhes da forma, o embrulho que envolve sua estrutura de afetos. O caráter reacionário de Vargas Llhosa estará presente em sua obra, mas ele não precisa aparecer de forma explícita e sim camuflado, como os preconceitos de tanta gente que conhecemos. O racismo de Monteiro Lobato aparece em sua obra, apesar de ser um racismo diferente daquele que vemos hoje, há que contextualizar. Mas estava lá, desde sempre.

As vezes, na juventude, podemos deixar o brilho de algumas ideias mascararem nossa índole, mas na maturidade elas voltam. Reinaldo Azevedo foi trostskista na juventude, e muito reacionário que conheço costuma dizer “até já votei no PT” querendo nos fazer crer que “a maturidade os fez mudar”. Reinaldo nunca foi de esquerda e o voto no Lula de alguns conhecidos meus – se realmente ocorreu – foi por outras razões, e não por uma adesão ao ideário da esquerda.Essas experiências da juventude foram apenas arroubos para produzir outros efeitos até inconscientes (tipo contrariar um pai conservador ou impressionar uma garota de esquerda) mas jamais uma escolha definitiva e plenamente consciente. Confio mais na estabilidade dos valores do sujeito, algo que se forma do nascimento até o fim dos primeiros mil dias.

Deixo aqui uma pergunta: alguém acredita que o Lobão algum dia foi genuinamente de esquerda (para além das aparências e do discurso), maturou sua compreensão da realidade e hoje é esse reacionário icônico? Pois, pela minha tese, a fase “esquerdista” do Lobão era apenas um sintoma, uma forma de dar conta de elementos inconscientes que circunstancialmente o atormentavam.

Isso me lembra uma velha piada.

Um sujeito entra numa mecânica e pergunta ao sujeito deitado de costas embaixo de um fusca.

– O senhor tem leite?

O mecânico olha pro sujeito e diz secamente: “Sr, isso aqui é uma oficina. Vá incomodar outro!!!”

Ele dá de ombros e sai da oficina. Anda alguns metros e para na frente de uma borracharia. Chama o borracheiro e repete a pergunta:

– Por favor, o senhor tem leite?

O borracheiro olha o sujeito de cima a baixo e responde ainda confuso, de forma ríspida: “Isso aqui é uma borracharia. Temos pneus e câmaras. Só isso. Caia fora”.

O nosso herói segue seu caminho mais adiante até parar em uma loja de brinquedos. Abre a porta e faz mais uma vez a pergunta que resume sua busca:

– Por favor, a senhora por acaso teria leite?

A velha senhora, atendente da loja, educadamente explica que na loja não se vende leite e que ali só havia brinquedos, caso desejasse comprar algum ela teria prazer em lhe mostrar.

O senhor então dá de ombros, não diz uma palavra e sai da loja. Anda alguns metros e senta-se no meio fio da calçada. Coloca a mão no bolso do casaco e tira uma pequena garrafa de cachaça. Olha para o céu, suspira e exclama:

– Deus é testemunha do quanto eu tentei.

Para muitos de nós estas são buscas falsas. É o caso do cara que desiste da analise porque o analista é separado, ou chegou atrasado, ou não sorriu da sua piada. Na verdade, a confrontação com sua alienação era o real motivo da desistência. Somos pródigos em dar desculpas e produzir autoenganos, para satisfazer um superego cobrador.

Lobão bem que se esforçou para ser de esquerda, mas diante da primeira dificuldade da práxis política ele voltou para onde sempre esteve mais confortável.”

Deixe um comentário

Arquivado em Política

Gênesis

É evidente que aqui não há nenhuma novidade: a novela da Record que fala do Gênesis da Bíblia recebeu críticas por ser “machista”. Mas eu pergunto: é sério que alguém acha possível que uma novela sobre o surgimento da humanidade num livro patriarcal e machista como a Bíblia poderia ser diferente? Acham mesmo que haveria como fazer uma versão “inclusiva”, “neutra” ou “feminista” da criação do mundo como narrada nos textos do velho testamento?

E se fizessem, não seria uma monstruosidade ainda maior???

Vamos ser justos; não se pode cobrar da Bíblia que suas metáforas não refletem os valores do mundo de hoje. O que se pode fazer a respeito de uma obra que celebra a visão do nascimento da humanidade sob a ótica do patriarcado nascente é não assistir – como eu faço – mas é absurdo pedir que um monumento ao patriarcado seja transformado no seu oposto, perdendo totalmente sua essência.

Em uma crítica que apareceu nas redes sociais um articulista usa o argumento do “anacronismo” das visões machistas da novela, mas para mim o faz de forma totalmente equivocada. Diz ele: “É simplesmente inaceitável que, em pleno 2021, com mulheres em postos de comando em todo o planeta, uma obra de grande apelo popular insista nesse tipo de mensagem”.

Pois eu afirmo que NÃO HÁ como mudar as histórias e as alegorias da Bíblia sem acabar com ela. Existem versões humorísticas como o sensacional “A Vida de Brian”, do Monty Python, os os vários esquetes da “Porta dos Fundos” (ao meu ver também hilários), mas eles não se propõem a fazer uma novela sobre o Gênesis, a Vida de Cristo ou sobre os 10 Mandamentos, apenas paródias críticas sobre estas histórias – o que me parece sempre super válido.

Retalhar uma obra escrita há centenas ou milhares de anos é algo criminoso. Para mim é como fazer um filme sobre Moby Dick de Herman Mellville – mantendo todo o enredo e todos os personagens – mas mudar o final da nova versão fazendo o Capitão Ahab ficar amigo da baleia e não tentar matá-la, pressionado pelos ativistas da vida animal e até pela ameaça de boicote protagonizada pela PETA. Quem sabe até reescrever o “Sítio do Pica-Pau Amarelo” e transformar a tia Anastácia na proprietária do mesmo, para fugir do estigma de inferioridade social da população negra. Ou mesmo proibir obras controversas como Lolita pelo seu conteúdo sexual.

Não se pode fazer isso com obras artísticas; elas são representantes dos valores que circulavam pelo campo simbólico de sua época. Critiquem seus conteúdos, denunciem suas amarras aos preconceitos do tempo em que foram escritas, mas não as mutilem para servir aos propósitos de outros momentos e contextos.

A Bíblia é mesmo assim, e só o que se pode fazer é deixar claro que se trata de uma alegoria escrita há milhares de anos, cujas metáforas só podem ser lidas de forma simbólica, e que este livro carregava valores sociais bastante diversos daqueles que valorizamos agora.

Para ler o artigo referido, clique aqui.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Anacronismos

Não há dúvida que Monteiro Lobato era racista. Mais ainda, era um eugenista, um entusiasta da KKK e um racista ATIVISTA, mais do que apenas um sujeito com preconceito racial. Foi membro da sociedade paulista de eugenia e divulgador dessas ideias, as quais – no início do século XX – tinham uma aura cientificista.

Todavia, esta não é a mais importante abordagem. O que me parece urgente debater em tempos de “cancelamentos” a respeito da “questão Monteiro Lobato” é o quanto é possível “separar autor de obra” e se é adequado que sejam feitos julgamentos sobre figuras da literatura fora do devido contexto histórico. Ou seja, separar a obra das questões subjetivas de quem a escreveu e não sucumbir ao anacronismo – o julgamento de um sujeito apartado de seu tempo.

Nem é necessário ir muito longe. Na minha própria experiência pessoal existem claras lembranças de uma época em que tais ideias não recebiam da cultura o adequado contraditório. Ao longo de toda a infância eram comuns as piadas racistas, as quais eram contadas impunemente para qualquer um – inclusive por mim – pois eram tratadas na cultura como “brincadeira”, “chiste”, “jocosidade”, etc. Não há dúvida, entretanto, do seu conteúdo racista e segregacionista quando expostas às luzes do século XXI. Usava-se da piada para encobrir um conteúdo separatista, um apartheid informal e subliminar, essencial e estrutural, que se expressava em uma forma extremamente potente de coesão cultural: o humor.

O mesmo ocorria com as piadas homofóbicas. Na minha época um dos humoristas mais celebrados era o “Costinha”, um dos artistas mais engraçados do seu tempo. Entre suas piadas, 90% eram sobre gays, “bichinhas”, como ele dizia, homossexuais com atitudes afetadas. Hoje em dia suas piadas seriam um escândalo, mas apenas 40 anos nos separam do seu auge como piadista. Julgar Costinha – e não suas piadas – seria um anacronismo, assim como julgar Monteiro Lobato sem levar em conta o entorno cultural em que estava envolvido.

Outro aspecto é pensar sobre Monteiro Lobato e esquecer a vida pessoal – e até a obra – de tantos outros escritores. Devemos, por exemplo, esquecer a obra de Heidegger ou Celine por suas vinculações com o nazismo? Seria justo apagar a música de Michael Jackson pelas acusações que recebeu – em vida e depois dela – de abusos sexuais contra menores? É adequado esquecer o racismo explícito de Humberto de Campos e Fernando Pessoa (sim!!!) ou devemos sorver suas obras e descontar os erros de seu tempo?

E a defesa da pedofilia de Simone Beauvoir? Deveríamos relevar estas manchas em sua biografia e continuar aprendendo com seus textos precursores do moderno feminismo? Ou devemos também apagar todos os seus escritos?

E o que fazer com os feitos de médicos brasileiros como Miguel Couto, Roquette Pinto (médico e pai da radiodifusão no Brasil), Renato Ferraz Kehl e tantos outros que participaram da Sociedade Paulista de Eugenia? E quanto a literatura infantojuvenil? Vamos “cancelar” Lewis Carroll pelas acusações de pedofilia que foram feitas contra ele? Deveriam as crianças todas do mundo ser privadas das aventuras de “Alice no país das Maravilhas” pela suspeita de uma falha ética do seu autor? Pior ainda: devemos destruir a obra de Woody Allen, falsamente acusado de abuso sexual, apenas para agradar a “patrulha”? E o que fazer com a pedofilia de Charles Chaplin?

Se um antropólogo achasse, mas areias da Galileia, um manuscrito essênio que revelasse uma mancha moral gritante de Jesus, seria justo acabar com o cristianismo em nome da purificação necessária para limpar esta mácula?

Há um adágio antigo que nos diz: “As virtudes são dos homens, as falhas são do seu tempo”. Eu li toda a obra de Monteiro Lobato na entrada da adolescência e não percebi nenhum racismo explícito nela. Não que não houvesse; ela estava evidente na topografia dos personagens, mas este racismo sutil ainda era invisível nos anos 70. Somente agora podemos percebê-lo para julgar sob esta nova perspectiva.

O mesmo digo dos outros autores. Não há mal algum em apontar a pedofilia, o nazismo e o racismo nos autores. Também é justo mostrar estes erros nas obras que escreveram, mas é fundamentar não se deixar levar pelo anacronismo, julgando um sujeito fora do seu tempo e da cultura que o envolvia.

Monteiro Lobato e muitos outros devem ser mantido nas escolas exatamente para que se possa debater com os alunos sobre os valores de meados do século XX. Apagar a história, mesmo em nome de valores nobres, empobrece a cultura.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Racismo em Lobato

Não há dúvida alguma que Monteiro Lobato era racista. Se fosse questionado talvez batesse no peito e confirmasse com veemência. A única questão é situar seu racismo no tempo e no espaço. Naquela época o racismo era “científico” e atendia pelo nome de “Eugenismo”, que pretendia uma depuração da raça através do seu embranquecimento, até porque a raça negra era vista como inferior, menos apta, estúpida e adequada apenas ao trabalho braçal. Monteiro Lobato era entusiasta dessas ideias e ajudou a difundi-las.

Faz parte do progresso das ideias pousar o olhar sobre estas figuras históricas e mostrar suas falhas. O racismo de Monteiro Lobato, mas também de Fernando Pessoa, precisa ser exposto para que seja possível soterrar as ideologias supremacistas. A importância de ambos para a literatura vai continuar, mas não é justo manter este aspecto de seu trabalho e de suas vidas desconhecido, sem sofrer o julgamento da história.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Iconoclastia

images-17

Se é necessário jogar os velhos ídolos ao fogo na árdua tarefa de nós libertar de seu jugo sufocante, também creio ser fundamental fazê-lo de forma criteriosa.

Ainda considero válida a tese de que “as virtudes são do homem, os vícios de sua época”. Não há como criticar um personagem sem a necessária contextualização do sujeito no tempo e no espaço. Se não há “sujeito sem cultura, e cultura sem sujeito” então tudo o que somos surge dessa interação entre nossa subjetividade e o conjunto de valores que nos rodeiam no oceano de significantes e significados onde estamos submersos.

Por outro lado, o entendimento de figuras icônicas como sujeitos falíveis e limitados nos ajuda a humanizá-los. Tal tarefa é fundamental para que, assim identificados, possamos seguir seus ensinamentos com mais precisão. Enquanto forem divindades serão inatingíveis; ao nosso lado, passíveis de falhas e erros humanos, serão parceiros de travessia.

Entretanto, se posso perdoar a falta de amabilidade de Marx com seus filhos e seu caso extra conjugal, assim como as diatribes dos astros da TV ou do futebol, o mesmo não posso dizer de literatos cujas palavras escritas ferem preceitos básicos da civilidade e da dignidade humana. Por mais que sua genialidade transpareça e seja exaltada, e mesmo que as épocas sejam outras, a misoginia e o racismo de Fernando Pessoa ou Humberto de Campos são inaceitáveis e colocam a profundidade e dimensão de sua obra em questão. Se a imagem que fazem de negros e mulheres era tão diminutiva e preconceituosa, que outras falhas de percepção podem ser piores?

Perder um ídolo é como arrancar uma parte de si mesmo; felizmente uma porção de nós que ainda nos prendia às fantasias e idealizações mais infantis.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos