Violência

Hoje me mandaram os vídeos e áudios de um caso de atenção violenta ao parto numa grande cidade brasileira. Não acho razoável que o nome do profissional seja citado por nós, e acredito que poderei explicar as razões para essa discrição nas linhas que se seguem abaixo.

Quando eu ouvi os diálogos na sala de parto fiquei espantado, mas talvez de uma forma diferente da maioria das pessoas. Em verdade, eu me senti como o cicerone de um campo de refugiados que mostra aos visitantes as condições precárias do lugar onde os exilados vivem. Para mim, algo banal, para os visitantes um quadro de horror. Assim, as cenas de violência verbal e abusos que eu escutei nada mais eram do que o padrão da assistência ao parto de que eu fui testemunha por tantos anos. Meu espanto não era pelo conteúdo, mas pelo fato de que ainda existem expressões dessa violência na terceira década do terceiro milênio depois de Cristo.

Eu bem sei o quanto o parto é estressante para os profissionais que o atendem. A configuração constrita das famílias contemporâneas produz uma concentração de expectativas e projeções inédita nos poucos filhos que nascem. Alie-se a isso o projeto da obstetrícia – desde sua criação – de produzir sobre o fenômeno fisiológico do parto todo o apavoramento possível, para assim garantir aos médicos – personagens da undécima hora na atenção a esse evento – a garantia do quinhão maior e mais suculento desse corpo esquartejado de mulher. Por estas razões, o parto no mundo ocidental opera sob o signo do medo, de um pânico que ultrapassa o medo natural das mulheres diante de fenômenos especiais que ocorrem em seu corpo. Esse medo atinge o parceiro, a família, a equipe, a instituição e toda a sociedade. Com todo esse estímulo ao pavor que circunda o nascimento é fácil entender porque ele se torna, muitas vezes, um circo de horrores.

Enganam-se aqueles que, com os archotes nas mãos, procuram no linchamento do profissional que usou da violência, da arrogância e do abuso como linguagem a solução punitivista – portanto equivocada – deste tipo de problema. Fazer isso seria tratá-lo como uma “exceção”, o que está longe da verdade. O problema não está com um profissional que perdeu o rumo da atenção, deixando que a sensação de impunidade, a ansiedade e a angústia dominassem seu discurso e contaminassem suas palavras com desdém e prepotência. Seria muito fácil se assim fosse; bastaria obrigá-lo a um processo de reeducação sobre a atenção à mulher, encaminhando-o a uma “reciclagem”. Mas, infelizmente, não é esse o drama que temos de encarar.

A verdadeira tragédia é o fato de que este é o discurso hegemônico da obstetrícia. Esta não é uma exceção. A atenção ao parto, conforme a sua vertente médica, tecnocrática e contemporânea, olha para a mulher como o estorvo do parto. A mulher e seu sistema defectivo e falho de gestar e parir, são os problemas que atrapalham a adequada atuação do médico. A incompetência essencial do organismo feminino é a responsável pelas demoras, falhas, complicações e tragédias, e não a incapacidade dos profissionais de lidar com esse evento.

Recordei agora de uma paciente grávida que me mostrou o vídeo do seu parto prévio. Nos momentos imediatamente anteriores à expulsão do bebê o médico perdeu o foco dos batimentos cardíacos, quando já estava ocorrendo o coroamento – talvez porque o peito do bebê estava atrás do púbis. Apavorado diante da falta de batimentos ele grita para a mãe: “Menina, faça força. Agora você precisa me ajudar!!”. Isto é, até aquele momento ele, o médico, havia trabalhado sozinho, mas a partir da pseudo emergência (o bebê nasceu em perfeitas condições) seria necessário que a mulher também colaborasse no nascimento da criança. Longe de ser um equívoco, tratava-se de um “freudian slip”, um ato falho, que demonstrava qual a posição que ele acreditava se encontrar no cenário do nascimento. Na percepção desse obstetra, ele estava parindo, enquanto a mulher representava as dificuldades que ele tinha a vencer para salvar a ambos, mãe e bebê.

O drama, que agora fica evidenciado pelo escândalo, se estabelece pelo fato de que, ao contrário das outras especialidades médicas – onde os pacientes são objetos inermes sob o controle do profissional – no parto é a mulher quem o faz acontecer. Assim, ela não é uma paciente – o nome “paciente” se refere àqueles que sofrem, que padecem – mas agente ativa do que está ocorrendo com seu corpo e suas reações. Ela não está doente, e nem está padecendo de nenhum mal, mas inobstante esse fato, é tratada pela medicina contemporânea como se assim o fosse, colocada numa posição objetual, negando-se a ela posição ativa no processo, impedindo-a de ser sujeito – e não objeto – de suas ações. Mas, para ser justo com os médicos, como pedir que eles passem anos objetualizando seus clientes para melhor intervir em seus corpos e, na obstetrícia, esta lógica se apresente a eles absolutamente invertida?

Na mentalidade médica contemporânea os insultos e os gritos estão colocados na posição do escalpelo e da tesoura, entendidos como instrumentos para subjugar um corpo que não colabora com os desejos e os tempos do médico e se contrapõem à lógica da medicina. Não deveria causar espanto que a adoção dessa perspectiva centrada nos cirurgiões invariavelmente redundaria na artificialização do nascimento e na expropriação do processo, retirando-o das mulheres e colocando-o nas mãos do médicos. Justo, parece, que eles reclamem quando as mulheres atrapalhem o “seu” trabalho.

Portanto, para que as violências verbais e os abusos contra a autonomia e a dignidade das mulheres deixem de ser o padrão não basta apenas utilizar a lógica serjomorista de “vigiar e punir”, imaginando que a punição, a exclusão e o linchamento público poderão produzir resultados positivos. A vingança é sempre traiçoeira; oferece um suave sabor ao ser consumida, mas uma inexorável indigestão depois de metabolizada. Mais demorado, mais custoso e mais difícil é colocar o dedo na ferida da atenção médica e institucional ao parto normal eutócico, questionando seus alicerces, denunciando suas falhas grotescas e seus resultados pífios. Apesar de mais complexo e demorado, este é o caminho mais seguro para garantir um valor revolucionário ao nascimento que, ao ser transformado (como bem o sabemos), transformará toda a sociedade.

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