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Super humanas

Quando vejo estas ideias de “medidor de dores” em sempre lembro que a dor não é um processo objetivo como a taxa de glicose no sangue ou a graduação de um hormônio circulante. Dores são percepções e elas são inexoravelmente subjetivas. A sensação de dor vai variar enormemente entre os sujeitos na dependência de inúmeros fatores. Por que, então, ainda insistem nessas “unidades de dor”? Qualquer pessoa percebe que isso é ridículo. “O ser humano só aguenta 45 unidades de dor mas as mulheres durante o parto aguentam 57 dessas unidades”. Isso significa exatamente o quê? Que as mulheres não são humanas? Serão elas sobre-humanas? Isso tem um nome: “desumanização”. Ou seja: as mulheres não precisam ser tratadas ou consideradas como humanas pois são seres divinos – ou, quando assim interessar, diabólicas e bruxas; não fazem parte dessa espécie.

Lembro quando um político populista do meu estado resolveu, durante uma palestra no hospital de clínicas, chamar as enfermeiras de “anjos de branco”. Nem terminou de falar e tomou uma vaia sonora do público, majoritariamente constituído por… enfermeiras. A razão dessa discordância é que chamar enfermeiras de “anjos” sempre cumpriu a função de desprofissionalizar, tratá-las como “religiosas”, espíritos impolutos que cuidam dos enfermos. Pois o que as enfermeiras mais desejavam era perder essa aura de abnegação e serem valorizadas em suas profissões, fugindo do estigma de “seres superiores” ou “luzes a iluminar as trevas da doença”. Não é adequado ou justo desumanizar as enfermeiras quando elas têm necessidades tão humanas quanto reconhecimento, respeito, atenção valorização e pagamento justo. No lugar dessa exaltação, paguem um bom salário, ora…

Com as gestantes o mesmo. Insistem na balela de que as dores do parto são horríveis mas as mulheres, por serem “seres superiores”, são capazes de suportá-las acima dos limites humanos. Pura bobagem!! O parto é tão mais doloroso quanto mais ignorados são seus princípios básicos de segurança, privacidade e intimidade. Todavia, a dor inerente ao processo é suportável por pessoas comuns, por mulheres absolutamente humanas. A ideia de tratar as mulheres de forma diferente não as ajuda e sacraliza a ideia de excepcionalidade.

Lembro da história que um professor de psicanálise me contou durante uma viagem entre Blumenau e Florianópolis que fizemos de carro. Dizia ele da história de uma mãe com problemas para alimentar seu filho com síndrome de Down – o mais novo de 4 filhos e o único com este diagnóstico. Ele costumava brincar com a comida, esmagar com as mãos e jogar longe, o que a irritava profundamente. Logo ao escutar o relato meu amigo já estava se apressando a dizer o quanto é natural esta conduta lúdica com o alimento entre as crianças pequenas quando decidiu perguntar: “Mas me conte, como você agiu com os outros filhos?”, ao que ela respondeu “Ah, com todos eles eu ralhava!!”. Ao escutar essa resposta ele disse: “Pois com este menino faça o mesmo!!”

Diante da minha surpresa, ele respondeu: “Muito pior do que não entender a questão das brincadeiras com a comida é iniciar desde cedo um tratamento diferenciado, excluindo o menor do tratamento que sempre foi dado aos outros irmãos, apenas porque ele é “especial”. Isso reforçaria nele a ideia de que não pertence àquele grupo, que não é tão humano quanto seus irmãos e só por isso não é tratado da mesma forma”.

Com as mulheres penso da mesma forma. Trate-as sempre com a mesma humanidade com que trata os homens, nem mais nem menos. Criar a ideia de que elas suportam mais as dores é tão discriminatório quanto achar que não podem exercer as mesmas funções dos homens. Lembrem apenas que muito do que se sabe sobre o assoalho pélvico feminino foi descoberto por um ginecologista americano chamado James Marion Simms abusando dessa perspectiva. No seculo XIX ele realizou pesquisas com cirurgias para fístulas urinárias sem anestesia e usava mulheres negras em seus experimentos dizendo serem elas “muito fortes para a dor”, portanto capazes de aguentar as dores dos procedimentos cirúrgicos criados por ele.

Ou seja: desumanização, mesmo quando o desejo é exaltar, nunca é algo justo e bom. Trate as mulheres, inclusive e principalmente durante o parto, como gostaria que todo ser humano fosse tratado. Nada mais, nada menos.

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Dor do Parto

Analise a mensagem no cartaz ao lado e pense em seus significados. Sempre carreguei comigo esta curiosidade: alguém poderia explicar para mim o que exatamente é uma “unidade de dor”. Que aparelho mede isso? Gente, essas medidas são fantasias, uma tentativa ingênua de transformar dados subjetivos em unidades mensuráveis. Medir uma “unidade de dor” é quase tão ingênuo quanto avaliar “unidades de paixão”, “unidades de raiva” ou “nível de te(n)são”. Estas variáveis poderiam no máximo ser avaliadas em um mesmo indivíduo (e ainda assim seriam afetadas pelas emoções, contextos, circunstâncias, etc.), porém jamais entre duas pessoas diferentes em sua história e estrutura psíquica.

Essas medidas são pura imaginação descontrolada. Não deveríamos disseminar esse tipo de informação distorcida. Dor é um valor subjetivo, pessoal, único e não mensurável. Não há como comparar a dor de alguém com a dor de outro indivíduo, ou um tipo específico de dor com outra dor. As dores são sentimentos, envolvidos com fatores emocionais, e não apenas sensações químicas e neurais. Não existem dores puras em corpos simbólicos e erotizados.

Além disso, o parto pode ser um evento absolutamente INDOLOR para algumas mulheres. Em populações originárias o que chamamos de “dor de parto” sequer leva esse nome. E digo mais: as mulheres tem valor por serem humanas, dignas e respeitáveis tanto quanto os homens o são. Comparar dor de parto – algo tão subjetivo quanto gostos e preferências pessoais – não ajuda as mulheres e apenas sacraliza preconceitos e mitos.

E não garante nem biscoitos…

Este tipo de ideia, na cabeça de uma menina, pode produzir a imagem de que o parto só ocorre através de dores insuportáveis, dilacerantes e desumanas, deixando claro que apenas masoquistas e heroínas deveriam se submeter a elas. Será que é essa a ideia que desejamos transmitir às garotas sobre os desafios do parto?

A comparação da dor do parto com ossos quebrados e a mensuração da dor por “unidades de dor” é puro delírio e prejudica a compreensão que temos do parto e as leis que o regulam.

Fundamentalismo, em verdade, é acreditar no “mito da dor sobre-humana”, do “sacrifício”, da fantasia do “sofrimento insuportável para dar a vida aos seus filhos”. Isso sim é um fundamentalismo cultural baseado no “mito do amor maternal”, e está baseado num essencialismo que deve ser evitado e combatido. Uma mulher que não teve filhos – por escolha ou contingências – ao ler esse texto pode se achar menos digna, porque nunca passou pelo teste de coragem e de sacrifício das outras. Isso é cruel e injusto.

Não é correto acreditar que o questionamento e a visão crítica de mitos e ideias errôneas significa ser extremista. Não… Eu sou RADICAL, palavra derivada de “raiz”, na medida em que questiono os fundamentos, as raízes desses modelos patriarcais impostos às mulheres para garantir a elas posições estanques na sociedade, impedindo-as de questionar as outras inúmeras posturas e lugares que podem ocupar.

Entendam… esse texto DEPÕE contra as mães. Falseia a realidade, cria pânico em meninas, produz confusão conceitual e deseduca quem quer se aproximar do tema do parto e do nascimento.

Não há desculpa para usar medidas falsas ou as fantasiosas “unidades de dor”. Não duvido que a intenção do texto seja valorizar as mulheres, mas tal escolha não é correta pois se assenta em dados absurdos que não valorizam as mulheres pelo que verdadeiramente são: seres completos, dignos e complexos, cujo valor não pode ser medido tão somente pelo suposto sacrifício de suportar dores acima dos limites humanos. Depois de trabalhar 40 anos com gestantes não é possível olhar para este tipo de informação e ficar impassível.

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