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Klek Shops

Os “Klek Shops” são símbolos da vida urbana da Bulgária. As “lojas de agachar” (klek shop) são um fenômeno interessante. Sua história começa com a mudança do sistema comunista para o capitalista em 1989, logo após a queda do muro e o desmanche do socialismo no leste europeu. Após esta mudança, o espaço para construção se tornou muito caro pela gentrificação do centro da cidade. Por esta razão, espaços mais baratos foram criados nos porões das casas, que foram convertidos em lojas de conveniência. A piada que as meninas de Sófia me contaram era que trabalhar nessas lojas era o emprego mais cobiçado pelos garotos da cidade, pois no verão a vista era a melhor possível.

Acho que não terei tempo de vida para voltar a essa cidade linda e cheirosa (Sófia é a “cidade das rosas”) que tem os táxis mais perfumados da Europa, um metrô limpo e amplo e mulheres lindas, donas de uma beleza estonteante, onde se pode ver a mistura dos olhos verdes com o cabelo loiro e os olhos puxados que herdaram do contato com o oriente.

Uma curiosidade: ainda muito jovem eu curtia uma imensa paixão pela música búlgara, desde que li uma crítica de Tárik de Souza na Veja sobre o lançamento de um CD chamado “Le Mystère de Voix Bulgares 3”, gravado pelo Coral da Rádio e TV estatal de Sófia. Quando comprei o CD, logo após seu lançamento em 1989, foi como se o céu caísse sobre a minha cabeça. O tipo de harmonia que elas produzem não é comum para os ouvidos ocidentais, com seus vibratos, meios-tons, sussurros, etc. Durante 20 anos essa paixão pela música folclórica da Bulgária foi só mais uma das minhas inúmeras esquisitices.

Quis o destino que eu fosse convidado a dar um curso sobre humanização do nascimento em Sófia, 23 anos depois do despertar desse amor – até então platônico. Fui recebido por duas queridonas: Liubomira, que na época era doula e agora parteira, e Olga, enfermeira obstetra. Logo após chegar confessei a elas o meu desejo de ver uma apresentação desse grupo de mulheres. Elas, com espanto, me disseram que haveria um show exatamente na noite da nossa chegada.

– Ok, levaremos vocês no teatro

Foi exatamente o que aconteceu. Mal descemos do avião e lá estava Olga para nos receber. Fomos ao hotel, deixamos as roupas e malas sobre a cama e rumamos céleres para um gigantesco teatro no centro de Sófia. Com Liubomira ao nosso lado, assistimos eu e Zeza à apresentação das mulheres de vozes misteriosas e belas. Não consegui parar de chorar durante toda a apresentação, o que é constrangedor e ridículo, mas honesto. Perguntei para Liubomira se é comum elas se apresentarem em Sófia, ao que ela me respondeu: “Pelo contrário. Faz uns 4 anos que não havia apresentações públicas. Foi muita sorte de vocês“.

Não foi sorte, foi um milagre. I love you, Bulgária.

Реликварий на живот, който си е заслужавал.

“Klek Shops” са символи на градския живот в България. „Скуот магазините“ (klek shop) са интересен феномен. Нейната история започва със смяната от комунистическа към капиталистическа система през 1989 г., малко след падането на стената и разрушаването на социализма в Източна Европа. След тази промяна строителното пространство стана много скъпо поради облагородяването на центъра на града. Поради тази причина бяха създадени по-евтини пространства в мазетата на къщите, които бяха превърнати в смесени магазини. Шегата, която ми разказаха момичетата от София беше, че работата в тези магазини е най-желаната работа сред момчетата в града, защото през лятото гледката е най-добрата възможна.

Не мисля, че ще имам време да се върна в този красив и ухаещ град (София е “градът на розите”), който има най-парфюмираните таксита в Европа, чисто и просторно метро и красиви жени, притежателки на зашеметяваща красота, където можете да видите смесицата от зелени очи с руса коса и наклонени очи, които са наследили от контакта с Изтока.

Интересен факт: Бях още много млад и изпитвах огромна страст към българската музика, откакто прочетох рецензия на Тарик де Соуза във Веха за издаването на компактдиск, наречен „Le Mystère de Voix Bulgares 3“, записан от Хора на Софийското държавно радио и телевизия. Когато си купих диска, малко след издаването му през 1989 г., сякаш небето се стовари на главата ми. Типът хармония, която произвеждат, не е обичаен за западните уши, с техните вибрато, полутонове, шепот и т.н. В продължение на 20 години тази страст към българската народна музика беше само една от безбройните ми странности.

По волята на съдбата бях поканен да водя курс по хуманизиране на раждането в София, 23 години след пробуждането на тази любов – дотогава платонична. Посрещнаха ме две сладури: Любомира, която тогава беше дула, а сега акушерка, и Олга, акушерска сестра. Скоро след като пристигнах, им признах желанието си да видя представление на тази група жени. Те с удивление ми казаха, че точно вечерта на пристигането ни ще има шоу.

– Добре, ще те заведем на театър

Точно това се случи. Едва слязохме от самолета и Олга беше там, за да ни посрещне. Отидохме в хотела, оставихме дрехите и куфарите на леглото и бързо се отправихме към един гигантски театър в центъра на София. С Любомира до нас със Зеза гледахме представянето на жени с мистериозни и красиви гласове. Не можех да спра да плача през цялото представление, което е неудобно и нелепо, но честно. Попитах Любомира обичайно ли е да играят в София, на което тя отговори: „Напротив. Минаха около 4 години, откакто нямаше публични изяви. Беше голям късмет за теб.“

Не беше късмет, беше чудо…

Обичам те, България.

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Memórias do Homem de Vidro – 14

A Irmandade do Sapato Furado

A linda loura aproximou-se lentamente de mim com aquele andar mágico, tipo flu­tuante, que faz a gente duvidar que seus pés estejam realmente tocando o solo. Ela me lembrava a bela Galadriel de Lothlorien, pelo sorriso enigmático e pelos cabelos louros a lhe cair nos ombros nus. Seu corpo estava coberto apenas com um fino véu alvo e transparente, e trazia brilhando no peito um camafeu dourado. Olhou fundo nos meus olhos e disparou:

— Você pode descobrir. Basta dizer a palavra mágica.

Palavra mágica? Que palavra mágica será essa?, pensei eu. E isso lá é hora de perguntar essas coisas? Shazam? Abracadabra? Hocus Pocus? Não… não direi nenhuma dessas. Muito óbvio. Talvez algo mais sutil.

Enquanto minha mente se torturava tentando entender a charada, escutei uma música que surgia de algum lugar distante. Assemelhava-se a uma melodia árabe. Tentei me fixar nessa sonoridade, enquanto a odalisca misteriosa me lançava mais um sorriso enigmático, cheio de perguntas. Enquanto eu pensava, ela aguar­dava sorridente pela palavra mágica, que “abriria todas as portas”. Mas que pala­vra seria? E que música era essa, que fica cada vez mais estridente? A linda loura se aproximou ainda mais, quase a ponto de me tocar, e começou a dançar ao som da música. Após alguns segundos, sua imagem foi se esvaecendo e ficando dis­tante. Apertei meus olhos insistentemente para fixar sua silhueta, mas pareceu não funcionar. Desisti e abri os olhos finalmente. Eles ficam paralisados em um ponto qualquer, perdidos no infinito cósmico (como me ensinara o astronauta Roger). Uma névoa encobriu minha visão, e a imagem da misteriosa mulher, de tão tênue, restou ape­nas na lembrança. Continuei a escutar a música das arábias, agora insuportavel­mente forte. A bruma aos poucos se dissipou e as imagens voltaram lentamente a se formar na retina. Não sem esforço consegui vislumbrar uma frágil luz verde pis­cando ao meu lado.

Era o meu celular.

Olhei em volta e tudo estava escuro. A dama de branco se foi, mas o som das arábias não cessava de tocar. Estendi meu braço para alcançar a luz piscante e vi minha mão ficar azul, mas talvez meus sentidos ainda estivessem entorpecidos pelo sono. Está muito, muito frio. Atendi o celular e, como por mágica, o som das mil e uma noites desapareceu. Vi no relógio, que dormia ao lado da cama, a hora do chamado: 5 da manhã. Era Cristina.

— Ric, estava dormindo?

Tive ganas de responder alguma coisa “engraçadinha”, mas apenas confirmei.

— Estou na casa da Márcia. Cheguei aqui às 3 horas, e agora as contrações dela estão muito fortes e frequentes. Acho que você e a Zeza podem vir.

Nossa equipe normalmente trabalha assim. Cristina é uma “batedora”. Chega na frente e começa a preparar a paciente com exercícios, cromoterapia e Yoga. Quando ela percebe que as contrações estão vigorosas, ela me chama. Olhei para o lado e Zeza já estava acordada.

— A dama de branco ligou. Disse que é para a gente ir para a casa da Márcia porque as contrações estão bem fortes e frequentes.

— “Dama de branco”? Quem é essa? Achei que a Cris tinha ligado.

Ooops. Confundi.

— Zeza, levante-se de uma vez — disse eu me livrando das cobertas. — Não me faça tantas perguntas de manhã porque meu cérebro ainda está tentando aque­cer. Acho que meus neurônios são muito lentos para dar o “arranque”.

Estava muito frio mesmo. Hoje foi o dia mais frio do ano, mas provavelmente o dia mais frio dos últimos anos. Parecia estar abaixo de zero. O material para o parto estava todo preparado na porta de casa, bastando colocar no carro. Tubo de oxi­gênio, seringas, ambu, laringoscópio, gazes, compressas, tesouras, soro fisioló­gico, inúmeras luvas descartáveis, tudo empacotado e pronto para usar. Porto Alegre não tem lugares muito distantes, como São Paulo ou mesmo o Rio de Janeiro. Minha paciente mora em um bairro que fica uns 15 minutos de carro da minha casa. Botei o nariz para fora de casa e confirmei: estava mesmo muito frio. Fomos recebidos pelo marido de Márcia, o Adriano. Ainda tenho tempo para uma gracinha:

— Tinha que ser no dia mais frio desse século?

Ele apenas sorriu e disse que a culpa não era dele. Entrando na casa, encontra­mos a mãe de Márcia, mãe de muitos filhos, quase todos nascidos em casa. Tem tranquilidade e sabedoria. Gostei de falar com ela, porque me transmitiu aquela ideia de parto como algo da mulher, em que não se justificam tantas intervenções. Subimos ao andar de cima e lá estavam Cristina, Márcia e uma dupla de gatos. Escutei as músicas tradicionais celtas que normalmente a Cris leva para os partos e senti o clima, o aroma e a aura que cercam um trabalho de parto. Estava tudo na penumbra, tudo muito silencioso. Ao meu lado, um aquecedor, que permitia que continuássemos vivos naquela gélida madrugada. O sol ainda nem aparecera, mas aos poucos os passarinhos começavam seu trabalho matinal.

— Parece que teremos trabalho por hoje, não é?

Marcinha me sorriu um sorriso de parturiente. Acho que foi Debra Pascali-Bonaro quem me falou do “labor smile”, que é o sorriso das mulheres em trabalho de parto; é um sorriso meio desligado, meio fora do lugar. Sei que ela quis ser simpá­tica. Esperei um pouco para fazer uma avaliação do colo. Queria que ela se acostu­masse à minha presença. Já é um choque a chegada de pessoas novas na casa, e ser examinada pode desencadear um estresse desnecessário e improdutivo. A parteira americana Ina May Gaskin, no seu livro Ina May’s Guide to Birth, relata a importância de respeitar a intimidade da paciente nesse momento tão sensível. Fala inclusive de trabalhos de parto avançados que foram descontinuados por dias, interrompidos pela chegada abrupta de um médico afoito. Essa entrada in­tempestiva de um profissional no cenário do nascimento pode ter efeitos tremen­damente nocivos para o resultado de todo o processo. Todo o respeito e o cuidado com a delicadeza do momento são fundamentais.

Por volta das sete horas da manhã, fiz o primeiro exame. Seis centímetros, colo fino, e a cabeça fetal muito, muito alta. Disse a todos que a dilatação estava boa, mas que ainda teríamos um grande trabalho pela frente ainda. Resolvi fazer um tour pela casa. Na prateleira de livros estava Parto Ativo, de Ja­nete Balaskas. Ao lado, uma série de livros espíritas que conheço desde pequeno da estante do meu pai. Chico Xavier, Emmanuel, André Luis, etc… Os gatos sor­rateira e manhosamente desfilavam na minha frente, disputando cadeiras e espa­ços na escada. Tomei cuidado para não atropelá-los enquanto caminhava de um lado para outro — vício incurável — tentando me aquecer agarrado a uma xícara de chá.

O tempo ia passando enquanto as meninas continuam seu trabalho com Márcia. Por volta das 10 horas da manhã, realizei outro exame. Procurei não demonstrar minha frustração, mas a dilatação pouco progrediu nesse período, e a cabeça continuava na mesma posição. Orientei as meninas a ajudar Márcia em um banho quente, para relaxar. Precisávamos ter paciência. O estômago constrangedoramente roncou, e percebi que o chá com bolachinhas foi a única coisa comemos desde a chegada. Já eram 13 horas e resolvi fazer mais um exame. Novamente tentei disfarçar a frustração. A dilatação aumentou muito pouco nas últimas horas, mas a posição do bebê estava inalterada. A dinâ­mica estava fraca: duas contrações em dez minutos. Fui obrigado a aceitar que este bebê está em OET.

Occípito Esquerda Transverso. O bebê estava com a cabeça atravessada na ba­cia. Ele ainda não conseguira fazer o giro para se adaptar ao estreito inferior da pelve. Parecia estar batendo nas espinhas isquiáticas e, por essa razão, não con­seguia descer na bacia, apesar de estar com sete centímetros de dilatação. Era hora de fazer alguma coisa. Sei que tranquilidade e relaxamento são essenci­ais, mas ponderei que uma ajuda mecânica também seria de auxílio. Marcinha estava muito bem. As contrações não eram dolorosas a ponto de fazer com que ela desanimasse. Ela se encontrava bem preparada psicologicamente. Adriano lhe ofereceu todo o apoio, sempre trazendo uma palavra de estímulo e conforto.

Pensei nas dicas que recebi de parteiras e doulas experientes e resolvi experi­mentar. Lembro de Penny Simkin, Jean Sutton e Debra Pascali-Bonaro e decidi utilizar uma técnica por elas preconizada para a liberação de espaço na ossatura pélvica. Solicitei que Zeza e Cristina realizassem a pressão pélvica na crista ilíaca, que consiste em colocar as mãos de cada lado da bacia da paciente e fazer força em direções opostas, tentando liberar um pouco mais de espaço entre as espi­nhas isquiáticas. O bebê se mantinha maravilhosamente bem, antes, durante e após cada contração, o que produzia sobre todos um efeito tranquilizante e moti­vador. Às três horas da tarde, realizei novo exame. Bebê alto, dilatação de oito centíme­tros. Que fazer? Olhei para Márcia com um sorriso amarelado e pensei que a mai­oria dos meus colegas obstetras já teria desistido. Márcia apenas sorriu. Adriano ao seu lado me olhava esperando alguma notícia.

— O bebê pouco se moveu, mas dilatou um pouquinho. Podemos continuar ten­tando. Como você está Márcia? Está bem?

Ela apenas me dirigiu um sorriso tímido. Sentia-se bem. Ainda mantinha o bom humor. Talvez a idade de Márcia, 35 anos, tenha sido uma vantagem. É o seu primeiro filho, mas ela exibe uma maturidade e uma segurança que talvez só a idade possa produzir. Continuamos a estimular os exercícios. Eu me distraio batendo fotos e lendo A Expropriação da Saúde, de Ivan Illich. Fico impressionado com o que ele escreve, e penso que a assistência à saúde está mesmo passando por uma crise sem pre­cedentes. Ivan consegue ser mais cáustico com o modelo tecnocrático contempo­râneo aplicado à medicina do que o próprio Maximilian. Sobre os perigos da tec­nologia aplicada ao parto, sem a criação concomitante de uma reflexão profunda sobre suas consequências, ele escreveu:

“O silêncio sobre a probabilidade do perigo no excessivo uso de medi­camentos na nossa sociedade, mantido pelas ‘oficinas de lanternagem humana’ (a medicina), é a nova manifestação pública da incapacidade da profissão médica de fazer uma profunda autocrítica, o que só pode trazer consequência sinistras para a sociedade”.

Acabamos pedindo uma pizza para almoçar, e ficamos todos admirados com o motoqueiro que a trouxe. Como andar de motocicleta com um frio desses? Às seis da tarde, as contrações continuavam firmes, assim como a têmpera de Márcia. Zeza a auxiliava durante as contrações, enquanto Cristina tirava uma so­neca. Decidi secretamente que esse toque das seis horas seria determinante. Ou este bebê baixava ou iríamos para o hospital. As contrações continuavam pouco inten­sas, apesar do gengibre e da canela. Meus dedos suavemente procuravam boas notícias, mas o que encontrei foram apenas velhas informações. O colo estava com oito centímetros de dilatação, o bebê só um pouco mais baixo, e a posição agora era OEA – Occípito Esquerda Anterior. Já não estava transverso, mas man­tinha-se alto. Ainda não havia transposto a linha imaginária que liga as espinhas isquiáticas. Precisava lhes dizer isso, apesar de não querer.

— Adriano e Márcia. Acho melhor irmos para o hospital. O bebê se moveu muito pouco. Continua alto. As contrações não estão efetivas. É provável que eu precise usar um pouco de soro para estimulá-las. O que vocês acham disso?

Márcia baixou o olhar. Sei que uma parte dos seus sonhos ficou frustrada. Tam­bém sei que ela sonhava com um parto na sua casa nova. Adriano olhou para a esposa, como a dizer: “A decisão é sua”. Ela concordou. Fizemos as malas com presteza e colocamos os equipamentos no carro. Mesmo tendo errado o caminho, chegamos ao hospital em menos de 15 minutos. Márcia teve poucas contrações no carro, o que fortalecia a minha ideia de que ela preci­sava de “motor”, força propulsiva. Chegando ao hospital, Márcia pediu que apenas instalassem o soro com ocitocina quando Adriano tivesse retornado da sua epopeia burocrática nosocomial. Estava tensa, contraída, e eu lhe esclareci que a viagem tinha esse efeito. Precisávamos agora nos adaptar ao novo ambiente, criar um vínculo de confiança com o lugar. Perder o medo e se entregar.

Pela primeira vez, vi Márcia contrariada. Sentia dor, desconforto. Percebi que o hospital estava agindo. Sua dor era a expressão do sofrimento frente à necessária readaptação ao meio ambiente. Márcia por momentos fraquejou. Seu rosto con­traído mostrava a tensão que o momento determinava. Está no Gênesis 13, versículo 32: “Sangrarás todos os meses e parirás com dor“. Este foi o preço que pagamos por termos desobedecido ao criador: Eva pecou por ter fugindo do paraíso da irracionalidade. Escapamos de um Éden perfeito, para o inferno de nossas inexatidões. A metáfora bíblica, no entanto, é maravilhosa. Para alcançar a fruta do conheci­mento, foi necessário erguer o tronco e ficar de pé, desafiando, assim, a onipotên­cia do Todo-Poderoso. Ao criarmos o “olho que a si mesmo enxerga”, arrogante­mente dissemos a Deus que queríamos caminhar (literalmente) com nossos pró­prios pés. A bipedalidade está na origem de nossa supremacia enquanto espécie, mas igualmente nos trouxe a dor de parir.

Os grandes macacos pongídeos não sofrem as dores de parto na mesma propor­ção com que as fêmeas da nossa espécie as sofrem, pois tem crânios fetais muito menores, relativamente à sua pelve. Entretanto, o parto é um desafio físico para a maioria dos primatas. Em geral, os gorilas, orangotangos, gibões e chimpanzés têm partos mais rápidos e simples, enquanto babuínos, saguis e macacos, entre outros, apresentam partos mais dificultosos, nos quais a desproporção céfalo-pél­vica não é um fator insignificante de mortalidade. O acréscimo importante de massa encefálica no gênero homo, ocorrida nos últimos dois milhões de anos, acrescido da bipedalidade anteriormente citada (datando por volta de cinco mi­lhões de anos passados), conferiu à nossa espécie o mais peculiar dos nasci­mentos. A ação conjunta de uma pelve mais achatada e constrita, aliada à cabeça grande de nossos filhotes, produziu um parto muito mais lento, laborioso e dolo­roso. Um dos resultados da evolução do bipedalismo é que o canal de parto é tor­cido na sua porção média, fazendo com que a entrada seja mais larga no sentido transversal, e a saída, no longitudinal, obrigando o feto a girar, ainda dentro do canal de parto. A característica tensão do colo uterino também é uma marca da verticalidade, pois ele necessita ser reforçado para suportar a força da gravidade durante a gestação e não produzir perdas precoces.

O resultado final dessa aventura adaptativa foi a produção de uma experiência de nascimento muito mais dramática e complexa do que a das outras espécies ma­míferas do planeta. O parto humano é mais doloroso e difícil que os demais, por termos nos “erguido para comer a fruta do conhecimento”, e posteriormente, bem alimentados por ela, termos triplicado nosso volume encefálico em relação aos nossos antepassados australopitecos.

Erguer-se e conhecer: os dois grandes desafios iniciais. Com essa característica de uma pelve estreita em uma cabeça cada vez maior, criou-se a necessidade de expulsar esses fetos o quanto antes do claustro materno, porque apenas aqueles que nascessem antes permitiriam que suas mães sobrevivessem, aumentando dessa maneira sua chance de viver e levar adiante seus genes. Certamente du­rante a longa jornada adaptativa da espécie humana, não foram poucos os óbitos por desproporção céfalo-pélvica. Nosso processo de experimentação acaba sem­pre produzindo vítimas, mas essas servem de lição e aprendizagem para a melho­ria da espécie. A expulsão o mais precoce e prematura possível de nossos filhos, na oportunidade em que tenham atingido capacidades mínimas de sobrevivência no meio extrauterino, terminou por produzir o fenômeno da “fetação”. Nossos be­bês hoje em dia são todos “prematuros”, pelo menos do ponto de vista do amadu­recimento neurossensorial. Uma gravidez humana deveria durar por volta de de­zoito meses, nove meses a mais do que se observa, pois com essa idade de vida é que um recém-nascido humano tem capacidades semelhantes às de um primata recém-nascido, como os chimpanzés ou gorilas, como nos relata Wenda Treva­than, em Human Birth. O resultado da expulsão fetal precoce é a “altricialidade”, ou seja, a extrema de­pendência do recém-nascido dos cuidados parentais. Essa peculiaridade de nossa espécie é a origem antropológica e biológica do amor materno, e também da nossa estratégia de constituir famílias, em vez de investir na promiscuidade como alternativa primeira para disseminar nossos genes.

Erguer-se, conhecer, cuidar, agrupar-se. Essas características foram fundamen­tais para a nossa sobrevivência. O surgimento da racionalidade foi o ponto culmi­nante e definitivo para a nossa supremacia sobre as outras formas vivas do pla­neta. O parto humano é uma maravilha da adaptação: uma obra de milênios, em que todos nós, por estarmos aqui, somos testemunhas de seu sucesso. Pela sua característica de milenar adaptação, o nascimento humano não pode ser melho­rado por obra da tecnologia, e todas as tentativas de artificializá-lo resultaram em fracasso. Resta-nos agora sobreviver ao desafio imposto pelo perigoso incremento desmedido da tecnologia na vida cotidiana. Estará a espécie humana, como que­rem nos fazer acreditar os filósofos mais pessimistas (como Jean Baudrillard, en­tre outros), fadada à desaparição, dando lugar a outra espécie mais adaptada, como as máquinas?

Entre as características mais estudadas do parto está a sensibilidade dolorosa, até porque a ablação dessas sensações está entre as possibilidades em que o saber médico pode atuar com mais intensidade. A dor do parto não pode ser negada nem menosprezada. Mas a pergunta frequentemente negligenciada é: “de qual dor estamos falando?” A “dor fisiológica” do parto, causada pela contração uterina, dilatação do colo, etc, é um fato inquestionável para a imensa maioria das mulheres, apesar de algumas poucas, como Madalena, relatarem a completa ausência de dor. Entretanto, essa experiência dolorosa é contrabalançada pelo acréscimo fantástico de endorfinas na circulação, em um incremento de até 30 vezes os valores séricos normais, o que auxilia a parturiente a suportar as dificuldades do processo. Além disso, os suportes emocional, afetivo, social e espiritual oferecem sentido a essa dor, pois, como já afirmavam os Terapeutas de Alexandria, “a única dor insuportável é a que não é interpretada”. Interpretar um sofrimento é conferir-lhe sentido, direção e pro­pósito. Uma mulher, de qualquer latitude, cultura ou época, que consegue enten­der o sentido superior de suas agruras e dores, vai acabar por superá-las, mesmo que para isso tenha que enfrentar face a face suas próprias limitações. Por outro lado, uma sociedade individualista e hedonista, em que o sofrimento parece não ter nenhuma razão ou objetivo, dificilmente poderá convencer uma mulher da im­portância da luta e da superação, mesmo ao vivenciar seu principal rito de passa­gem.

Falamos, então, de uma dor fisiológica associada a um processo que desafia nos­sos limites ou de uma percepção patologizante de um fenômeno natural, que se torna mais doloroso tanto mais relegamos ao esquecimento suas dimensões afeti­vas, sociais e espirituais? Afinal. De que parto estamos tratando? Falamos de um parto como se apresenta realmente, milenarmente construído como evento social, feminino e afetivo? Ou estamos tratando do parto tecnocrá­tico-biomédico-ocidental-contemporâneo de nossos hospitais e clínicas atuais, que é um dos mais contundentes exemplos de simulação da realidade, como tantos outros que encontramos na vida cotidiana? Não estaríamos falando de uma dor criada pelo modelo médico contemporâneo em função do distanciamento dos va­lores afetivos, sociais, emocionais e espirituais ligados ao poderoso rito de passa­gem que é o parto, como bem cita Wenda Trevathan em seu livro Evolutionary Medicine? O parto é um momento mágico, glorificado e temido por todas as culturas, por conjugar em um só evento os mitos mais temidos pela sociedade: sexualidade, nascimento e morte, como afirmava Holly Richards no seu artigo Manifestação culturais do nascimento: a perpetuação do medo.  Mas as origens dessas particu­laridades se perdem na poeira dos tempos. Para entender melhor essa estrada, há que se conhecer de onde viemos e porque somos assim. Divina e maravilho­samente diferentes.

Faço outra determinação em secreto silêncio. Decido que esse exame das 21 ho­ras seria novamente categórico. Nada falo para Cristina ou Zeza, porque não quero que ninguém se influencie pela expectativa. Fico apenas eu sabendo do que estarei decidindo. Na última avaliação, o bebê estava com uma bossa serossan­guínea no couro cabeludo, sinal de que estava há algum tempo fazendo pressão para passar pelo canal de parto. A bolsa havia se rompido durante o exame das 13 horas, e o líquido era claro com vérnix, que é aquela cera brancacenta, pare­cida com hidratante para mãos, que se compõe de gordura e células descamadas da pele do bebê. Isso não se modificou durante o dia, mas minha preocupação era de que já seriam 15 horas de trabalho de parto, e eu temia que Márcia estivesse esgotada demais, e que esse bebê fosse um caso verdadeiro de desproporção ou de mau posicionamento. A vida de um obstetra é sempre cheia de decisões a to­mar, angústias, escolhas e tensão. Continuo lendo Ivan Illich, esperando o tempo passar. É ele quem me assusta a cada linha, ao mesmo tempo em que me reco­nheço na sua fala.

“A aventura médica causa outros danos, na ordem social desta vez. A saúde do indivíduo sofre pelo fato da medicalização pro­duzir uma sociedade mórbida. A iatrogênese social é o efeito so­cial não desejado e danoso do impacto da medicina sobre a soci­edade, mais do que sua ação técnica direta.”

Fico feliz que alguém de fora do Brasil diga algo que Max me diz há tantos anos, mas, sendo ele “nativo”, ninguém lhe dá crédito. A extremada medicalização da sociedade é, como afirma Ivan Illich, a “máscara sanitária de uma sociedade mór­bida”.

Agora são 21 horas. Tenho que fazer o tal exame. Olho para Márcia, que estava agachada enquanto Cris e Zeza continuam a fazer uma forte pressão nas suas cristas ilíacas, procurando com isso oferecer espaço para que o bebê possa rotar e ajeitar sua cabeça na “pequena pelve”. Giro minha cabeça para o lado esquerdo e fecho os olhos. Imagino o bebê fazendo esse mesmo movimento. Mentalizo o pequenino dentro do ventre materno rodeado de uma luz azul-lilás, movendo-se da mesma forma que eu. A imagem daqueles robôs de Hollywood, que fazem a mesma coisa que um humano realiza ligado a ele por fios, me vem à cabeça.  Chego a visualizar feixes de luz nos conectando. Ok… vamos lá. Uma bossa bem volumosa. Um colo uterino edemaciado. Maus sinais. Entretanto, a cabeça do bebê desceu! Está abaixo das espinhas, e está em OP (Occípito Pú­bica). O bebe posicionou-se com a nuca voltada para os ossos púbicos da mãe, que é a posição mais adequada para a descida. Vejo que ele “obedeceu” minhas determinações e foi sensível aos exercícios que as meninas fizeram. Ele estava mais baixo! Seus sinais vitais continuavam maravilhosos, e o ânimo de Márcia se reascendeu quando eu disse que ele havia virado e estava bem posicionado. Olho para Cristina e solto um suspiro de alívio. Vai passar, pensei eu. Ela vai conseguir, sim, senhor!

Voltei a ter esperanças. Por alguns instantes, vislumbrei a presença de V. ao meu lado. Ao contrário de outras ocasiões, em que eu a via serena e séria, ela se apre­sentava sorridente, alegre e jovial, como quando a conheci. Estava vestindo uma roupa verde, parecida com as vestimentas de hospital. Pedi que ela desse uma ajuda especial naquele momento porque, mais do que qualquer outra coisa, era necessário ter paciência, além de tranquilidade e confiança. Ela nada disse, ape­nas sorriu, e no instante seguinte já não estava mais ali. Vou até a porta do centro obstétrico e aviso Mirtes, a irmã de Márcia, de que va­mos continuar apostando no parto normal, mas que isso ainda pode demorar. Ela fica aliviada, aperta minha mão com força e diz que liga mais tarde. Volto a “conversar” com Ivan, esperando que as coisas continuem melhorando para a minha paciente. Diz ele:

“Desde que as mulheres do século XIX resolvem se afirmar, for­mou-se um corpo de ginecologistas: a própria feminilidade trans­formou-se em sintoma de uma necessidade médica tratada por universitários evidentemente do sexo masculino. Estar grávida, pa­rir, aleitar são outras tantas condições medicalizáveis, como o são a menopausa ou a presença de um útero, até a idade em que o especialista decide que ele é demais”.

Maximilian sempre me alertara para isso, mesmo que Nadine ficasse brava consi­derando suas ilações exageradas ou paranoicas. Há anos que ele me provocava com essa questão: “Quais as duas cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos? Pois não se surpreenda: a primeira é a cesariana, e a segunda, a histerectomia. Não é interessante, ou pelo menos intrigante, que as duas cirurgias mais realiza­das na pátria da infotecnocracia são sobre o mesmo órgão e sobre o mesmo gê­nero? E as duas recaem sobre a sexualidade feminina, com caráter amputador”?

Ivan e Max sabiam das coisas, mas para mim restava uma pergunta dolorosa: “O que estava eu fazendo ali? Qual a minha função? Qual a minha parcela de contri­buição na alienação que a medicina é capaz de produzir? Por outro lado, como seria possível para um médico impulsionar seus pacientes verdadeiramente para o crescimento pessoal e para a libertação?”

Márcia incrementou seus esforços, e percebi que ela estava mais confiante. Du­rante uma contração, escutei um som grave, vindo do fundo de uma força expul­siva. Cristina imediatamente voltou-se para mim, esperando no meu olhar uma confirmação. Já passavam das 23 horas, e não queria ser confiante demais. Re­solvi que valia a pena fazer um novo exame e investigar a posição do bebê no ca­nal de parto. Estava bem mais baixo, na posição +2 de De Lee. Uma grande bossa estava a cobrir a calota craniana do pequenino, mas inegavelmente tínhamos progredido. A dilatação não estava completa, porque um rebordo edemaciado de colo se colo­cava à frente do occipício. Resolvi então reduzir este colo inchado e colocá-lo para trás da nuca do bebê. Sei que isso pode causar alguma dor, mas estávamos muito próximos de conseguir algo para desistir devido a um rebordo renitente. Pedi a Márcia que empurrasse durante a contração, e assim ela procedeu. Ploc! Lá se foi o ultimo resquício de colo. Agora não havia nada entre o bebê de Márcia e o mundo gelado que o aguardava. Foi nesse instante que eu notei o pé de Zeza.

Ela estava usando uma botinha de couro forrado, que parecia um sapatinho de esquimó. Era muito bonitinho, e é o sapato de estimação que ela usa nos partos em dias frios. Mas percebi que, na ponta do sapato, havia um pequeno furinho, uma parte de couro desfiado. Olhei pra Zeza e disse:

— Zeza, que vexame! Olha só seu sapato. Está furado!

Zeza olhou para baixo, sorriu graciosamente e deu de ombros.

— Prefiro uma mendiga quentinha a uma grã-fina gelada — disse ela.

Sem conseguir conter o riso, Cristina se aproximou e mostrou o que estava usando nos pés. Era uma bota de couro de cano curto, forrada de pelego, para ser usada nos dias úmidos e de frio cortante. O detalhe que chamava a atenção é que exatamente na proeminência do dedão havia um furo. Um pequeno furo, mas que mostrava um inquieto dedo coberto pela meia. Quando as duas se deram conta de que estavam com o sapato furado, desabaram em risadas, a ponto de ser neces­sário pedir que saíssem da sala para que não desviassem a concentração da pa­ciente.

Minhas companheiras de equipe, ambas de sapato furado.

Foi então que Márcia teve uma contração mais forte do que as outras. Eu me aproximei e constatei que, vencidas todas as dificuldades, seu bebê estava pró­ximo da saída. Respirei aliviado. Finalmente! Os cabelos escuros começavam a aparecer no introito vaginal. Chamei Zeza e Cristina para perto, e pedi a Zeza que assumisse a posição para segurar a criança que estava chegando. Estávamos nos aproximando da meia-noite. O dia seguinte seria o dia da data provável do parto. Márcia sorria e dizia para a barriga que aquilo que o Dr. Ric ha­via dito era apenas uma projeção, e que ele não precisava nascer exatamente no dia “estabelecido” pelo médico. O pediatra na sala auxiliava com seu bom humor a manter um clima de expectativa positiva. As últimas contrações foram fortes, e a progressão, lenta. O avanço era insidioso, pausado, mas a cada contração percebia-se que a posição do bebê havia se mo­dificado um pouquinho.

— Faltam 10 minutos para a meia-noite — disse eu. Será que eu estava mesmo com a razão?

Márcia faz uma força espetacular. Reúne em seus braços e no abdômen a energia fantástica das fêmeas. Grita, geme. Contrai o rosto pela última vez.

Nasceu. Faltando cinco minutos para a troca do dia, ele veio ao mundo. Envolto em líquido amniótico e vérnix, nasceu Marcus Filipe, com 2710 gramas, apgar 9 e 10. A cabeça pontuda denuncia o tempo e a dificuldade para nascer, mas nasce ativo, esperto e logo abre os olhos. Dezoito horas depois de termos chegado à casa de Márcia e Adriano, consegui­mos realizar o sonho esperado de um parto normal. Praticamente não houve lace­rações, mas foi dado um ponto apenas na parede vaginal anterior. Márcia estava exausta, mas feliz e exultante. Lutou contra muitas dificuldades, principalmente o cansaço e a posição inadequada do seu bebê no canal de parto. Foi uma grande vitória, principalmente porque acreditamos e valorizamos seu de­sejo. Ela merecia o sucesso que teve. Lutou com todas as suas forças para ter um parto humanizado e empoderador. Sei que, diante das dificuldades apresentadas pelo parto, seria difícil que Márcia tivesse seu filho de forma normal, não fosse essa a equipe que a acompanhou. As meninas, com sua presença e atuação constantes, foram novamente o grande diferencial positivo. Saindo de lá, ainda olhei para as minhas colegas e comentei:

— Espero que da próxima vez vocês venham com sapatos melhores para atender um parto, não é?

Elas me respondem ainda rindo:

— Somos a “Irmandade do Sapato Furado”. Temos estilo. Não foi por acaso. Es­ses furinhos no sapato em verdade são uma comunicação com o universo, com a feminilidade, com os instintos. Foi por isso que conseguimos sucesso hoje, porque estávamos em contato direto com a “mãe-terra”. Precisávamos de um contato fí­sico com as deusas que nos transmitem força e intuição. Nossos sapatos furados funcionaram como “antenas invertidas”, receptoras da energia de Gaia.

Quem sou eu para duvidar?

Dirigindo-me para o carro, lembrei-me mais uma vez de Ivan e Max, e como am­bos elogiavam o modelo chinês dos “médicos de pés no chão”. Era para eles a possibilidade de mandar de volta para a cultura e para a sociedade a responsabili­dade que foi usurpada pela ideologia tecnocrática, que produziu o que Ivan Illich chama de “expropriação da saúde”. Mas será que minhas colegas Cristina e Zeza não seriam uma forma de nova “brigada de mulheres” na construção de um novo modelo de saúde da mulher, centrado no empoderamento feminino e em uma vi­são holística de saúde em consonância com a natureza? Seriam elas um novo paradigma? Seriam elas mesmo a “Irmandade do Sapato Furado”, em paralelo com “médicos de pés no chão?” O retorno de um modelo feminino de atenção ao parto sempre me apaixonou. Mi­nha busca por uma resposta à gravura de livro de Odent acabou me levando a procurar o apoio das mulheres, para oferecer às grávidas aquilo que eu não as podia dar. A “Irmandade do Sapato Furado” aparecia como um “modelo que fun­ciona”, na busca por uma assistência mais humana, mais afetiva e mais centrada na mulher, em seus desejos e necessidades. Ao voltar para casa, caio na cama quase desfalecido, mas ainda tenho tempo de refletir sobre os eventos do dia e como nosso esforço foi recompensado, princi­palmente pela atuação das meninas.

Mas ainda restava uma dúvida na cabeça: ela voltaria para me interrogar? Se a odalisca de branco me perguntasse novamente a palavra mágica, qual eu diria? Qual a palavra que permite a uma mulher se expandir? Qual o segredo que cada uma delas esconde? Que palavra Márcia ouviu, que fez com que ela suplantasse suas dúvidas e obtivesse sucesso? Qual a palavra a ser dita?

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Memórias do Homem de Vidro – 02

Pai e Paternidade

A história do ser humano na face da terra é caracterizada por um aprendizado lento. Nossas conquistas nas áreas sociais sempre foram graduais e paulatinas, com gerações inteiras experimentando apenas detalhes como modificações no seu cotidiano quando comparadas com o estilo de viver de seus ancestrais remo­tos. Essas alterações sempre ocorreram em todos os aspectos da sociedade, desde a organização social e política até mesmo (e principalmente) no terreno da ciência e do conhecimento. Durante milênios, nossas tarefas e especificidades sociais foram determinadas rigorosamente pelas aptidões aparentemente mais “naturais” que apresentavam os homens e as mulheres. O legado que nossa ex­tensa experiência como caçadores/coletores nos deixou transmitiu-se por inúme­ras gerações, sendo que a rigidez de seus postulados apenas há alguns anos passou a ser questionada. Assim, nada mais justo que o mundo externo, o mundo das conquistas, das batalhas e do saber racional ficasse sob a responsabilidade do componente masculino, enquanto o mundo interior, da família, da natureza, dos mistérios do inconsciente, coubesse às mulheres. Esse esquema funcionou com razoável equilíbrio até algumas poucas décadas atrás, fazendo com que homens e mulheres convivessem em uma “harmonia forçada”, por ser essa a expectativa clara e única de suas funções sociais. Nesse mundo, a gravidez, o parto e a ma­ternagem existiam apenas como extensão do universo feminino, não sendo possí­vel entender a participação dos homens nele, a não ser como procriado­res/provedores e possuidores de uma descendência.

Lucas, a exemplo das tradições tibetanas, nasceu de um sonho. Um sonho pre­monitório, mas, ao contrário do que se esperaria, esse sonho não foi sonhado por quem o carregava no ventre; foi sonhado pelo seu pai. Em uma escura passagem, um caminhante solitário vê formar-se à sua esquerda uma fonte intensa de luz. Ofuscado pela luminosidade, leva a mão aos olhos, tentando enxergar o que se esconde por detrás. Inútil. Dessa luz brota uma voz, que avisa em tom solene a chegada de um visitante.

— Preparem-se, amigos — diz a voz poderosa. — Lucas está se aproximando para juntar-se a vocês.

Depois disso, do meio do breu da estrada surge a figura de um menino, de mais ou menos 10 anos de idade, que caminha em minha direção. Tem os cabelos loi­ros, lisos e longos e seu passo é firme. A distância entre nós se encurta, mas nosso contato não chega a acontecer porque, assustado, desperto do meu sono. Ligo para a minha namorada e digo que tenho algo muito importante para lhe di­zer. Ela se assusta. Mais tarde lhe conto pessoalmente o sonho, e o nome do me­nino que me foi revelado, e ela diz que seria quase impossível que ele fosse ver­dade. Não seria viável, ou provável, que ela estivesse grávida àquela época do ciclo menstrual. Eu apenas comentei que o sonho fora claro demais para ser des­merecido. Os acontecimentos das próximas semanas mostraram que tanto eu quanto o sonho estávamos certos.

Lucas estava realmente a caminho.

Exatamente 40 semanas após sua última menstruação, ela entrava em trabalho de parto. Rompida a bolsa na madrugada, rumou para o hospital da universidade, o mesmo onde anos mais tarde eu faria a minha formação em obstetrícia e gine­cologia. Suas contrações ainda eram frágeis e irregulares, mas foi mantida no hospital por decisão do contratado de plantão. Eu ainda não tinha a menor noção da iatrogenia relacionada à internação precoce de pacientes em fases iniciais de trabalho de parto. Levaria muitos anos para aprender essa conexão notável entre o psiquismo feminino, seu instinto de proteção à cria, e a sutileza dos mecanismos relacionados à ocitocina, endorfina e adrenalina. Deixo o hospital prometendo voltar mais tarde. Como de costume, eu estava gazeando aulas na faculdade de medicina para fazer um plantão no Pronto-Socorro. Sempre me atraiu a medicina viva, em carne e osso, olhando a face dos pacientes, catando diagnósticos nos sulcos que o sofrimento marcava em seus rostos; por isso, minha opção desde cedo em trabalhar junto aos doentes, priorizando a prática em detrimento da frieza vazia das teorias.

No meio da tarde, meu cunhado me liga dizendo que as dores estavam muito for­tes e que seria melhor eu voltar ao centro obstétrico. Percebi que Lucas estava chegando. Havia aguardado mais de 20 anos por esse reencontro.

As horas se acumulavam, umas sobre as outras. As dores se aproximavam, quase se fundindo. O suor, o rosto contraído, a palidez. O gosto salgado na sua boca. Olhava para ela como que a pedir perdão. Uma súplica. Como posso ajudar, se tenho as mãos atadas? Que posso fazer para minorar sua dor? Eu tenho apenas 22 anos. Como sou estudante de medicina, e apenas por isso, me permitem adentrar o espaço do centro obstétrico. É uma manhã fria de junho de 1982. Es­tamos no meio da Copa do Mundo. Ontem o Brasil aplicou 4 x 0 em um time qual­quer. Nem lembro bem qual é, mas o Zico marcou um gol. A ruptura da bolsa se deu junto com o romper da aurora, e sabia que esse fato era um complicador na forma como os médicos do centro obstétrico entendiam aquele caso específico. A mim só restava esperar, e pedir aos deuses que os médicos responsáveis tives­sem a sabedoria para fazer as melhores escolhas.

A participação paterna no processo de parto e nascimento é um evento raro entre os mamíferos, principalmente quando a paternidade não é uma obviedade. Entre os grupamentos em que a participação genética de determinado parceiro é asse­gurada, essa ligação pai-filho se dará de forma mais intensa, enquanto, nos gru­pamentos mais promíscuos (com paternidade menos confiável), um padrão muito heterogêneo poderá ocorrer, variando do infanticídio, em uma extremidade, até mesmo cuidados ativos e afetivos, na outra. Essa disparidade idiossincrática de atitudes nos demonstra que o estabelecimento da relação entre o pai e seu filho não seria um produto de nossa herança genética, mas ocorreria em razão de as­pectos ecológicos e comportamentais, principalmente relacionados com a distri­buição de comida, o que está de acordo com a atitude de todos os carnívoros so­ciais.

Ela a cada minuto parecia mais fraca. Dezoito horas já haviam se passado desde a ruptura das membranas e a perda do líquido amniótico. Seu humor estava aba­lado. Não mais suportava a conversa das auxiliares, e mesmo a minha presença era apenas tolerada. Eu caminhava ansiosamente de um lado para outro. Repeti­ria essa atitude ansiosa durante as centenas de partos que acompanharia nos anos que se seguiriam. Mas aquele dia era o meu “batismo de fogo”. A paterni­dade entrava na minha vida de forma precoce e inesperada, o que me deixava ainda mais assustado e tenso. Fazia promessas. Imaginava que amanhã estaria rindo com meu filho nos braços. Pensava na magia de ser pai. Ia até o corredor do hospital e pedia colo para minha mãe, que silenciosamente aguardava para parir seu primeiro neto. Tentava criar coragem. Olhava para as residentes e aguardava delas uma palavra, um gesto, uma confirmação. Esperava que meu sofrimento fosse abreviado. Eu estava entregue. Dependia daquela mulher e dependia da­queles médicos. A sensação de dependência, de falta de controle sobre a situa­ção, me fazia menino, pequeno, diminuto. Só o que podia fazer era ter paciência e confiar. Das residentes escutava apenas comentários que não me ajudavam. Zeza continuava completamente absorvida pela intensidade de suas dores, mas para mim, pobre menino, nada parecia acontecer. Até que, ao cair da noite, depois de um exame vaginal, eu escuto a guturalidade de um som: a expressão sonora de uma passagem. Algo ocorrera, e fixei meus olhos no residente. Este me olhou ra­pidamente e disse, enquanto se dirigia à porta da zona restrita:

— A dilatação se completou, podemos ir para a sala de partos.

Bowlby, que foi um dos pioneiros na investigação do apego entre mães e filhos, dizia que o pai não tem nenhuma importância para o recém-nascido, e sua partici­pação se resume em ser uma fonte de recursos econômicos e suporte emocional para a mãe. Apesar dessa posição pessimista quanto ao papel desempenhado pelo pai, vários outros autores demonstraram que o desempenho dos pais em sala de parto tende a ser muito semelhante ao que frequentemente é observado com as mães que acabaram de ter seus filhos. Dessa forma, os mesmos rituais de re­conhecimento e de contato seriam estabelecidos não fossem as expectativas e os papéis sociais fixos encontrados nas sociedades. Livres das constrições e imposi­ções sociais, os homens poderiam estabelecer as mesmas manifestações de apreço, carinho, apego e amor pelas suas crias que suas mulheres apresentam. Esse comportamento de formação de apego é o que se chamaria de “espécie es­pecífico”, e tem sua origem geneticamente determinada, segundo uma das hipóte­ses que existem contemporaneamente, de Wenda Trevathan, antropóloga ameri­cana que escreve sobre as origens do nascimento sob uma perspectiva evolucio­nista darwiniana. Hoje em dia muito se tem estudado a respeito da importância do pai na sala de parto, porque a pressão cultural pela participação ativa dos parcei­ros na hora do nascimento levou os profissionais, e mesmo os hospitais, a se pre­pararem para que a chegada do bebê ocorra preferencialmente com a presença do genitor. O próprio método Lamaze, dos anos 1960, estimulava a presença do pai como orientador, um condutor da paciente diante das agruras do trabalho de parto. O pai entrava no cenário do parto pelas mãos do médico, como seu aju­dante de ordens.

Na atualidade, questiona-se novamente se a presença do pai seria benéfica para o bom andamento do parto ou se ele seria um intruso no cenário essencialmente feminino do nascimento. A verdade é que os comportamentos em sala de parto tendem a ser muito variáveis, desde pais que entram em perfeita sintonia com o processo de nascimento e dessa forma auxiliam a gestante durante todo o desen­rolar do processo até pais que, pela sua intensa ansiedade diante do desconhe­cido, funcionam como “disseminadores de adrenalina”, como afirma o Dr. Michel Odent. Estes últimos funcionam como promotores do círculo vicioso de medo-ten­são-dor descrito por Grantly Dick-Read nos anos 1930, e não foram poucas as vezes em que a saída desses pais nervosos da sala foi a responsável pela mu­dança radical e positiva no resultado de um parto. Entretanto, a experiência de­monstra que, quando bem conduzidos e orientados, os pais são, via de regra, su­porte emocional e afetivo de qualidade para a grávida. Além disso, a experiência viva da paternidade tem a potencialidade de fortalecer os vínculos desse novo pai com o recém-nascido, assim como estreitar os laços amorosos com sua compa­nheira.

Pelo menos agora eu sabia que a espera estava por se findar. O bebê havia atin­gido a parte inferior do canal de parto. Minha insipiência médica me deixava à mercê do que era dito. O que sabia um aluno de terceiro ano da escola médica sobre partos? Quase nada. Sem perguntar se era permitido, invadi a área restrita do centro obstrético, depois de trocar de roupa no vestiário. A presença dos pais na sala de parto no início dos anos 1980 era vista com franca desconfiança. So­mente eram “liberados” aqueles que tivessem solicitado com antecedência para os responsáveis pelo centro. Estar ao lado de sua mulher, filha, amiga ou irmã era uma concessão, nunca um direito. Eu conhecia essa norma, mas, mesmo sem pedir solicitação, adentrei a área de partos e deixei claro que esse direito era meu, e que ninguém poderia me impedir de estar ali.

Eu agora estava todo de verde. Estava igual aos residentes e doutorandos. Tive a sensação (que eu repetiria alguns anos depois) de que havia vestido a roupa do Super-Homem, o todo-poderoso ícone de Seinfeld. Menos charmosa, com menos glamour, mas que produzia os mesmos efeitos. Senti-me participante de uma confraria de homens que decidem sobre a vida e a morte de outros. Há poder maior que esse?

Ela foi colocada deitada de costas sobre a mesa fria. Ainda era cedo para que eu entendesse o quanto essa posição das mulheres ao parir obedecia a uma ordena­ção simbólica oculta e inconsciente, e o quanto era prejudicial tanto para ela quanto para o seu bebê. Naquele dia, porém, eu era apenas mais um pai desem­poderado olhando atônito para uma mulher parindo inserida no modelo tradicional. Eu rezava e esperava o quanto podia; ela se esforçava além do que imaginava ser capaz. Fazia a força mais poderosa que seu corpo permitia. O alarido na sala vi­nha de todos os lados. As enfermeiras, os médicos, todos gritavam, como que querendo exorcizar a angústia que traziam dentro de si. Eu ficava parado, imóvel, assustado em um canto da pequena sala. Não ousava dizer uma palavra, porque temia que ela fosse interpretada como uma interferência, e me determinassem sair. Ela suava, pálida, jogando todas as gotas do seu sangue nos braços e no útero. Os minutos passam, e quanto mais tempo permanecíamos na sala de parto mais a ansiedade dos médicos aumentava. Eu já sabia, desde aquela época, que o relógio dos médicos é mais importante que a subjetividade de uma mulher pa­rindo. Gordas, magras, altas e baixas; ansiosas, tranquilas, aterrorizadas e alheias: todas eram iguais perante a visão homogenizante da obstetrícia. Sua de­mora em parir era sentida como ameaçadora pela equipe, e a angústia do resi­dente começava a aumentar. Sua testa destilava, e ele solicitava à enfermeira que a secasse. Eu observava as atitudes e anotava mentalmente. “Puxa, quando eu me formar, quero ter uma auxiliar só para secar a minha testa”. Brincava em soli­lóquio para afastar o pânico. Será mesmo que tudo está bem?

— Vou precisar de um fórceps — disse o obstetra.

Senti um medo vívido e dolorido pela primeira vez. Gritei em meus pensamentos:

— Lucas! Aguenta aí, meu velho! Eles querem puxar você!

A participação do pai no parto pode ser vista como um fato inato, geneticamente determinado, mas que não se expressaria na sua plenitude por fatores culturais e sociais. Mas também pode ser visto, alternativamente, como um processo de aprendizado absolutamente cultural. Ambas as formas de compreensão da “pater­nagem” coexistem na discussão contemporânea. De qualquer maneira, a expres­são última desse fenômeno é recentíssima na história da espécie humana. Nunca, em nenhum outro momento da história, o pai teve tanta presença e importância no nascimento de seus filhos como a época em que estamos vivendo. O que se per­cebe pelas últimas pesquisas é que o envolvimento paterno intenso, quando per­mitido, fortalecerá os vínculos futuros de assistência e afeto, tanto em relação ao bebê quanto com a sua mãe. Esse aspecto novo nas relações humanas, conju­gado com as modificações rápidas na sociedade nos aspectos sociais e econômi­cos, tem despertado o interesse de muitos pesquisadores a respeito das tendên­cias comportamentais relacionadas ao papel da paternidade no futuro da humani­dade. Nas palavras de Alice Rossi, “ou providenciamos uma compensação para o pai sob forma de treinamento nos cuidados com o recém-nascido, ou veremos um fortalecimento crescente da força e da importância da formação de apego entre a mãe e seu bebê, em função do fato de que a maternidade agora se estabelece por livre escolha e a figura paterna como fertilizador e provedor se encontra amea­çada”. Duas décadas se passariam antes que Maximillian, meu dileto colega e “mentor espiritual”, me contasse seu sonho pessimista sobre o masculino, mas que se encaixava perfeitamente no comentário acima.

Eu não sabia exatamente o que significava um fórceps, apesar de já ter visto al­guns. No terceiro ano de medicina, mal havíamos estudado bioquímica. Nada de pacientes, muito menos de grávidas. O pouco que eu sabia havia aprendido nos plantões intermináveis do Pronto-Socorro. Duas colheres frias de aço, entrelaça­das formando um “x”. Duas mãos de ferro, a tracionar o pólo cefálico. Eu não tinha noção de morbidade relacionada ao seu uso, mas sabia que ali estava uma deci­são que o obstetra estivera protelando pelos últimos minutos. Olhei mais uma vez para minha mulher. Cansada, frágil, fraca, intensamente bela. Mas também ela sentiu medo. O trovejar das colheres do instrumento de Chamberlain ecoou pela sala. Uma colher repousava na mão do residente, a outra aguardava na mesa.

— Fique em silêncio, não se mova… vou colocar a primeira colher. Vai sentir uma dor diferente, mas se você ficar quieta vai…

— Espera! — disse ela. O som saiu como um sopro por entre seus lábios sem cor. — Eu estou tendo uma nova contração. Deixe-me tentar de novo… por favor, uma última vez.

Em algum momento de nossa jornada na terra, tornou-se adaptativo para os ho­mens tomarem conta de suas fêmeas e filhos. Contrariamente ao que acontece com outras espécies, em que a participação paterna é inexistente ou pouco im­portante, entre os humanos tornou-se fundamental a presença do pai para a segu­rança daquilo que nossa espécie de forma muito específica criou: a família. A altri­cialidade, entendida como a extrema dependência do recém-nascido aos cuidados dos seus genitores, produziu essa aproximação do pai, na medida em que era mais interessante, do ponto de vista do sucesso reprodutivo, cuidar de uma fêmea e sua cria frágil do que tomar conta de diversas fêmeas e correr o risco de perder muitos recém-natos. A conduta adaptativa das espécies sociais, como os prima­tas, necessitava de uma intensa colaboração entre seus participantes. As ativida­des dos agrupamentos começavam a priorizar um comportamento baseado na divisão de alimentos e posteriormente na divisão das tarefas na família. Essa mo­dificação de tremenda importância na história da humanidade é a responsável por modificações na morfologia dos hominídeos, nos ecossistemas ocupados e na crescente dependência que se estabeleceu entre os recém-nascidos de nossa espécie, segundo as palavras do professor da Universidade de Kent, Owen Love­joy, autor da famosa publicação “A Origem do Homem”. Este mesmo autor escla­rece que a criação do núcleo familiar, pela disposição paterna de tomar conta de uma fêmea que lhe asseguraria a paternidade de sua descendência, produziu as condições necessárias para a supremacia da espécie humana, por fortalecer uma estratégia de cooperação e crescimento populacional. Assim, a paternidade, como fortalecedora do núcleo social, está relacionada à construção da humanidade como nós a conhecemos e concebemos. Hoje em dia cada vez mais a importância da interação afetiva (e não mais apenas econômica) é solicitada por parte do pai, e os valores da paternidade emergem em um mundo tão assombrado com as mu­danças vertiginosas nos conceitos até então inquestionáveis sobre o nascer, re­produzir-se e morrer.

A colher na mão do residente resolve voltar para junto de sua irmã sobre a mesa. Ambas em silêncio decidem assistir à última força, a derradeira tentativa. O resi­dente junta as mãos sobre o períneo de Zeza, como que a imaginar que delas surgiria a imantação a tracionar a cabeça de Lucas.

Então, o corte. Inevitável, cruel, cruento. Rasgava-se a carne, para manter intacta a estrutura social. Mantinha-se a ordem: “Só parirás se for através de mim. Pela minha mão sentirás em tua carne a lâmina grave que fere teu corpo. Ficarás mar­cada com a cicatriz eterna de minha presença. Terás teu filho pelas minhas mãos e por obra de minha vontade. Assim batizada, adentras o círculo da maternidade”. Também era muito cedo para me horrorizar com a barbárie das episiotomias in­justificadas.

O que me lembro a partir desse momento é uma coleção de fotos mentais, cola­das sem ordem no mural das lembranças mais cálidas. O choro, o medo, a emo­ção, a ansiedade, o alívio. A força suprema. O ápice da dor. O grito contido e a lágrima que escapa ao controle. As enfermeiras gritando, o médico com a respira­ção suspensa. Meu olhar fixo, e o coração parado.

Então ele aparece. Molhado, cabeçudo, “cabeça de ovo”. Tinha cara de “joelho”, como todo o recém-nascido, mas era incrivelmente lindo. Minha mulher dizendo que não conseguia ver direito, que queria tocar nele. A enfermeira secando sem cuidado; o corte rápido do cordão, privando-o das últimas gotas de seu próprio sangue, guardadas no claustro materno. A luz ofuscante da sala às claras, a pedi­atra chegando. Meu pobre filho sendo levado antes que minha mulher pudesse tocá-lo. Os comentários infelizes da neonatologista; o cansaço de Zeza. O abraço de minha mãe. Tudo se mistura, em uma amálgama de sentimentos, sensações, cheiros, cores e luzes. Mas ali estava ele. Sua primeira batalha havia terminado. E ali estava ela, radiante e gloriosa. Sua principal vitória como mulher tinha aconte­cido.

Olhei para suas feições procurando me enxergar. Na orelha, o mesmo furinho que o pai trouxe de nascença. O sorriso imaginado na contração do rosto mostra tam­bém as mesmas covinhas herdadas. Minha mulher não se importa que eu me jul­gue parecido; pelo contrário, sorri da minha necessidade de produzir uma vincula­ção. Sua ligação com a cria repousa sobre a evidência gritante e avassaladora da sua experiência corporal. Seus músculos doídos, sua sutura perineal, seu can­saço, tudo isso lhe prova. Toda a patrilinearidade da cultura se assenta sobre essa natural desconfiança sobre a linhagem paterna. Nós, homens, não experimenta­mos no corpo nossa descendência. Ela se instala na confiança e no desejo. Para criarmos essa certeza, lhes damos nossos nomes. Criamos neles a marca pa­terna, indelével e perene, para que nunca se apague nossa ligação, e nunca se duvide de nosso sangue.

Fixo-me em seus olhos. Olho atentamente para ele.

Você voltou, amigão.

Alguns anos se passam e a história se repete.

Acordo sobressaltado. Olho para o teto e descubro-me fora de casa. Estava na casa de praia e precisava acordá-la para contar o que havia acontecido.

— Zeza — digo eu. — O sonho… aconteceu de novo.

Ela primeiramente não entende. Olha para mim sem saber o que dizer. Aos pou­cos, sem mesmo precisar perguntar, vai se dando conta do que eu estava di­zendo.

Conto-lhe o sonho, esmiuçando os detalhes. O mesmo lugar, a mesma estrada, o mesmo breu. Novamente a luz se faz à minha esquerda, e de lá brota a voz grave anunciando a chegada de mais um integrante da família.

— Preparem-se. Mais alguém está para chegar. Sua mulher está grávida de novo, e terá um filho que se chamará… Josué.

— Impossível — diz ela. — Impossível mesmo. Desta vez você está errado. Existe uma impossibilidade absoluta.

Fico em silêncio e resolvo esperar. Horas mais tarde, pergunto de sua menstrua­ção e ela, um pouco irritada, me informa que “acabara de ter suas regras”.

Dou de ombros. Eu já sabia. Algumas semanas depois a realidade vem à tona, e a gravidez transformou-se, novamente, de sonho em fato.

O parto veio a acontecer três anos depois do parto de Lucas. Dessa vez, Zeza resolveu esperar em casa até o último instante. Foi a mais sábia decisão que po­deria tomar. Sabendo de antemão do estresse relacionado à hospitalização, pro­positadamente adiou sua entrada no centro obstétrico o mais que pôde. Muitos anos ainda se passariam para que eu percebesse racionalmente o que ela intuiu naquela noite quente de primavera. Ela “sabia”, mesmo que inconscientemente, que a internação hospitalar fora a principal fonte de desequilíbrio no seu parto an­terior. Entendeu que as horas que permaneceu no centro obstétrico foram extre­mamente estressantes e angustiantes, capazes de bloquear a progressão do seu trabalho de parto. Dessa vez, seria diferente.

O telefone tocou e do outro lado da linha a voz era suspirosa, entrecortada e tensa. No hospital-escola onde estava realizando meu último plantão como estu­dante, eu soube do que se tratava mesmo antes da primeira palavra. Zeza estava com contrações vigorosas, mas estivera em casa, fazendo o tempo passar, por várias horas. Esperou para me ligar apenas quando pressentiu que o momento era chegado. Eu a tudo escutei, e lhe disse que viesse ao hospital que eu me en­carregaria de chamar os colegas.

Chegou lá com mais de oito centímetros de dilatação cervical, e minha filha nas­ceu pouco tempo depois.

Minha filha? Mas não era esperado Josué, aquele que derrubara as altas torres de Jericó com suas trombetas, conquistando a terra prometida para o “povo esco­lhido”? O que foi feito do guerreiro hebreu? Afugentou-se com a dureza da em­preitada e ofereceu seu lugar a uma garotinha? Mistérios ainda não resolvidos. As múltiplas interpretações para esse fato ainda são motivo para acalorados debates em família.

Zeza, dessa vez, não teve tempo de ficar ranzinza. Do momento da internação até o parto, não se passaram mais do que duas horas. A sabedoria na parturição tam­bém ocorre com a experiência. Novamente eu estava junto dela, mas não precisei fazer pressão para ser admitido: eu era o doutorando do plantão obstétrico. Na­quela noite/madrugada de dezembro de 1985, o acaso colocou no mesmo plantão do hospital o futuro pai, o pediatra, a obstetra e o tio médico. Todos estavam lá, sem que nunca houvessem combinado. Isabel, que era esperada como Josué, nasceu linda e charmosa. Também nasceu de um sonho, como seu irmão. Igual­mente não foi planejada, mas a recebi como alguém que eu ansiava por reencon­trar. Percebi claramente que eu precisava estar no nascimento de ambos para po­der constatar a força transformadora que o nascimento produz. Para sentir a dor e a angústia de sentir-se sob o controle de algo muito maior. Sabia que este apren­dizado seria fundamental para moldar o médico que eu queria ser. Depois disso, tornei-me um defensor do direito dos pais de assistirem ao nascimento dos seus filhos. Fui obrigado a comprar algumas brigas e criar algumas inimizades, mas percebi que estava tratando de um dos mais elementares direitos do homem: o direito de presenciar o milagre da vida, de assistir a criação da sua imortalidade.

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Sala de Espera

SaLA DE ESPERA

A sala de espera do bloco cirúrgico estava quase cheia, mas a angústia silenciosa do lugar feria os tímpanos dos quem sentavam em suas cadeiras acolchoadas. Zeza havia entrado no bloco havia menos de uma hora, e como todos ali presentes aguardávamos a notícia que seria dada pela única funcionária presente. O pequeno homem se escondia por detrás de um balcão alto, munido de uma tela de computador e um pequeno microfone. Para cada cirurgia que terminava ele anunciada no sistema de som da sala acanhada: “Familiares de Dona Zeferina, queiram comparecer à porta do bloco“. Assim era o ritual. Não sabíamos se ter o nome chamado no balcão era algo bom ou ruim, e apenas a notícia posterior sobre o resultado do procedimento cirúrgico poderia definir esse dilema. Sabíamos que sua cirurgia, apesar de simples, incorria nos riscos de qualquer cirurgia. Não havia como esconder o medo e a ansiedade, e só tínhamos como alternativa o disfarce fácil das piadas e a leitura compulsiva da timeline do Facebook.

Enquanto falava com meu filho sobre as novas possibilidades de construção de um refrigerador que não usa energia elétrica para a nossa comunidade “bicho-grilo“, uma senhora gorda de meia idade e com cabelos coloridos senta-se ao meu lado. Tinha nas mãos o indefectível saco de exames como um gigantesco relicário de sofrimentos, males e procedimentos médicos já realizados. Um certificado clássico de que havia passado por todos os rituais médicos de reconhecimento de sua condição de paciente. Sentou-se ruidosamente ao meu lado e, imediatamente depois, reconheceu no outro canto da sala uma amiga sua, talvez companheira dos infortúnios e peregrinações de laboratórios, médicos, tratamentos e autorizações de exames.

– Fulana, como está? Nos encontramos de novo!!!

Ela sorria cheia de dentes e parecia estar muito mais tranquila do que nós. Talvez, ao contrário do que nos acontecia, seu familiar já havia passado por estas agruras mais vezes, e aquele local não era tão desconhecido quanto o era por nós. Continuei minha conversa com meu filho até ser interrompido por sua voz estridente que percorreu ruidosamente a sala até atingir sua comadre, no outro canto.

– Pois amiga, está sabendo da Neusa?

Nesse momento eu e Lucas paramos a conversa e olhamos para o seu semblante ainda sorridente. Neusa é o nome verdadeiro de Zeza, o nome que carregou por toda a vida até ser “batizada” pelo bebê Lucas, que por não conseguir dizer essa palavra tão complexa passou a chamá-la de “Zeza”, apelido que vingou por mais de trinta anos. O que ela teria a dizer sobre “Neusa”? Seria uma conhecida que soube de sua internação? Seria uma coincidência? Um aviso? Um espírito materializado? Ficamos em silêncio à espreita do resto da conversa.

– Pois amiga, nem te conto. Aconteceu muito rápido e pegou a todos de surpresa. Estava muito bem, mas de uma hora para outra…

(a respiração de todos na sala ficou suspensa)

Mó réu, amiga. Mortinha. Morreu sem avisar. Que coisa né? De uma hora para outra. Coitadinha…

Olhei para meu filho e sem demora para o funcionário atrás do balcão. Seria possível que essa notícia tivesse pulado o protocolo e passasse para os outros antes de eu ser avisado? Poderia partir pelos corredores, driblar o microfone da funcionária e cair no conhecimento popular? Por uns milésimos de segundo minha mente ficou atordoada com a notícia, mas foi o olhar do meu filho Lucas quem me garantiu que se tratava de uma mera coincidência de nomes. Seus sorriso, com os olhos revirados para cima e a mão na testa mostravam que compartilhávamos o mesmo sentimento.

Lucas, eu vou bater nessa véia… me segura!!, eu disse entre risadas, mas era apenas o humor que brota incontido depois dos sustos.

Como pode uma coincidência dessas? Estávamos aguardando com ansiedade e temor as notícias sobre um familiar e aparece um “espírito zombeteiro”, direto do umbral, para deixar a todos de cabelo em pé (quem os tinha…). O mesmo nome da paciente que estava sendo operada!! E ela veio sentar ao meu lado, gritando o nome da falecida para toda a sala ouvir…

Depois de boas risadas ainda tivemos tempo para relaxar e continuar nossa conversa científica sobre açudes, peixes, energia limpa, ecologia e vida em comunidade. Alguns minutos depois escuto no sistema de som a voz da funcionária: “Familiares de Neusa, favor se dirigirem à entrada do bloco cirúrgico“.

Só depois de receber as excelentes notícias é que pudemos verdadeiramente suspirar aliviados. E se fosse mesmo um espírito tentando nos dar em primeira mão a notícia do desenlace físico? E se fosse uma forma do plano espiritual nos avisar que o “gato havia subido no telhado“?

Não era… e foi apenas uma curiosa coincidência macabra com um final feliz.

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