Fogueira

Vou me repetir mas apenas porque nesses momentos é fundamental ser didático e não perder a oportunidade de educar as pessoas sobre os limites da ação médica e a importância de reforçar a luta pelos direitos dos pacientes.

Existe um fenômeno na escola chamado “eleição do courinho”. É evidentemente uma escolha informal, sem votos expressos, mas consensual. Esse personagem na escola é escolhido para receber a maior carga de bullying por parte dos colegas, geralmente por ter algum tipo de defectividade: são eleitos quase sempre os gordos, os baixinhos, os magricelas, os lentos, os de óculos, os desengonçados, etc. Esse sujeito, a exemplo do “comedor de pecados”, vai atrair para si todas as máculas que carregamos, concentrá-las em si mesmo e sofrê-las, como um Cristo a garantir nossa salvação expiando os pecados do mundo.

Este “courinho” (em quem todos batem) produz um efeito apaziguador de nossas fragilidades. Se eu sou gordinho ninguém vai notar, porque não sou tão gordo quanto o “bola”. Se eu sou baixinho não importa pois ainda sou um pouco maior que o “tampinha”. Se sou feio ainda assim não assusto tanto quanto o “rascunho”. Se uso óculos, pelo menos não uso um “fundo de garrafa” como o meu colega “4 olho”.
Se eu faço uma episiotomia sem indicação, pelo menos não mostro para o marido, como alguns por aí. Sim, eu grito, bastante até, mas não digo “pohaaa” como aquele outro. Se assumo o protagonismo e exproprio o parto das pacientes, pelo menos não posto no Instagram. Se “faço os partos” pelo menos tenho menos cesarianas que aquele outro colega. Se desmereço a capacidade da mulher, pelo menos não falo “viadinha” como fiquei sabendo por aí.

Esses personagens são exaltados para carregar as NOSSAS FALHAS, nossos erros, nossa violência estrutural cotidiana, e acima de tudo para esconder o quanto estamos todos envolvidos em um modelo misógino, que desmerece as capacidades inatas das mulheres de gestar e parir com segurança. Criar um culpado serve para desviar o foco da enfermidade crônica da obstetrícia ocidental.

As coisas que esse doutor fazia, aparentemente com mais de uma paciente – tipo comentar sobre a vagina delas, falar palavras impróprias, mostrar a laceração para o marido, assumir o protagonismo do parto, fazer publicidade exagerada do seu trabalho nas redes sociais – não deveriam ser tratadas como uma “caça às bruxas”, tentando colocar a culpa nessas práticas em apenas um sujeito de comportamento “desviante. Estes erros são, em verdade, um catálogo das falhas cotidianas que estão espalhadas por todos os profissionais, os quais estão imersos em um paradigma de atenção inerentemente violento.

Toda caça às bruxas, todo linchamento e todo julgamento inquisitorial carregam essas características: mostram muito mais quem julga do que quem é julgado. Não se trata de desculpar suas atitudes e falhas, mas penas não se permitir desviar do foco: a mudança profunda no modelo de atenção ao parto.

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