Eu já vi “Groundhog Day” (Feitiço do Tempo) com Bill Murray e Andy MacDowell no mínimo umas dez vezes, porque o filme conta uma história de otimismo, superação e transformação, além de ser muito engraçado. Vejo, este filme em especial, pela mesma razão pela qual as crianças pedem que contemos a elas uma história que já conhecem. “Conte pra mim algo que me deixe feliz e espante essa angústia”. Sim, a gente vê pelo prazer infantil e pelo efeito sedativo da repetição. Como crianças, queremos escutar a história de novo, e de novo e de novo.
Meu pai me falava da importância da rotina para os velhos, e só agora consigo entender o significado mais profundo disso. A rotina produz tranquilização pela previsibilidade dos fatos; não é necessário um investimento emocional e cognitivo para se adaptar às diferentes perspectivas e acontecimentos, e com isso relaxamos e podemos apenas nos deliciar com uma história que sabemos que não nos trará emoções novas e/ou negativas. Para os velhos, a ideia de que o dia pode ser programado, e as semanas assim como os meses, traz paz de espírito pelas mesmas razões: a possibilidade de desfrutar a vida sem os solavancos de acontecimentos imprevistos.
A sala de espera do bloco cirúrgico estava quase cheia, mas a angústia silenciosa do lugar feria os tímpanos dos quem sentavam em suas cadeiras acolchoadas. Zeza havia entrado no bloco havia menos de uma hora, e como todos ali presentes aguardávamos a notícia que seria dada pela única funcionária presente. O pequeno homem se escondia por detrás de um balcão alto, munido de uma tela de computador e um pequeno microfone. Para cada cirurgia que terminava ele anunciada no sistema de som da sala acanhada: “Familiares de Dona Zeferina, queiram comparecer à porta do bloco“. Assim era o ritual. Não sabíamos se ter o nome chamado no balcão era algo bom ou ruim, e apenas a notícia posterior sobre o resultado do procedimento cirúrgico poderia definir esse dilema. Sabíamos que sua cirurgia, apesar de simples, incorria nos riscos de qualquer cirurgia. Não havia como esconder o medo e a ansiedade, e só tínhamos como alternativa o disfarce fácil das piadas e a leitura compulsiva da timeline do Facebook.
Enquanto falava com meu filho sobre as novas possibilidades de construção de um refrigerador que não usa energia elétrica para a nossa comunidade “bicho-grilo“, uma senhora gorda de meia idade e com cabelos coloridos senta-se ao meu lado. Tinha nas mãos o indefectível saco de exames como um gigantesco relicário de sofrimentos, males e procedimentos médicos já realizados. Um certificado clássico de que havia passado por todos os rituais médicos de reconhecimento de sua condição de paciente. Sentou-se ruidosamente ao meu lado e, imediatamente depois, reconheceu no outro canto da sala uma amiga sua, talvez companheira dos infortúnios e peregrinações de laboratórios, médicos, tratamentos e autorizações de exames.
– Fulana, como está? Nos encontramos de novo!!!
Ela sorria cheia de dentes e parecia estar muito mais tranquila do que nós. Talvez, ao contrário do que nos acontecia, seu familiar já havia passado por estas agruras mais vezes, e aquele local não era tão desconhecido quanto o era por nós. Continuei minha conversa com meu filho até ser interrompido por sua voz estridente que percorreu ruidosamente a sala até atingir sua comadre, no outro canto.
– Pois amiga, está sabendo da Neusa?
Nesse momento eu e Lucas paramos a conversa e olhamos para o seu semblante ainda sorridente. Neusa é o nome verdadeiro de Zeza, o nome que carregou por toda a vida até ser “batizada” pelo bebê Lucas, que por não conseguir dizer essa palavra tão complexa passou a chamá-la de “Zeza”, apelido que vingou por mais de trinta anos. O que ela teria a dizer sobre “Neusa”? Seria uma conhecida que soube de sua internação? Seria uma coincidência? Um aviso? Um espírito materializado? Ficamos em silêncio à espreita do resto da conversa.
– Pois amiga, nem te conto. Aconteceu muito rápido e pegou a todos de surpresa. Estava muito bem, mas de uma hora para outra…
(a respiração de todos na sala ficou suspensa)
– Mó réu, amiga. Mortinha. Morreu sem avisar. Que coisa né? De uma hora para outra. Coitadinha…
Olhei para meu filho e sem demora para o funcionário atrás do balcão. Seria possível que essa notícia tivesse pulado o protocolo e passasse para os outros antes de eu ser avisado? Poderia partir pelos corredores, driblar o microfone da funcionária e cair no conhecimento popular? Por uns milésimos de segundo minha mente ficou atordoada com a notícia, mas foi o olhar do meu filho Lucas quem me garantiu que se tratava de uma mera coincidência de nomes. Seus sorriso, com os olhos revirados para cima e a mão na testa mostravam que compartilhávamos o mesmo sentimento.
– Lucas, eu vou bater nessa véia… me segura!!, eu disse entre risadas, mas era apenas o humor que brota incontido depois dos sustos.
Como pode uma coincidência dessas? Estávamos aguardando com ansiedade e temor as notícias sobre um familiar e aparece um “espírito zombeteiro”, direto do umbral, para deixar a todos de cabelo em pé (quem os tinha…). O mesmo nome da paciente que estava sendo operada!! E ela veio sentar ao meu lado, gritando o nome da falecida para toda a sala ouvir…
Depois de boas risadas ainda tivemos tempo para relaxar e continuar nossa conversa científica sobre açudes, peixes, energia limpa, ecologia e vida em comunidade. Alguns minutos depois escuto no sistema de som a voz da funcionária: “Familiares de Neusa, favor se dirigirem à entrada do bloco cirúrgico“.
Só depois de receber as excelentes notícias é que pudemos verdadeiramente suspirar aliviados. E se fosse mesmo um espírito tentando nos dar em primeira mão a notícia do desenlace físico? E se fosse uma forma do plano espiritual nos avisar que o “gato havia subido no telhado“?
Não era… e foi apenas uma curiosa coincidência macabra com um final feliz.