
Durante a recente Marcha das Vadias alguns manifestantes realizaram performances inusitadas e “bizarras”, para dizer o mínimo, nas quais utilizaram símbolos religiosos cristãos como peça íntima de vestuário e para simulação de atos sexuais. Tais atitudes acabaram gerando uma onda de protestos por parte dos integrantes de denominações cristãs, principalmente evangélicos e católicos. Essas exposições de objetos religiosos e práticas libidinosas merecem algumas considerações.
As manifestações públicas, mesmo aquelas de caráter reivindicatório justo e adequado (como a Marcha das Vadias, em que as manifestantes exigem mais respeito e consideração com as mulheres e o feminino em um mundo ainda controlado por uma ideologia machista e falocêntrica), são um prato cheio para o atos de exibicionismo, atitudes histéricas e até mesmo a perversidade explícita. Para além dos pedidos e das queixas (como eu disse, justas e coerentes), alguns dos manifestantes (normalmente aqueles que menos se interessam pela questão em disputa) usam o público, a plateia sequiosa de escândalos e o clima de exacerbada emoção para todo o tipo de baixaria, abuso e exagero. Com isso suas ações acabam atraindo atenções e comentários, bem mais do que os “15 minutos de fama” regulamentares apregoados pelo visionário Andy Warhol.
Todavia, o resultado é invariavelmente negativo e contraproducente pois tais atitudes acabam por corromper a iniciativa, desviando a atenção dos valores em debate e distorcendo o foco das ações. Quando tais exageros são permitidos (e as vezes até estimulados) a própria luta pelos direitos em questão enfraquece. Ninguém estará interessado em apoiar um movimento que luta por respeito com as armas do abuso, do escândalo despropositado e do deboche.
Por outro lado não há como negar: tais ações são absolutamente inevitáveis. São humanas, e não podemos fugir dessa condição. Estes sujeitos são as pedras pelas quais os rios da mudança precisam desviar para que possam atingir seus objetivos. A pior parte da história é que esse tipo de manifestação grotesca, violenta, estúpida e injustificável diminui a força de qualquer movimento e oferece armamento para os inimigos. Se o objetivo era mostrar o valor de um país laico, de uma sociedade livre, de um estado que respeita as diferenças (entre elas as de gênero) o tiro saiu (desculpem o trocadilho) pela cu-latra dos manifestantes. Fica difícil admirar um movimento em que tais ações são consideradas válidas.
Não sou religioso e nem sigo religião alguma, mas acho importante ter respeito pelas crenças alheias, mesmo aquelas que para muitos de nós possam parecer tolas. O “chute na santa” é um bom exemplo. Este fato ocorreu em 1995 quando um pastor evangélico de nome Hélder desferiu vários chutes em uma imagem de Nossa Senhora em um programa da TV Record, em rede nacional. Foi o suficiente para que se gerasse um debate ácido entre evangélicos e católicos, ambos empenhamos em uma árdua disputa de mercado que perdura até os dias de hoje. A recente visita do Papa é apenas mais um capítulo deste embate pela conquista dos fiéis.
O que é interessante é que a “santa chutada” era realmente aquilo que o pastor dizia: um objeto de barro, banal, simples e sem valor intrínseco. Entretanto, o valor de um objeto qualquer (uma bandeira nacional, um crucifixo, a camiseta do clube, o brasão da família, uma imagem de um santo) estará sempre naquilo que o sujeito ou a sociedade emprestam ao tal objeto, e não no valor da matéria nele contida. Uma nota de 100 reais também é tão somente papel, mas ela é investida de um valor simbólico respeitado por todos nós, o que nos possibilita viver em uma sociedade complexa e capitalista. Os símbolos cumprem esta função nas sociedades humanas: eles incorporam valores, que para alguns são valiosos e plenos de significado transcendental.
Por esta razão – por não entenderem ou respeitarem estes valores – é que os tais manifestantes escancararam a face mais incoerente e inaceitável dos movimentos reivindicatórios: a grotesca falta de respeito por parte de quem exige respeito. Para avançar é preciso sempre entender o outro, no exercício mais complexo e difícil que o ser humano precisa encarar: transpor os limites da própria epiderme e sentir o calor do fogo e o gelo do vento com a pele de outrem. A alteridade é ferramenta indispensável para qualquer processo de transformação, e jamais poderemos prescindir dela para a necessária mudança que tanto exigimos.