Durante o atendimento a um parto hospitalar acabei por indicar uma cesariana. Depois de uma certa relutância, entreguei os pontos diante de uma longa parada de progressão. Saí da sala de partos e me dirigi ao posto de enfermagem para solicitar que um anestesista fosse chamado ao hospital. Sim, a mesma corporação médica que condena partos domiciliares por “falta de recursos” para atendimentos emergenciais acha natural que um centro obstétrico possa funcionar sem anestesista de plantão e que este seja chamado apenas diante de uma necessidade.
Fica fácil entender porque os obstetras daquele hospital – via de regra desinteressados pelo atendimento ao parto normal – preferem marcar cesarianas a correr o risco de precisar encontrar um anestesista às pressas.
No meio do caminho entre a sala de pré-parto e o balcão das enfermeiras encontro uma anestesista do centro obstétrico. Eu a conhecia há alguns anos e sabia ser uma pessoa, digamos, “difícil”. Essencialmente rude e insensível, muitas vezes grosseira. Já havia ocorrido atritos anteriores com algumas colegas, mas apesar de saber que não gostava de mim e das propostas da humanização do nascimento, nunca havia acontecido, até então, qualquer desavença comigo.
Ao cruzar com ela no curto corredor percebi que estava de saída do hospital, após atuar em uma cesariana agendada. Resolvi perguntar a ela se poderia ficar e atender a cesariana que eu estava a indicar, pois se tratava de um caso de parada de progressão no qual a paciente estava com muitas dores.
A resposta dela não esqueço até hoje. Sem me olhar direto nos olhos ela falou: “Não atendo essas pacientes de vocês, pacientes humanizadas. Procure outro anestesista”.
Eu fiquei chocado e estarrecido. Ela virou as costas e saiu do hospital sem dizer mais palavras. Corri para o posto de enfermagem e chamei outro anestesista, mas a cirurgia não ocorreu antes de ter se passado mais uma hora, com a paciente suportando contrações dolorosas e inefetivas. A insensibilidade daquela médica, que resolveu descontar a raiva que tinha de mim sobre uma pobre paciente, foi algo inacreditável, tamanha a perversidade. Uma triste lembrança do quanto uma posição de poder pode ser destrutiva.
Mas afinal, por que tanto ódio? Fiquei sabendo que semanas antes esta médica havia discutido com a paciente de uma colega por detalhes sobre uma analgesia de parto. Teria ficado furiosa com a gestante ao ver que esta questionava demais tudo o que lhe era determinado. Disse à minha colega obstetra que essas pacientes eram “doutrinadas” para a rebeldia e para desobedecer as ordens médicas. Em sua mente a culpa, por certo, era dos obstetras “humanizados” que as condicionavam a desprezar as orientações dos demais profissionais.
O ataque era direcionado à humanização do nascimento, mesmo fazendo uma paciente de vítima. Essa médica via em nós uma afronta à sua autoridade. Por esta razão, não deveria causar surpresa a onda de ataques e perseguições aos obstetras humanistas do Brasil. Qualquer perspectiva médica que minimamente valorize a autonomia dos pacientes será vista como perigosa e terrorista. Médicos humanistas – de qualquer área – são vetores de desordem e desequilíbrio, ao oferecerem aos pacientes uma perspectiva mais ampla e justa sobre seus direitos.
Hoje tudo está ainda mais explícito. No momento em que a corporação médica, através dos seus órgãos representativos, se associa ao fascismo explícito do governo, muitas personalidades anteriormente ocultas sob uma capa de civilidade acabam desvelando sua arrogância e violência.
Paulo Freire foi perseguido por ensinar brasileiros a ler, oferecendo a eles autonomia e uma consciência alargada sobre a complexidade do mundo que os cerca. Médicos que ensinam aos pacientes seus direitos e suas escolhas serão perseguidos e tratados da mesma forma punitiva. Não deveriam nos espantar estas agressões, apenas nos estimular à mobilização, à indignação e à luta