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Serjão dos Foguetes

Sabe qual o drama do Serjão dos Foguetes? O mesmo de quase todos os “produtores de conteúdo” do YouTube: a tirania do papel em branco, o mais terrível dos opressores para quem está conectado ao mundo do entretenimento.

Vamos combinar que existe muito material para falar de astronomia e geofísica – esta última é a área na qual ele tem formação. Há como falar dos achados incríveis do James Webb, das descobertas de exoplanetas, da Lua, de Marte, da viagem interplanetária, de Vênus, do furacão de Júpiter, da vida fora da Terra, de visitantes alienígenas, das teorias sobre o Oumuamua, etc., mas a gente sabe que existem tormentos para quem quer continuar a falar indefinidamente. O primeiro é que, apesar de vasto, estes temas não são infinitos; não há como repetir 4 ou 5 vezes um programa sobre a Lua ou sobre os satélites de Saturno. Desta forma, uma solução encontrada é sucumbir à “síndrome de Caetano”, que é a tendência a dar opinião sobre coisas sobre as quais não tem muito conhecimento. Aqueles que se deixam contaminar por ela acabam falando demais por terem atingido um grau de notoriedade que faz com que jornalistas fiquem insistindo em obter sua opinião sobre temas aleatórios. Eu sei o quanto é difícil ser humilde nessas horas e dizer: “não tenho opinião formada sobre isso”, e ter a grandeza de uma Glória Pires na premiação do Oscar. A maioria sucumbe a ideia ilusória de que sua opinião é indispensável.

Serjão era quase uma unanimidade entre aqueles que gostam de ciência popular. Com seu jeito de nerd, gordão, sorridente, brincalhão, e muito comunicativo, ele explica a astrofísica como se fosse um professor bonachão das séries iniciais de um colégio público. Não se furtava a brincar com o “mundial inexistente do Palmeiras”, com as teses amalucadas dos terraplanistas e com as descrições de visitantes extraterrestres a visitar nosso planetinha. Tudo ia muito bem, e seu canal já havia passado alguns muitos milhares de inscritos e, direi eu, de forma merecida, até porque sou um dos fãs dos seus programas.

O problema começou a ocorrer quando Sérgio Sacani – seu verdadeiro nome – começou a dar mostras de que, além de ser um excelente comunicador e divulgador científico, estava alinhado com as correntes mais conservadoras do pensamento político contemporâneo, flertando com a extrema direita e o bolsonarismo. Quando sua biografia foi exposta surgiram manifestações no mínimo comprometedoras, em especial quando sugeriu a morte do presidente Lula, mesmo que em forma de brincadeira. A partir daí, ficou claro que sua posição no espectro político estava situada muito mais à direita do que gostaríamos, em especial por ele ser um propagador do conhecimento científico. Serjão apoia a ciência ao mesmo tempo em que se aproxima dos grupos que mais a atacam. Também é notória a sua vinculação com figuras icônicas da extrema direita mundial, em especial Elon Musk. Sua defesa se baseava em uma Fake News: um fantasioso diálogo entre o herói bilionário e a “ONU” a respeito de uma doação de 6 bilhões de dólares para acabar com a fome, para a qual ele exigia a “nota” dos gastos para, só então, investir nessa iniciativa. Tudo indica que o diálogo e as exigências do dono da Tesla eram apenas uma forma de propaganda.

A privatização da Petrobrás, que ele defende, é uma das suas opiniões mais controversas. Para ele, “a Petrobrás está cheia de pessoas que não fazem nada, está inchada“. Assim, uma empresa nas mãos de investidores, entregue pelo governo à iniciativa privada, seria uma forma de deixar a empresa mais saudável, usando o velho argumento de que as empresas privadas são mais “honestas” e mais “enxutas”. Para ele, a importância estratégica de ter o petróleo sob o controle do governo é menos importante do que se livrar de funcionários que, segundo ele, pouco ou nada produzem. Também é pródigo em atacar a China, tratando sua ciência como se fosse inferior à americana, o padrão de excelência.

Assim, o que vemos com Sérgio Sacani, longe de ser um desvio na curva, é um padrão no comportamento dos divulgadores de conhecimento nas redes sociais. Assim que ele começou a falar de assuntos como geopolítica, capitalismo, sociedade, privatizações, socialismo, China, Coreia Popular e o significado dos bilionários na sociedade capitalista ficou evidente sua verdadeira essência conservadora. A exaltação do bilionário Elon Musk, visto com ele como um “gênio” e mecenas da ciência, e a de Lula, visto como alguém que poderíamos eliminar, deixa muito clara sua perspectiva de mundo. Porém, não é certo culpá-lo por estas opiniões fora do seu métier; ele na verdade sucumbe à tentação irresistível de ficar tratando de assuntos que desconhece; na maioria das vezes “ouviu o galo cantar mas não sabe onde”. Muito do que ele fala de política, do PT, do Lula, de Elon Musk, da China, da Coreia Popular é suco de senso comum, um amontoado de informações sem fonte e sem qualquer comprovação científica. Essa adesão oportunista aos cânones científicos é o que existe de mais censurável; quando é para criticar os terraplanistas a vinculação à ciência é mandatória; afinal, como tratar destes assuntos e ao mesmo tempo desprezar toda a ciência que sustenta nossa visão do cosmos? Todavia, quando critica os “vagabundos da Petrobrás” não é necessário mostrar nenhuma comprovação de que os funcionários da nossa maior estatal são relapsos – sua percepção pessoal e isolada é suficiente. Ou seja: ciência para quem precisa de ciência; senso comum quando interessa.

Entretanto, eu ainda prefiro esquecer as mancadas do Serjão dos Foguetes e escutar apenas as coisas interessantes que ele apresenta. Acho que é razoável e justo distanciar o autor da obra, o divulgador científico da sua posição política. Por outro lado, que isso fique como ensinamento: o fato de um sujeito ter uma vida acadêmica abundante, rica e ter acumulado conhecimento sobre um tema específico, não garante que tenha informações suficientes para tratar com profundidade outros temas. A compartimentalização do conhecimento nos permite que sejamos doutos em determinada especialidade e totalmente ignorantes em muitas outras. Nosso erro é valorizar as opiniões dessas pessoas fora dos seus domínios, onde eles possuem a mesma profundidade de saber do que qualquer um de nós.

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O Tempo e as mudanças

Raros são os grandes pensadores agraciados com a reverência e o respeito durante o transcorrer de suas curtas vidas. Entre eles meu pai sempre citava François Marie Arouet – Voltaire, que viveu em uma época turbulenta, no final do século XVIII, quando o nascimento da idade contemporânea estava prestes a ocorrer, e os estertores da idade moderna foram, por certo, precipitados por sua obra. Voltaire acreditava no valor superior da liberdade, única estrutura social que capacitaria o ser humano a expressar plenamente sua criatividade, sem sofrer interferências de caráter religioso ou moral. Voltaire muito escreveu contra o absolutismo e a favor da separação entre Igreja e Estado, ou seja, muito antes que essa ideia fosse disseminada ele pregava o Estado Laico. Acredito que essa ideia partiu da paixão que teve na Holanda por uma moça protestante, e o posterior ataque que sofreu por parte da Igreja, apenas por seu desejo de casar-se com ela. Desde então teve uma escrita muito dura com os poderes da Igreja pois, para ele, calar a expressão do contraditório seria um crime contra a livre expressão do pensamento, e um atraso para o progresso humano. Por isso merece nossa total reverência.

Todavia, ele era um galanteador incorrigível e alguém que teve uma vida cheia de fatos questionáveis, como sua relação com o comércio de escravos, jogos de azar e calúnias contra adversários, fatos que o levaram à prisão três vezes e o obrigaram ao desterro outras duas. Segundo Marilena Chauí os professores em sua época o classificavam como “Um rapaz de talento mas um patife notável”. Aliás, entre os vícios de Voltaire estava o consumo de café. Tomava 20 copos por dia, e chegou a beber 40 copos em uma ocasião.

Tivesse nascido hoje seria odiado pelo que é, e adorado pelo que escreveu. Estaríamos debatendo autor e obra, e muitos torceriam contra Voltaire pelo que ele foi, mesmo às custas de desprezar suas ideias sobre o valor primordial da liberdade. Qual seria hoje a opinião de Voltaire sobre a censura às redes sociais? Que diria ele sobre “discurso de ódio”, ou “liberdade plena de expressão”? Qual seria a recepção que teria do público? Seria “cancelado”? Creio que sim…

Apesar de ter um comportamento muitas vezes reprovável, Voltaire conseguiu ser admirado e desfrutou de sucesso pessoal ainda em vida. Todavia, esta é uma marcada exceção não apenas em sua época, mas na própria história da humanidade. A genialidade quase nunca oferece a notoriedade como prêmio. Os verdadeiros gênios precisam entender que os louros de sua obra serão inexoravelmente colocados sobre as lápides onde repousam para a eternidade. A glória de sua obra, via de regra, não é algo que conseguem usufruir.

Sigmund Freud teve muito pouco tempo de reconhecimento em vida, algo incomparável com o nível de rejeição e desprezo que sofreu das forças conservadoras da sociedade, em especial a corporação médica. Charles Darwin morreu solitário, tendo passado duas décadas trancado em sua casa, sem contato com o exterior, remoendo-se de tristeza pelos ataques que sofreu da Igreja. Galileu Galilei foi julgado, condenado à morte e, depois de sua famosa reconsideração, foi condenado à prisão domiciliar por heresia, onde morreu solitário e isolado. Apenas 360 anos após sua condenação, em 1992, as ideias do pensador italiano foram admitidas formalmente pelo Papa João Paulo II.

Nikola Tesla muito pouco auferiu de reconhecimento durante a sua vida; morreu pobre e pouco conhecido. Friedrich Nietzsche faleceu pobre, doente e ressentido. Sofrendo de transtornos mentais derivados, provavelmente, de sífilis terciária não tratada, ele morreu solitário aos 56 anos de idade, depois de quase uma década de vida vegetativa. Mas o próprio Nietzsche dizia que o verdadeiro gênio só tem sua obra reconhecida um século após sua morte. Em verdade, foi exatamente isso que aconteceu a ele. A verdadeira genialidade, aquela revolucionária e capaz de fazer transformações paradigmáticas na cultura, é irreconhecível aos olhos desarmados na época em que surge. Nos parece bizarra, estranha, ofensiva e, portanto, inaceitável. Somente após a lenta sedimentação dos seus valores e a incorporação das suas ideias mestras pela cultura é que o brilho escondido dos gênios pode se expandir.

Exigir a compreensão imediata de ideias que ofendem os paradigmas vigentes é uma aptidão para muito poucos. A maioria de nós prefere refugiar-se no conhecido, no certo, no comprovado e no seguro, ao invés de aventurar-se no novo, no desafiador e nas alternativas que nos fazem correr o risco inexorável que acompanha as verdadeiras novidades. As grandes mentes da humanidade sofrem da compulsão por romper estas barreiras, e bem o sabem o quanto destas ações serão incompreendidas e atacadas. Entretanto, fazem, e erram, e repetem, e continuam até que possam encontrar – mesmo que temporariamente – uma resposta que poderá – também por algum tempo – acalmar sua angústia.

As mudanças não ocorrem, são paridas lentamente através das contrações espasmódicas do pensamento humano. Para aceitá-las é necessário que exista um fator essencial: o tempo, que poderá digerir o conhecimento novo para que possa ser metabolizado com segurança por todos nós.

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